Zuleika de Souza/Correio Braziliense
Renata Camargo
Longe das tintas que deram cor aos caras-pintadas, em 1992, e de empunhar a bandeira anti-capitalista erguida pelos estudantes parisienses em 1968, eles conseguiram fazer a sua revolução. Estiveram à frente do movimento que derrubou o reitor da Universidade de Brasília (UnB), Timothy Mulholland, e o seu vice, Edgard Mamya, envolvidos em uma série de denúncias de irregularidades.
De volta à rotina do campus, após ocuparem o prédio da reitoria por duas semanas, os estudantes da UnB e coordenadores do Diretório Central do Estudante (DCE), Fábio Félix, 22 anos, e Karla Gamba, 21 anos, avaliam que o movimento estudantil não sabe lidar com grandes vitórias. “Conseguimos mobilizar, mas nem sempre conseguimos dar continuidade ao movimento”, afirma Karla relembrando experiências anteriores.
Com novo fôlego após a “vitória” da ocupação, a dupla está otimista, mas não esconde que o movimento pode cair no recrudescimento. “A ocupação foi um marco. Mas não adianta derrubar uma gestão. Vencemos na pauta ética, mas nem os próprios estudantes estão convencidos da pauta democrática”, avalia Félix, que cursa o oitavo semestre de Serviço Social.
Na pauta democrática, antigas exigências. Uma das mais importante é a chamada paridade nas votações, que daria peso igual para o voto de estudantes, funcionários e professores na eleição do novo reitor.
Além disso, eles querem ampliar o debate sobre o papel das fundações das universidades, alvo das irregularidades apontandas pelo Ministério Público e que culminaram com a renúncia do reitor, e a melhora nas políticas de assistência aos estudantes de baixa renda.
“Muda o tipo de mobilização. A continuidade vai depender da gente agora”, diz Karla, que está no oitavo semestre de Artes Cênicas .
Diferenças ideológicas
À frente do DCE desde novembro de 2007, a dupla acredita que a juventude hoje, de modo geral, é mais individualista. Rechaçam, no entanto, que faltam ideologias. “Não é porque a pessoa usa tênis da Nike que ela é vazia de ideologias”, defende Félix. "Se está com blusa do Che Guevara, quer dizer que tem ideologias?", questiona.
No ano em que o movimento estudantil comemora 40 anos, as comparações com as manifestações acadêmicas da década de 60 são inevitáveis. Embora concorde que são menos radicais do que no passado, Félix resiste às críticas de que o movimento estudantil de hoje é formado por uma geração menos politizada.
Segundo o estudante, estima-se que, pelo menos, sete mil estudantes da universidade passaram pela reitoria, em assembléias que mobilizaram cerca de 1.500 estudantes. "Temos o movimento estudantil da década de 60 como referência, mas estamos em outro contexto", pondera a colega Karla.
Opção pela militância
A trajetória dos coordenadores no movimento estudantil tem começos parecidos. Os dois, que há quatro anos militam, se envolveram com as causas estudantis no ensino médio, em atividades do grêmio.
Diferente de Karla, que nunca se filiou a nenhum partido, Félix é membro do Partido Socialismo e Liberdade (Psol) desde 2005. Em 2006, foi candidato a deputado distrital pelo partido no Distrito Federal.
Grávida de seis meses da menina Luanda, Karla tem o movimento estudantil como uma opção de vida. De acordo com a estudante, militar é uma forma de acreditar que as coisas mudam. “Não é o presidente, o deputado ou o prefeito que muda a situação. Somos nós mesmos nos mobilizando”, afirma.
Filhos da classe média
Na contramão de colegas que pensam em se formar e ingressar no mercado de trabalho atuando em novelas, a goiana de Trindade pensa em dar aulas. “Quero trabalhar com teatro, mas não será, necessariamente, meu meio de sobrevivência. Não vou fazer novelas a qualquer custo”, defende.
