Em todo o país, 75 emissoras de rádio estão em funcionamento mesmo tendo suas concessões vencidas há mais de uma década (veja a lista). Pelo menos três delas estão em nome de parlamentares ou seus familiares. É o caso da Rádio Clube do Pará, em nome de Luiz Guilherme Fontenelle Barbalho, irmão do deputado Jader Barbalho (PMDB-PA); da Rádio Jornal de Propriá, da senadora Maria do Carmo Alves (PFL-SE); e da Rede Amazonense de Comunicação, do deputado Humberto Michiles (PL-AM).
Eles estão entre os concessionários que ganharam sobrevida com a decisão inédita do presidente Lula de requisitar à Câmara, em junho, a devolução de 227 processos de renovação de outorga de rádio e TV ameaçados de rejeição pela Casa devido a problemas na documentação (veja a relação completa). A lei exige a renovação das autorizações a cada dez anos para as rádios e a cada 15, para as TVs.
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Ao justificar o seu ato, o presidente alegou que caberia ao Ministério das Comunicações, e não ao Congresso, exigir das empresas a complementação dos documentos. O curioso é que foi o próprio ministério que repassou a documentação incompleta para a Câmara.
Na lista tomada de volta pela Presidência, há pelo menos outros dez pedidos de renovação de emissoras ligadas a parlamentares. O principal articulador da manobra foi Jader Barbalho, que conseguiu, em um só lance, manter em atividade outras duas emissoras de sua família com concessões vencidas. Além da Rádio Clube do Pará, que opera sem autorização há mais de 13 anos, também foram beneficiadas com a medida a Rede Brasil Amazônia de Televisão (RBA), cuja concessão venceu em 2002, e a Rádio Carajás FM.
Manobra política
Todos esses casos estavam na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática – presidida até março pelo próprio Jader – e faziam parte de uma lista de 700 processos de renovação que chegaram à Câmara ainda em 2002. Na época, o colegiado detectou irregularidades na documentação de praticamente todas as emissoras. De lá pra cá, cerca de 500 delas se ajustaram.
O restante dos processos se arrastou na Casa até maio deste ano, quando integrantes da Comissão de Comunicação decidiram criar uma subcomissão para determinar as renovações que seriam negadas. Ao saber da criação dessa subcomissão, Jader pediu ao Ministério das Comunicações que interferisse diretamente no processo.
Como somente o presidente da República tem permissão para solicitar a devolução dos processos, coube a Lula intervir. O apelo de Jader, de quebra, salvou emissoras de outros aliados do governo, como os senadores José Sarney (PMDB-AP), José Maranhão (PMDB-PB) e Flávio Arns (PT-PR), além dos deputados Marcondes Gadelha (PSB-PB) e Humberto Michiles (PL-AM).
A concessão da Rede Amazonense de Comunicação, de Michiles, expirou em 1993. Já a autorização do Sistema Regional de Comunicação, de Gadelha, para explorar o serviço de rádio venceu em 1999.
A grande família
O número de parlamentares concessionários de radiodifusão, no entanto, é ainda maior se levarmos em conta que há, na Comissão de Educação do Senado, mais 53 processos em situação semelhante à dos que correm na Câmara. A assessoria técnica do colegiado chegou a sugerir a extinção dessas concessões, mas o parecer nunca foi votado.
Entre esses processos está o da Rádio Mirante, de São Luís, que funciona há 12 anos com a concessão vencida. A emissora é controlada pela senadora Roseana Sarney (PFL-MA), o deputado Sarney Filho (PV-MA) e o empresário Fernando Sarney, filhos do senador José Sarney (PMDB-AP). Concessionário da Rádio Mirante de Imperatriz (MA), Fernando Sarney acabou sendo ajudado por Lula, já que o processo de sua emissora está na lista dos requisitados pelo presidente à Câmara.
Por tabela
O ato de Lula beneficiou, ainda, políticos sem assento no Congresso, como o ex-presidente Fernando Collor de Mello e os ex-senadores Hugo Napoleão (PFL-PI), Freitas Neto (PSDB-PI) e Luiz Estevão (sem partido-DF). A medida também deu sobrevida a emissoras controladas por parlamentares que não fazem parte da base de apoio do governo, como o senador Edison Lobão (PFL-MA) e a senadora Maria do Carmo Alves.
A Rádio e TV Difusora do Maranhão – que está em nome de familiares do senador Lobão e de sua mulher, a deputada Nice Lobão (PFL-MA) – tem três pedidos de renovação de outorga entre os 227 processos devolvidos pela Câmara ao governo. Lobão é um dos principais aliados da família Sarney no Maranhão.
Mulher do governador de Sergipe, João Alves Filho (PFL), Maria do Carmo é sócia de quatro emissoras, entre elas a Rádio Jornal de Priorá, no interior sergipano, cujo pedido de renovação foi barrado na Câmara por falta de documentação. A concessão da rádio está vencida há 13 anos.
Outra beneficiária da decisão de Lula de pedir de volta os processos é a deputada federal Sandra Rosado (PSB-RN), cuja família controla a Mossoró Rádio Sociedade Ltda., em Alexandria (RN).
Um dos casos mais curiosos entre os 227 processos é o da Rádio Globo de Salvador. A concessão da empresa expirou em 1993, quando ainda pertencia ao empresário Roberto Marinho. O pedido de renovação, apresentado no ano seguinte, não chegou a ser analisado. A emissora foi vendida à Diamantina Rádio e Televisão Ltda., que encaminhou novo processo em 2000. A rádio opera sem concessão até hoje.
A TV Studios de Brasília, emissora do SBT na capital federal, também está na lista requisitada por Lula. A concessão da empresa, em nome de Senor Abravanel (o apresentador Silvio Santos), expirou em 2002.
