“O Brasil não é para principiantes”, dizia o saudoso Tom Jobim, existência ímpar de nossa cultura, e que nos faz acreditar que o país pode dar certo. Até por que se não começamos a acreditar, aí é que não vai dar certo mesmo. Grandes momentos nacionais foram sempre antecedidos de grandes crises. Por isso, acredito que essa fenomenal crise em que foi mergulhado o país é indício de que nos aproximamos de um grande momento de superação.
Mas é importante que tenhamos consciência de que a condição de superação não pode se limitar a iniciativas de políticas públicas nos campos da economia, de programas sociais ou mesmo de medidas institucionais, por parte das elites gestoras públicas e privadas, mas compreender também uma mudança imprescindível de atitude delas, decisão de ordem moral, da cultura moral que deve determinar qualquer ação humana.
Para tanto, defendo há décadas que a reforma moral e cívica não pode apenas depender do sistema educacional, sobretudo como é concebido no Brasil, como sistema de reprodução de conhecimento ou capacitação profissional, e não sistema de reprodução de valores. Para tanto, defendo há décadas que as elites devem intervir na mídia de massa, tanto na sua função informativa quanto de entretenimento.
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Na última semana, um dos raros jornalistas brasileiros que tem consciência disso, Fernão Lara Mesquita, critica seus próprios companheiros de ofício: “O dano infligido ao país nunca entra em consideração. O interessado em reformas “é o governo”, não o país. A imprensa não cobre o Brasil; a imprensa cobre a disputa de Brasília pela carniça do Brasil. Não tem nada a ver com jornalismo trombetear aquilo a que facções em luta ‘lhe dão acesso’ na hora e no lugar que elas escolherem. Isso não é informar, é tornar-se parte. A garantia de sigilo para alardear ‘furos’ que não são ‘furos’ contrata os próximos atentados contra a nação… O remédio para a doença que nos aflige é conhecido desde 1776. Chama-se igualdade perante a lei. Não existe outro. Consiste em reestruturar o Estado e a nação segundo o princípio de que tudo que não vale para todo mundo tem de deixar de valer para quem quer que seja.”
Mas para tanto, temos de entender o Brasil, a tarefa que transforma principiantes em iniciados. Por isso é que proponho, em curso de cidadania política, uma nova abordagem da velha moral e cívica sonegada no ensino público há duas gerações, para nivelar conceitos e valores entre segmentos de nossas elites, para que possam de fato exercer sua missão indelegável de resgatar a res publica da sanha predadora dos nossos políticos profissionais, que se apropriam do Tesouro para si, seus eleitores, acólitos e financiadores.
Insisto na tese: um grande momento nacional de reforma moral e resgate de valores já se vislumbra e não podemos perder essa oportunidade histórica. Não só as multidões que foram às ruas protestar contra a corrupção política nas últimas megamanifestações. Há um grito preso na garganta de todos os cidadãos brasileiros para fundar uma nova cultura política baseada no resgate dos valores morais corrompidos. São profissionais liberais, micro e pequenos empreendedores, militares, professores, profissionais de Estado, como magistrados, promotores, policiais, auditores e de tantas outras carreiras públicas, estudantes, donas de casa, religiosos, técnicos especializados e tantos outros. Só precisam do rumo a ser dado pelas nossas verdadeiras elites consensuadas numa agenda estratégica.
Mas, para tanto, temos de percorrer juntos toda a nossa trajetória histórica para entendermos de que matéria moral, de que valores ou desvalores somos feitos. No curso que montei para compartilhar esse entendimento mínimo de nosso caráter cívico e moral, percorri 12 grandes momentos de torção ético-estética de nossa história, de distorção das leis, de contorção do relativismo moral, de autoengano e corrupção de valores tão simplesmente. Inspirado na ilustração barroca da fita de Moebius, aquela figura geométrica onde o verso se encontra com o reverso que, por sua vez, volta a ser verso indefinidamente, como a figura barroca do côncavo-convexo, persistindo nas mais variadas expressões da identidade nacional.
Do cordão da folia do corso de outrora às torcidas das arquibancadas em suas olas. Das volutas trançadas nas molduras dos nichos das igrejas às pegadas invertidas do Curupira enganando os bandeirantes nas trilhas das florestas. Busco sempre o sentido mais profundo de nosso barroquismo e jesuitismo para suportar as dores da vida numa terra abençoada de natureza, mas erma de elites para provimento de quaisquer aparelhos culturais mais adequados para nos amenizar a lida da vida. E conter a ganância que nos despertou no espírito esta luxúria de dádivas da natureza. O que nos marcou na alma a própria contradição barroca de lutar pela vida atentando contra a própria vida.
Em contraponto a uma amiga psicanalista, Denise Maurano, que vê na torção barroca de nosso povo um atributo de escape do duro rigor moral europeu, vejo que nossa História poderia ser resumida a uma sucessão de 12 grandes equívocos, atos falhos e autoenganos no campo da cultura moral, a cultura que interessa, pois funda a ação política de nossas elites. Aliás, nunca foi tão oportuno o antigo chavão: o exemplo vem de cima. Ou não vem. E aí, começamos a entender o Brasil, suas torções e distorções. O cerne da malandragem, de tudo que é, não sendo, na volta do que não foi. No mexido revirado que fazemos com as sobras do banquete europeu, guisados e cozidos de esbalde. Das 12 torções de nossa história enviesada pelo desvio barroquista, as duas primeiras são fundamentais pois precedem a própria eclosão do movimento ético-estético europeu, como se fossem seu próprio parto, juntamente com o parto do Novo Mundo que surgia para além do Mar Tenebroso.
Primeira torção: na Ilha, que depois se viu que era a Terra de Santa Cruz, foi celebrada a primeira missa em torno de um cruzeiro feito naturalmente de pau-brasil, pois o nome da Terra Brasilis só seria adotado mais de um século depois. Num primeiro momento, evocamos preces a Deus. Não vindo as bênçãos esperadas, idolatramos o brasil, o bezerro e o ouro. E a terra, antes consagrada ao símbolo de Cristo, passou a ser a terra da vil matéria. Assim como não se chamavam, pelo gentílico próprio da língua, de brasilienses aqueles que aqui foram nascendo, mas de brasileiros, com o sufixo original que determinava “aquele que explora”, e não aquele que desta terra nasceu. E para explorar o pau-brasil, nada como escravizar os índios e seviciar as índias. Enganar com miçangas, expediente que até hoje perdura.
Segunda torção, ou ato falho seguinte, conforme reza a cartilha psicolinguística de que é a escolha do nome que determina a natureza do que se nomina, nossos índios só foram dotados de alma no século XVI, com a bula papal Sublime Deus, e por força da catequese jesuíta. O que não impediu a sua contínua escravidão, assim como o estupro das dóceis índias, dado o apotegma de Gaspar Barleus de que “não havia pecado abaixo da linha do Equador”. Mas, os índios que transportavam no lombo as toras de ibirapitanga para as naus madeireiras portuguesas não se revelaram bons escravos para o engenho de açúcar trazido dos Açores. Restou-nos moer a dureza de nossas raízes, amolecer a massa do castigo do pecado, o rigor moral dos tubérculos, com o doce leite dos mingaus das farinhas do milho e das mandiocas.
Acompanhe aqui no Congresso em Foco, nos próximos dias, a continuação deste artigo.
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