Ismar C. de Souza*
“Brasil, meu Brasil brasileiro
Meu grande terreiro, meu berço e nação
Zumbi protetor, guardião padroeiro
Mandai a alforria pro meu coração”
(Wally Salomão & Gilberto Gil, “Zumbi”)
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Em pleno século 17, no coração da América portuguesa, numa região que hoje pertence a Alagoas, ergue-se um Estado rebelde, independente e completamente livre da escravidão, das “leis” e da opressão da coroa portuguesa.
Os cidadãos de várias etnias (negros em sua grande maioria) que ali habitavam tinham o seu próprio comércio, seus próprios códigos de conduta e respeito mútuo, e uma soberana forma de viver. Mantinham contatos com estados vizinhos e articulavam fugas de escravos, a quem davam proteção e ajuda. Foi neste lugar que o grande líder palmarino organizou e mobilizou seu povo contra ataques de poderosos senhores de engenho e o poder colonial português.
Infelizmente, a mais temida, democrática e livre povoação de escravos fugidos que existiu no Brasil foi completamente destruída em 1694 por bandeirantes comandados pelo assassino profissional Domingos Jorge Velho.
Apontado o seu esconderijo por um ex-companheiro preso e barbaramente torturado pelos sequazes de Domingos Jorge Velho, Zumbi caiu nas mãos do adversário e foi assassinado no dia 20 de novembro de 1695. Em sua homenagem o movimento negro adotou essa data como o Dia da Consciência Negra.
O ataque decisivo aos Palmares realizou-se nos primeiros meses de 1694. Segundo relato dos próprios inimigos, os quilombolas resistiram com determinação extrema, usando armas de fogo e flechas, água fervente e brasas acesas. Sem dúvida, foi o mais belo e heróico de todos os protestos dos escravos no Brasil.
Os bandeirantes: mitos e verdades
Os homens que participavam das bandeiras eram em sua maioria mestiços, rudes e pobres que vagavam pelos sertões em busca da sobrevivência econômica, fosse escravizando índios e escravos fugidos, ou procurando metais preciosos. Alguns ultrapassaram a linha do Meridiano de Tordesilhas e conquistaram (inconscientemente) a maior parte do Brasil atual para o domínio português; fizeram-no, entretanto, como um subproduto da luta desesperada pela sobrevivência.
Em apenas três décadas, as primeiras do século 17, os bandeirantes e seus ajudantes mamelucos mataram e escravizaram cerca de 500 mil índios, destruindo mais de 50 reduções jesuíticas.
Porém, ainda no século XVII, os historiadores Afonso Taunay e Alfredo Ellis Jr. deram início à fabricação do mito bandeirante que conhecemos hoje em dia.
Os documentos que eles publicaram revelam uma saga de horrores (alguns bandeirantes tinham como hábito cortar e salgar orelhas de índios abatidos, guardando-as como troféu de guerra). Ainda assim, Taunay e Ellis Jr. preferiram forjar a imagem dos bandeirantes altivos e galhardos, mesmo sabendo que esses caçadores de homens estavam especialmente treinados para escravizar e matar.
Justas e injustas homenagens
O que nos deixa entristecido é saber que, no Brasil, inúmeras homenagens são prestadas aos violentos bandeirantes e quase nenhuma a quem lutou por liberdade, com coragem e determinação, e ajudou inúmeros outros seres humanos a viverem com mais dignidade.
Em várias cidades brasileiras podem-se ver nomes de ruas, bustos e esculturas imensas de representantes dos sanguinários bandeirantes. Raposo Tavares, Borba Gato, Bartolomeu Bueno, Garcia Rodrigues e até mesmo Domingos Jorge Velho são reverenciados Brasil afora em gigantescas imagens esculpidas ou em nomes de avenidas e ruas movimentadas.
Enquanto homenagens parecidas ao grande líder Zumbi dos Palmares são quase inexistentes.
Coube à cidade de Salvador, capital da Bahia, em 2008, fazer a primeira homenagem de uma grande cidade, em caráter oficial, ao líder palmarino: com a participação de representantes dos poderes municipal, estadual e federal, foi inaugurada uma escultura de Zumbi dos Palmares no centro histórico da capital mais negra das Américas.
Eternizando em monumento uma justa homenagem ao homem que ajudou a criar a primeira experiência democrática do Brasil, num tempo em que, para muita gente, pensar em ser livre não passava de um sonho distante.
* Ismar C. de Souza, 42 anos, é analista de suporte em informática e militante do Movimento Negro em Salvador. E-mail: ismarsouza@hotmail.com.