Temos de percorrer juntos toda a nossa trajetória histórica para entendermos de que matéria moral, de que valores ou desvalores somos feitos. Para compartilhar esse entendimento mínimo de nosso caráter cívico e moral, percorri 12 grandes momentos de torção ético-estética de nossa história, de distorção das leis, de contorção do relativismo moral, de autoengano e corrupção de valores tão simplesmente. No artigo anterior, abordamos duas dessas torções. Acompanhe agora as demais:
Terceira torção de nossa história: ainda em meados do século XVI, os donos de engenho importavam a escravaria de negros africanos já adaptados e treinados nos trabalhos forçados dos engenhos. Foram três séculos da mais longa, rendosa e ultrajante escravidão africana da história da humanidade. E todas as sucessivas leis da proibição do tráfico negreiro, do ventre livre, do sexagenário, nada mais foram do que embromações “para inglês ver” e não a proclamação em definitivo da abolição da escravidão, que só se consumou já nos fins do Segundo Reinado.
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Quarta torção: no decorrer dos séculos XVII e XVIII fomos às minas atrás do ouro. Calcula-se que os portugueses levaram mais de 1 milhão de quilos de ouro maciço do Brasil. Aqui ficaram apenas a fina douração dos ornamentos dos altares-mor das igrejas barrocas. Ou algum pouco pó de ouro escondido na carapinha dos negros ou nos santos do pau oco para comprar a alforria, gesto de sonso, dissimulado, que perdura na expressão até hoje em voga. Santo do pau oco de alma, mas prenhe de ouro, no contrabando dos sentidos e das intenções. O estilo retorcido, sensual, ambíguo, duvidoso e prolixo permanecerá na literatura, nas artes, na música, na arquitetura e na própria alma para nos fazer suportar as agruras da vida. Afinal, nascêramos do estigma de que “navegar é preciso, viver não é preciso”, do lema mosaico da Escola de Sagres. Se não há precisão no viver, o sangue da Inconfidência não correu das elites de advogados, poetas, coronéis, mineradores e até mesmo padres e cônegos que a promoveram, mas de um reles alferes Tiradentes, gente do povo, este sim enforcado e esquartejado. E mais tarde imortalizado em óleo tal qual o Cristo-Rei ungido pelas mãos prestidigitadoras de Pedro Américo.
Quinta torção: a inauguração do Império foi, sobretudo, uma grande torção política. Gritada a independência de fachada, o chamado Dia do Fico se cumpriu na verdade com a decisão de D. Pedro I deixar o Brasil para defender o trono português. Se Tiradentes é o mártir da independência e José Bonifácio é o patrono, D. Pedro I, e IV de Portugal, é apenas o títere que a proclama. Resta saber qual deles é o fundador da Pátria, que “mãe gentil”, na verdade é Mátria. O côncavo é o reverso do convexo e vice-versa num substancial barroquismo que no Brasil perpassa o romantismo e chega até o modernismo. Não aquele geométrico das escolas do Stijl ou Bauhaus norte-européias. Mas o latino modernismo catalão e do art nouveau belgo-francês. O máximo de nossa contribuição: o modernismo barroco arquitetado por um Niemeyer ateu e comunista. E neste quinto tombo de nossa reincidente orfandade cívica, nos restou esperar o Imperador-menino crescer. Para tentar um regicídio dissimulado e herdar o merecido pastiche dos pais-da-pátria Getúlio e a versão hodierna de Macunaíma, o herói sem caráter do Lula-lá. Quando a República inaugurada no golpe de 1889, nos lega sucessivos golpes em 1891, 1922, 1930, 37, 45 e 68.
Sexta torção: o parlamentarismo às avessas do Império é o contraponto do parlamentarismo puro inglês. E inaugura um modelo singular no mundo que, não fosse a estatura de estadista de D Pedro II, que se impôs o poder moderador, seria a distorção do parlamentarismo em si mesmo, uma vez que o presidente do conselho de ministros era de sua escolha discricionária e não dos membros do parlamento. No entanto, a simples separação entre as chefias de governo e de Estado foi o que garantiu o período de maior estabilidade política da História do Brasil, para não falar do progresso econômico e social.
Sétima torção: a Federação prometida na Carta da República de 1891 é centrífuga e não centrípeta, como deve ser, seguindo o modelo de Federação dos Estados Unidos da América, onde o movimento de constituição do poder vem dos estados federados para a União. Deixamos de ser Estados Unidos do Brasil só na Carta de 67, passando à denominação de República Federativa do Brasil. Mas continuamos sem entregar uma Federação efetiva e constituída pelo poder dos Estados.
Oitava torção: a República surgida da quartelada de 1889 insiste na fraude dos próprios símbolos nacionais. A bandeira da República tem os mesmos traços e cores da bandeira do Império, substituindo-se o símbolo concreto do desenho da Coroa por uma estilização da abóboda celeste ornada do cruzeiro estelar, outra vez predicado natural no lugar de construção institucional. Na faixa, o tríptico positivista é falseado para um díptico, com a omissão sonsa e deliberada do amor-ágape (=justiça), restando uma base de ordem com o fim do progresso sobre nenhum princípio. Nas cores, o verde da Casa de Bragança (de D. Pedro I) é truncado como mais um atributo natural, o verde das florestas, assim como o amarelo da Casa de Habsburgo (D. Leopoldina) é fraudado como o ouro de nossa terra. Sempre os dados da natureza como atributos de uma identidade nacional sem quaisquer méritos de construção social, política ou institucional. E, além dos símbolos-pastiches nacionais da bandeira, das armas e das cores, o hino chega a ser cômico, pois nada mais é do que o aproveitamento da melodia original de uma Marcha Triunfal , de Francisco Manuel da Silva, usada como hino da Independência desde 1822, com uma nova letra ganha em concurso público um século depois.