Modelo em xeque
A decisão do presidente de pedir os processos de volta foi duramente criticada por integrantes da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática, responsável por analisar os processos de concessão. Na avaliação da deputada Luiza Erundina (PSB-SP), Lula desautorizou o Congresso para agradar aos aliados.
“Precisamos rever imediatamente o processo de concessão”, disse ela ao Congresso em Foco. A deputada preside a subcomissão encarregada de reavaliar os procedimentos da Câmara para aprovação de novas concessões e da renovação das outorgas já existentes.
Erundina pretende ouvir o ministro das Comunicações, Hélio Costa, e seus antecessores no governo Lula, Miro Teixeira e Eunício Oliveira, sobre os critérios de renovação das concessões. Também integrante da subcomissão, Orlando Fantazzini (Psol-SP) responsabiliza o próprio Ministério das Comunicações pela situação. Segundo ele, o governo só deveria encaminhar os processos à Câmara depois de ter pedido toda a documentação das empresas.
“Essas emissoras que estão aí há dez, 15 anos com a renovação já vencida estão funcionando de maneira totalmente irregular”, diz o deputado. Segundo ele, a legislação que rege o setor é confusa quanto às atribuições do ministério e da Agencia Nacional de Telecomunicações (Anatel) e tem brechas que dificultam a fiscalização.
Moeda política
A autorização de concessões públicas de rádio e televisão pelo governo muitas vezes carrega interesses que vão além das atividades de comunicação. Para atestar a tese, basta voltar a 1997, quando o então ministro das Comunicações, Sérgio Motta, na época o mais influente do governo Fernando Henrique, comentou a aprovação da emenda da reeleição.
“Passou a reeleição sem que déssemos uma única concessão. Quando é que você viu isso?”, afirmou em entrevista à revista Veja. A frase repercutiu nos principais jornais do país como um constrangimento para o Palácio do Planalto e rendeu uma censura formal de FHC. Mas não era verdadeira.
Reportagem publicada em 1997 pelos jornalistas Sylvio Costa e Jayme Brener, no jornal Correio Braziliense, demonstrou que o governo Fernando Henrique encontrou uma brecha legal para distribuir palanques eletrônicos, por meio da outorga – feita por portaria do Ministério das Comunicações – das chamadas RTVs, estações retransmissoras de televisão que podiam ser entregues a aliados sem necessidade de aprovação do Congresso.
Em 1995, FHC não distribuiu nenhuma RTV. Já em 1996, outorgou 1.848 licenças de retransmissoras de televisão, das quais pelo menos 268 beneficiaram entidades ou empresas controladas por 87 políticos. Entre eles, 19 deputados federais, seis senadores e dois governadores. A generosidade de FHC coincidiu com a aprovação da emenda constitucional que permitiu a sua própria reeleição. A maior parte das RTVs foi distribuída em dezembro de 1996, um mês antes da aprovação da emenda da reeleição (votada pela Câmara em primeiro turno em 28 de janeiro de 1997).
O campeão das concessões
Nenhum governo, porém, superou o do ex-presidente José Sarney na distribuição de concessões de rádio e TV. Sarney foi acusado de usá-las como moeda de troca para aprovar a mudança constitucional que lhe garantiu cinco anos de mandato. Entre 1985 e 1989, ele distribuiu 958 concessões, boa parte delas para aliados políticos.
Em oito anos sob o comando de FHC, o Planalto assinou 357 outorgas. Desde que assumiu o governo, Lula já autorizou a concessão de 29 televisões e 81 rádios.
Embora ocupantes de cargos públicos sejam legalmente proibidos de receber concessões, os meios de comunicação no país historicamente são comandados por grupos políticos. Levantamento feito pelo professor Venício de Lima, do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política da Universidade de Brasília (UnB), publicado pelo Congresso em Foco (leia mais), mostra que 49 deputados são concessionários diretos de emissoras de rádio e TV, conforme dados oficiais do Ministério das Comunicações. Dos 81 senadores, 28 controlam emissoras de rádio ou TV, em nome próprio ou de terceiros, de acordo com pesquisa feita pelo Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação (Epcom) (leia mais).
Não por acaso, a Comissão de Comunicação é uma das favoritas dos deputados que têm empresas de radiodifusão. Dos 40 parlamentares que participaram do colegiado no ano passado, 11 eram concessionários diretos de emissoras de rádio e TV. Dois deles, Corauci Sobrinho (PFL-SP) e Nelson Proença (PPS-RS), foram denunciados na Procuradoria Geral da República pelo Projor (entidade mantenedora do site Observatório da Imprensa), acusados de votarem a favor da renovação de suas próprias concessões. Os deputados negam ter votado em causa própria (leia mais).
À margem da lei
Na lista das irregularidades dos processos devolvidos pela Câmara ao Ministério das Comunicações, aparecem empresas que foram vendidas há vários anos e cuja documentação continua nos nomes dos antigos donos, embora a lei exija que a mudança societária seja previamente aprovada pelo governo, e emissoras que foram desativadas, mas que sobrevivem na documentação oficial.
A renovação de concessão só pode ser autorizada se a empresa estiver em dia com o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), com o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e com o fisco municipal, estadual e federal. A Rede Brasil Amazônia (RBA), de Jader Barbalho, é uma delas. A Sampaio Rádio e Televisão, do ex-vice-governador alagoano Geraldo Sampaio, e as TVs Cabo Branco e Paraíba, do ex-senador José Carlos da Silva Jr, também têm débitos previdenciários.
Matéria publicada em 21.08.2006 (última atualização em 05.09.06)