Em artigo que publicamos hoje na seção Fórum, o cientista político Hamilton Garcia de Lima faz uma alentada análise das chamadas “jornadas de junho” e do impacto que elas poderão ter na política brasileira. Discorde-se ou não das colocações do autor, é material que merece atenção de quem pretende compreender o que se passa no Brasil de hoje.
O caminho percorrido por Hamilton reserva várias surpresas. Na contramão de alguns dos seus colegas acadêmicos, que se enfurecem com o ostensivo apartidarismo dos manifestantes de 2013 ou pretendem lhes dar lições de como fazer política, ele dirige às novas gerações um olhar de indisfarçada simpatia. Na horizontalidade e autonomia das manifestações, no apartidarismo e na recusa às lideranças de velho estilo, onde tantos encontraram defeitos, ele descobre uma qualidade que faltou aos militantes dos anos 60 e 70 – vários deles, pais ou mesmo avós da rapaziada que ganhou as ruas nas últimas semanas. Que virtude é essa? Maior espírito democrático.
Nas palavras do autor: “Isso denota um espírito democrático forte dessa geração, se comparada à dos anos 1960-70, quando predominava o sectarismo e a vontade de domínio de um grupo sobre o outro. Os novos movimentos sociais, nesse ponto, parecem muito mais preparados para enfrentar os velhos cacoetes da esquerda do que as velhas organizações, quase todas capturadas por facções e partidos de viés autoritário”.
Como se trata de texto de tamanho bem superior àquele que costumamos respeitar na publicação de artigos, aqui vai uma seleção dos principais trechos para os apressados. Aos quais avisamos desde já que eles não passam de tira-gosto. Melhor ir lá, e degustar na fonte o prato principal. Mas, se você quiser ter uma ideia geral da coisa, começamos agora a abrir aspas.
“No impedimento de Collor, (…) o PT encarnava a crítica a todas as formas de autoritarismo; por isso, foi capaz de liderar a juventude nas ruas contra a captura oligárquica do Estado pelo voto popular. A mobilização vitoriosa, porém, à semelhança de 1968, encontraria a direção equívoca de uma vanguarda divorciada dos anseios populares”.
“Hoje, o quadro que vemos é o de radicalização desse divórcio. Com o PT envelhecido e corroído pelos seguidos escândalos de corrupção, as novas gerações se afastaram ainda mais da militância partidária, e os partidos dissidentes, surgidos antes e depois da degeneração petista, apesar da longa semeadura da revolta popular em que se empenharam, apenas em parte conseguiram atrair a força da juventude desgarrada do petismo e do pecedobismo. Dos partidos moderados de esquerda, apenas a Rede parece vocacionada para angariar simpatias naquele segmento”.
“A nova geração política, ainda tateando o campo em busca de um partido para chamar de seu, inicia seu protagonismo com agências próprias ainda de caráter antipartidário. Isso, ao contrário do que pensam muitos analistas e jovens, está longe de significar a despolitização dessa geração, sendo antes uma nova forma de começo em meio a um ambiente político salinizado, saturado de ideias anacrônicas e mentalidade oportunista”.
“Eis aqui a razão principal para o divórcio entre o povo e os partidos que as novas gerações revelaram de maneira radical, independentemente do programa e da história: a incapacidade generalizada de aprender com a história e se renovar com a vida”.
“A preocupação dos principais setores sociais beneficiários do sistema deriva do que pode vir a acontecer com seu domínio se ao descontentamento atual se juntar, num futuro próximo, a fúria dos afetados por uma crise econômica que, indiferente às esconjuras governamentais e suas alquimias, ameaça incapacitar o Estado a continuar promovendo sua legitimação à base da paz social ou, em outras palavras, de benefícios como o Bolsa Família (cerca de R$ 25 bilhões do orçamento público federal) e o bolsa Miami (cerca de R$ 47 bilhões de evasão de divisas), ameaçado pela depreciação cambial do real, para não falar da potencial insustentabilidade do bolsa juros (cerca de R$ 200 bilhões do orçamento público federal), que devora recursos vitais para a qualidade de vida de milhões de famílias”.
“Não só os partidos oposicionistas de esquerda falharam em seus diagnósticos e terapias; também a intelectualidade jovem faltou ao encontro com as ruas. Essencialmente acadêmica e beneficiária da expansão dos gastos públicos na fase da bonança lulista, (…) deixou de pensar o mundo concreto das coisas em suas contradições para dedicar-se a reforçar a mensagem ideológica progressista do petismo e de sua paz social, seguindo de perto seus mestres encastelados nas agências fomentadoras de carreiras”.
