Oscar Martinez e Jimmy Alvarado,
Agência Pública e El Faro
O Serviço de Alfândega e Proteção de Fronteiras dos Estados Unidos deteve 56.557 crianças desacompanhadas, a maioria da América Central, cruzando a fronteira entre os Estados Unidos e o México entre outubro de 2013 e junho deste ano, quando o presidente Barack Obama reconheceu a crise e pediu ao Congresso a aprovação de um fundo de emergência de 3,7 bilhões de dólares para amenizá-la. Há quase duas semanas, no dia 16, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, lançou uma mensagem de alerta à Conferência Internacional sobre Migração, Infância e Família, em Tegucigalpa, Honduras, que reuniu representantes de El Salvador, Guatemala, México, Estados Unidos e integrantes da Organização de Estados Americanos (OEA), pedindo aos governos dos países de trânsito ou destino que protejam os direitos humanos das crianças, algumas com menos de sete anos.
Entre as explicações que vem sendo cogitadas para a migração crescente de menores estão um alegado acirramento da violência na América Central e a existência de leis americanas que facilitariam o asilo para menores de idade. No momento, o Congresso americano estuda mudar a legislação para que os agentes da Guarda da Fronteira (U.S Border Patrol) possam interrogar as crianças e decidir se o medo que sentem de voltar a situações de violência merece “crédito”, suspendendo o direito de serem ouvidas por uma assistente social e por um juiz antes da decisão final.
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Nada disso é verdade para os jornalistas do El Faro, site salvadorenho premiado por investigações jornalísticas principalmente na área da segurança pública. De coiotes a diplomatas o que se conta é mais um capítulo de uma velha história de exploração, crime e imigração na América Central. Veja trecho da reportagem de Oscar Martinez e Jimmy Alvarado:
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“Eu tenho vontade de rir quando a mídia fala em ‘crianças sozinhas’. Nenhuma vai sozinha, todas são levadas pelos polleros, todas foram levadas. Se eu tivesse nos Estados Unidos sem documentos como poderia dizer para o meu filho: ‘Venha!’. Nããoo, não é assim não. É assim: as pessoas querem os filhos perto delas. E então? – diz o Senhor Coiote em sua casa no departamento de Chalatenango, ao norte de El Salvador.
PublicidadeO Senhor Coiote é coiote desde 1979. Gaba-se de ser um dos primeiros coiotes de El Salvador. Na verdade, quando começou a “coiotar” isso nem era ilegal. Inclusive ele chegou a publicar anúncios de “viagem segura para os Estados Unidos” nos jornais, deixando o número de seu escritório em Cuscatancingo. É um coiote, um pollero, que viveu as diferentes fases da migração, do exôdo dos que fugiam da guerra civil (1980-1992) passando de Tijuana a Los Angeles em poucas horas; até a construção do muro, na década de 1990; incluindo os últimos 14 anos em que os Zetas (um dos maiores cartéis de drogas no México) entraram no negócio e a polícia da Fronteira ultrapassou a marca dos 18 mil agentes em serviço. O Senhor Coiote já assistiu a milhões de salvadorenhos sem papéis partindo na marra, e continua vendo a mesma cena. Agora, principalmente crianças sem papéis.
Essa é quinta vez que converso com ele sob a única condição de não citar seu nome. Há alguns dias eu lhe disse por telefone que não entendia o fenômeno que vem ocupando as manchetes dos jornais e os noticiários de rádio e TV: o dos meninos migrantes de Honduras, Guatemala e El Salvador – 52 mil centroamericanos que entraram nos Estados Unidos sem visto nem companhia de adultos até junho de 2014. Uma média de 300 por dia.
“Isso é simples, em qualquer cidade dizem para as crianças: fulano conseguiu ir para lá, assim e assado, sem pagar fiança. Joga-se essa isca, e disso se aproveitam muitos polleros que estavam ganhando 7 mil dólares por cabeça. É um grande negócio porque para levá-los até a fronteira do México com os Estados Unidos, a Reynosa, por exemplo, gastam no total, incluindo a cota dos Zetas – porque os Zetas cobram sua cota por pessoa, não importa se grande ou pequena, uns 2.000 dólares. Mais 500 dólares para quem os atravessa na fronteira, vão uns 2.500 dólares. Passam a criança para o outro lado, dão as instruções para que diga que está sozinha, procurando sua mãe, seu pai. Eles têm que esquecer que vieram com coiotes. Sempre tem alguém olhando para que a criança fale com a polícia, nem nesse momento ela está realmente sozinha, sempre tem alguém vendo se vão pegá-la. Aí está em mãos seguras. Assim que a polícia detém a criança, o coiote informa à família dela: ‘Já está segura, nos braços da lei, aguarde’. Imediatamente as autoridades se comunicam com a mãe, a criança leva nomes e números de telefone”, explica o Coiote.
“E baixaram os preços?”, pergunto. Ele responde: “Sim, tem gente que está cobrando menos, porque agora já se generalizou, a família já sabe que é mais fácil, não quer pagar 7 mil dólares. Ouvi dizer que alguns estão cobrando de 4 a 5 mil dólares. Quando chegam ao México já resolveram a parada; uma vez nos Estados Unidos, basta qualquer polícia deter as crianças e resolvido. Tenho alguns amigos que dizem que os menores de idade são dinheiro seguro. E é assim mesmo. A melhor benção é que eles sejam detidos por um policial, qualquer um.”