Nona torção: o que derruba o Império, para além da questão religiosa e social, quando D. Pedro II desafia a autoridade dos bispos de impor os preceitos da bula papal sem sua aquiescência, ao mesmo tempo em que nega as indenizações pela escravaria liberta dos barões fazendeiros, é o antagonismo entre o Exército e a Armada, vindo da Guerra do Paraguai, quando Deodoro, enfim, trai o Imperador e inicia uma longa tradição golpista no país. A indisciplina militar, que deveria ser o esteio da ordem republicana, é a prova inconteste de que não pode haver ordem sem o princípio maior da Justiça, expressão social do Amor (excluído da bandeira), como este é a expressão afetiva da Justiça. Esta que tem sido o lapso maior entre todos os princípios morais relativizados e contorcidos que nos legou nossa barroca história. De 64 a 68, por exemplo, a intervenção militar é chamada simultaneamente de Revolução, contrarrevolução e golpe militar. Vai por conta do freguês o epíteto, pouco importa as contradições. Como se dizia no folclore mineiro: em política o que importa não é o fato, e sim as versões. Como hoje em dia, instituiu-se o factoide como a carnavalização do fato.
A décima torção vem da consagração do populismo de esquerda, o esquerdismo como sabotagem da democracia duramente conquistada nos anos 80. A democracia travestida de demagogia: a democracia sem aristocracia, a oclocracia, onde queremos nos enganar de que escapamos da tradição conservadora e liberal misturando tudo na geleia geral do reacionarismo. Somos todos progressistas e de esquerda. O resto é a direita maldita.
A décima primeira torção é o cume da corrupção dos valores, pois esvazia de moralidade o princípio da legalidade. Nosso animus legisferandi nada mais é do que a consagração maior do aforismo de Montesquieu: as leis inúteis debilitam as leis necessárias. Se não, vejam como repetem todos os partidos, independente de espectro ideológico, quando pegos pela Operação Lava Jato: todas as doações eleitorais foram legais, declaradas e aprovadas pela Justiça Eleitoral, fazendo ouvido mouco do questionamento moral sobre a origem espúria dos recursos. Mas esta torção de nossa cultura política nos remete outra vez à relativização do valor da vida da primeira e segunda torções iniciais, o único valor que não pode ser flexibilizado dentro da tradição humanista judaico-cristã, pois coloca em cheque todos, absolutamente todos os demais valores morais da humanidade. E a responsabilidade maior deste desastre é o ativismo judicial, o Poder Judiciário se arvorando a Poder Moderador da República. As sentenças que atestam a vida como atributo e providência materno-feministas, um feto e não um ser humano, como um órgão a mais do organismo materno, extirpável como um dente, um baço ou uma vesícula. O que levou um amigo conservador, Adolfo Sachsida, a indagar num artigo recente e com arguta presença de espírito: – Se o feto não é ser humano em potencial, é o que? Para além de fazer da saúde, como dever de Estado e direito de todos, uma pretensa extensão de garantia da própria vida, cabe ao Estado um poder maior do que o próprio poder de Deus que, titular do dom da vida, não chega a garanti-la aos homens, simples mortais. Ou seja: à garantia de fábrica, por um pequeno acréscimo na fatura, você pode ganhar uma garantia estendida duas vezes maior do que a de fábrica. E estamos todos empoderados.
A décima-segunda torção da cultura barroca da política brasileira, ainda bem recentemente, tem como ator nada menos do que o Supremo, o qual se acreditava até pouco tempo ser o “último a ter o direito de errar”. Vencido também por nossa cultura contorcionista, o Supremo, enfim, ao invés de cumprir sua missão de guardião da Lei Maior, tortura a letra e o espírito da mesma. Deixando-se levar pelo sofisma da pior política, tanto no episódio da sentença do impedimento da presidenta, cassada do cargo, mas mantidos seus direitos políticos, podendo até mesmo se recandidatar, quanto da decisão de manter o presidente do Senado no cargo, mas sem o atributo inerente ao mesmo de substituir o primeiro mandatário da República. Supremo jeitinho como já classifiquei num outro artigo. Dois episódios lamentáveis de desmoralização máxima de nossa vida política, numa única legislatura. Ápice de nosso silogismo barroco, do contorcionismo legal, moral e o escambau. Perpetrados pela mesma canalha política de sempre que promete resistir para 2017. Resta, pois, à cidadania brasileira, sem um Cristo que dela se compadeça, evocar o imemorial Tupã dos trovões e partir outra vez pras ruas. Ou evocar o D’us de Moisés, no célebre aforismo do cabalista Hilel: “Se eu não sou por mim mesmo, quem será por mim? Mas se eu for somente por mim, quem serei eu? Se não for agora, quando?”
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