“Vemos agora, em meio a todas essas dificuldades e insuficiências, abrirem-se diante de nós as várias portas políticas cujas chaves pareciam sob o controle do bloco no poder. (…) A primeira dessas portas a investigar seria a democrático-representativa, que, apesar de claramente refletida na postura exibida pela maioria dos manifestantes — não obstante os embaraços ideológicos do anarquismo e do romantismo —, tende a ser aberta de maneira tímida em função tanto dos embaraços implícitos à arquitetura dos novos movimentos, como pela fragmentação e desorientação das forças políticas e intelectuais, oposicionistas e situacionistas, capazes de dar-lhes uma boa direção”.
“Isso tudo acaba beneficiando a porta historicamente mais conhecida entre nós: a nacional-populista, que não apenas é forte em termos culturais, como tem potenciais lideranças mobilizáveis em variados espectros ideológicos. Embora historicamente de caráter socialmente democratizante e politicamente conciliador — ou seja, não necessariamente democrática em sentido político, mas certamente antípoda à tradição elitista republicana —, tal porta costuma se abrir sob o comando de lideranças carismáticas mais capazes de tirar proveito das vantagens eleitorais da desigualdade social do que propriamente de resolvê-las, inclusive usando as dificuldades das soluções para avançar sobre as instituições democráticas por vários vieses, como outrora o fizeram Quadros, Goulart e Brizola nos anos 1960. As hesitações e insuficiências das forças postadas à frente da primeira porta criam boas perspectivas para as forças abrigadas na segunda, sendo já possível divisar, na relativa preservação da popularidade de Lula em meio à crise, um possível fio condutor para a (pseudo)solução eleitoral do impasse, ironicamente em detrimento das forças oposicionistas que reduzem tudo às urnas, com as mesmas regras que não lhes parece urgente mudar”.
“A última grande porta que se apresenta à mão das forças político-sociais ora em movimento era, até há pouco, tida como definitivamente fechada pelos oráculos do regime. Ocorre que de nenhuma perspectiva histórica digna do nome se pode deixar de considerá-la: a porta liberal-autoritária, com seu foco tradicional na manutenção da ‘ordem’ e na expressão eleitoral estritamente controlada da vontade popular por meio de um sistema partidário restritivo e ‘responsável’. (…) De certa maneira, a rebelião da base aliada do governo, depois de junho, prenuncia que o velho camaleonismo partidário começa a ganhar contornos programáticos conservadores tendentes a uma coalizão mais coerente. Mas, para que essa aposta se concretize, é necessário que Aécio ou Campos se credenciem eleitoralmente a liderá-la, visto que Serra e Marina são candidaturas mais controversas em relação ao sentido pretendido”.
“Ansiosos por manterem-se preservados da fúria popular, tanto os políticos como os rentistas atuam com doses maciças de demagogia e publicidade, num esforço de desassociação como grandes beneficiários das políticas públicas de regulamentação frouxa, quer da vida pública, quer do sistema financeiro e sua cobrança extorsiva de taxas de empréstimos automáticos aos setores populares, assim como da imensa dívida pública, cujo custo orçamentário é quase o dobro do investimento público federal (R$ 108,7 bilhões), com significativo impacto sobre a qualidade dos serviços públicos”.
“A situação de hoje, em função das largas e profundas distorções produzidas ao longo de mais de duas décadas, exige um esforço reformador quase constituinte, e, deste ponto de vista, é inequívoco o acerto das forças políticas que propuseram a Constituinte específica já. Embora se possa obstar uma série de argumentos políticos e jurídicos, isoladamente válidos, contra a proposta, jamais se pode defini-la como “mera manobra diversionista” diante da gravidade da crise”
“O risco que o PT, em particular, corre sustentando sua proposta de urgência em sintonia geral com as ruas — que, naturalmente, pode esconder pretensões políticas antidemocráticas oriundas de seus setores populistas e extremistas — é o de empurrar sua base aliada conservadora em direção à oposição liberal-conservadora às vésperas de importantes definições de alianças eleitorais, risco este que embute outro de igual potência para os oposicionistas: o de serem identificados com a mesma base parlamentar responsável pela crise — o que encontra confirmação histórica no fato de que a oligarquia política da era petista não ser de natureza diversa daquela do período tucano. No momento, parece claro que a oposição liberal-conservadora aposta suas fichas na aproximação com a base governista em decomposição, sem se importar muito com os odores que ela exala, e já proclama o fim da era Lula sem se dar conta de que é forte candidata a dividir o ônus da crise com o mesmo governo que pretende derrotar nas urnas”.
Íntegra do artigo de Hamilton Garcia de Lima
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