“Os coiotes estão oferecendo o serviço ou são as pessoas que os procuram?”, pergunto. O Senhor Coiote responde: “As duas coisas acontecem. Os coiotes se aproveitam. E também, quando alguém vê os filhos da vizinha, pergunta: ‘Como você fez?’ Assim, assado. A outra manda buscar seu filho. Antes havia as fianças de 4 a 5 mil dólares e pagá-las era um problema. É como se dissessem: vamos deixar liberada a fronteira, quem sabe assim as pessoas vão embora a pé”.
A “coiotagem” é um negócio imortal, em grande medida porque se alimenta de uma necessidade humana essencial: a necessidade dos pais de estarem com seus filhos. Foram escritas muitas manchetes sobre as milhares de crianças que abandonaram seus países nesses meses. “A violência e as maras (gangues centroamericanas) detonam o êxodo massivo de menores de idade”, manchetou em 7 de julho o jornal espanhol El País. O mesmo título foi repetido em diferentes versões por dezenas de veículos. Alguns foram além, como a Fox News, que no último dia 11 de julho disse que a Mara Salvatrucha está aproveitando a imigração massiva para infiltrar membros nos Estados Unidos e recrutar crianças em alguns centros de detenção da Guarda da Fronteira.
“O que mudou para que nos últimos meses milhares de crianças da América Central fujam da violência? Que reviravolta houve para que até os garotos das maras façam planos de expansão aproveitando essa conjuntura? A resposta é: nada. Não aconteceu nada novo ao menos aparentemente. O que tem acontecido, segundo o senhor Coiote e também segundo Rubens Zamora, que até algumas semanas atrás embaixador de El Salvador nos Estados Unidos, é que muitas coisas permaneceram iguais.
Algumas publicações têm especulado sobre “novas leis” que dariam liberdade às crianças sem visto. Alguns veículos chegaram a mentir, dizendo que agora a legislação permite que os menores de 18 anos que entram a Estados Unidos sem papéis, têm direito de receber documentos para ficar. Mas isso é mentira.
A legislação é a mesma. Há uma lei que obriga ao Departamento de Segurança Nacional dos Estados Unidos – ao que pertence a Guarda da Fronteira – a entregar qualquer criança sem papéis ao Departamento de Saúde en menos de 72 horas. A lei é conhecida por sua sigla TVPRA (em português Lei de Reautorização de Proteção das Vítimas de Tráfico de Pessoas). Um menor que tenha chegado aos Estados Unidos sozinho ou com um coiote é, segundo a lei, uma vítima provável de tráfico de pessoas e por isso um juiz deve decidir pelo asilo ou deportação. No caso dos adultos, ele comparece diante do juiz para dizer se quer deportação voluntária ou uma segunda audiência com o juiz para pedir asilo – algo que é concedido em raríssimos casos. Uma criança centroamericana sem documentos que entrou no país sozinha ou com um coiote tem sempre direito a essa segunda audiêcia porque automaticamente é considerada uma possível candidata ao asilo – mas também raramente o consegue. Diferentemente dos adultos, porém, uma criança não pode ser mantida durante dias ou semanas nos quartos da Guarda da Fronteira, apelidados de “geladeiras” por sua cor e temperatura, por isso é encaminhada aos albergues especiais do Departamento de Saúde. E também não pode ficar semanas nesses albergues esperando que o juiz a chame para a segunda audiência, onde será dada a sentença. Um adulto normalmente passa esse tempo esperando em um centro de detenção para migrantes. Mais importante: se a criança tiver um dos pais nos Estados Unidos, tem que ser entregue a eles, tenham ou não permissão de permanência no país; e o Departamento de Saúde não verifica o status migratório para entregar a criança, basta comprovar que são seus pais. É comum que entreguem as crianças a irmãos maiores de idade. A lei que obriga tudo isso no caso das crianças não é nova, existe desde 2008, e foi criada na administração de George W. Bush, e não na gestão de Obama que no entanto é quem enfrenta a chamada “crise da fuga das crianças”.
Bem, então se não há leis novas que atraiam as crianças, talvez seja porque El Salvador, Honduras e Guatemala se tornaram países violentos nesses últimos anos. Mas isso também é um argumento falso. Somos países violentos há anos, e somos países muito violentos desde 2008, quando aquela lei foi criada. Na verdade, se por exemplo as crianças de El Salvador estivessem indo embora só por causa da violência, em 2009, milhares teriam partido.
En 2008, ano da criação da lei americana, foram assassinados em El Salvador 51,7 habitantes por 100 mil habitantes; em 2009, os números dispararam: 70,9 de cada 100 mil salvadorenhos. A taxa de homicídios rondou os 65 por 100 mil nos anos seguintes, e caiu para 41,2 en 2012 e a 39,6 en 2013, em parte graças à trégua do governo com as gangues. A exceção de 2012 e 2013, El Salvador, incluindo este 2014, sempre assistiu à morte de mais de 8 pessoas por dia. No ano passado, a ONU considerou Honduras o país mais violento do mundo e a Guatemala ficou em quinto lugar, um degrau abaixo de El Salvador. Outra variável que se manteve estável é a idade das vítimas. Segundo o Instituto de Medicina Legal de El Salvador, entre 2010 e 2014, o maior número de vítimas de homícidio estava na faixa dos 15 aos 24 anos. Parte deles, crianças, portanto.
Aqui somos violentos há muito mais tempo do que seis ou oito meses. Aqui somos violentos muito antes de 52 mil crianças irem embora.
Continuação desta reportagem na Agência Pública
Continuação da reportagem em espanhol
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