Filha de pai servidor público do estado de São Paulo e mãe professora de Geografia e História em Goiás, Karla é uma das atendidas pelos Programas de Assistência Estudantil da UnB. Ela é moradora da Casa do Estudante Universitário (CEU), por meio do auxílio de moradia estudantil da UnB.
Félix não recebe assistência estudantil. Filho de servidores públicos do Judiciário, o estudante de classe média é morador do Guará, cidade que fica há 11 km de Brasília. Típico estudante de Serviço Social, o brasiliense corre atrás do “prejuízo” depois de 15 dias longe das salas de aula e tenta se formar ainda este ano.
“Depois de formado, quero fazer mestrado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) ou na Universidade de Coimbra, em Portugal”, conta. Ambos não trabalham. Dedicam seu tempo aos estudos e às atividades do DCE.
Ainda assim, no pouco tempo livre, freqüentam bares da cidade, como Beirute e Pôr do Sol, e festas universitárias no Centro Comunitário da UnB. “O que a gente gosta mesmo é militar”, ressalta Karla.
Discípulos de Marx
Além da militância, outros pontos em comum unem a dupla. Quando o tema é religião, ambos dizem não ter uma para seguir. Ex-freqüentador da Igreja Evangélica, Félix acredita em Deus e em Jesus Cristo, mas diz que o discurso da igreja é muito conservador. “Eu fiz um piercing e fui expulso da igreja”, conta.
Karla é batizada na Igreja Católica, mas não é praticante. “Preocupo-me com a espiritualidade, mas não sigo nada”, diz.
Os ídolos também são parecidos. O emblemático intelectual alemão, Karl Marx, é o principal referencial teórico dos militantes. Félix cita também Leon Trotski (Ucrânia), fundador do Partido Comunista da União Soviética e, posteriormente, crítico do regime comunista.
“Um cara que escrevia para o New York Times para, ao mesmo tempo, criticar o comunismo e o regime americano é admirável”, afirma o estudante que já leu, entre outras, as obras Moral e Revolução e Revolução Permanente.
No campo da militância, as influências vêm de dentro e fora da Universidade. Karla cita o guerrilheiro argentino Che Guevara como exemplo de coerência de opiniões e atitudes, enquanto Félix se espelha nas professoras Maria Lúcia Leal e Patrícia Pinheiro, ambas do Departamento de Serviço Social.
Em entrevista ao Congresso em Foco, os coordenadores do DCE falam um pouco mais sobre o que pensam sobre diversos temas. Confira a opinião de quem esteve à frente da ocupação da reitoria da UnB.
UNIVERSIDADE PÚBLICA GRATUITA
Fábio Félix – A universidade é um pólo de formação crítica da sociedade. A educação nas universidades públicas tem que ser gratuita e garantida pelo Estado. Querer cobrar é uma lógica imposta pelo pensamento neoliberal.
Karla Gamba – Com certeza a universidade pública deve ser de graça. Pública é pública. O Estado tem que garantir não só o ingresso na universidade, como também uma educação de qualidade voltada para servir a sociedade, que nos sustenta.
NOVO REITOR
F – Como representante do Diretório Geral dos Estudantes (DCE) não tenho posição nem a favor nem contra. Acredito que ele está em uma postura de tentar resolver a crise.
K– Eu o conheço muito pouco. Os espaços que tivemos com ele após a ocupação foram bons e ele se mostrou uma pessoa aberta às negociações.
ESQUERDA X DIREITA
F – Hoje é muito difícil definir o que é esquerda e direita. Acredito que o neoliberalismo faz um novo corte da esquerda e da direita. Quem leva à frente as idéias neoliberal, que seria de direita, e quem não leva a frente essa luta, que seria de esquerda. É de esquerda quem tem o compromisso com a luta social, com os direitos, com a cidadania, com as políticas sociais. De direita são aqueles que querem sempre conservar as instituições e fazem política no sentido de diminuir o poder do Estado.
K – Ser de esquerda é pautar as transformações sociais e lutar por uma sociedade mais justa. Em essência ser de esquerda é se responsabilizar pelas injustiças e tentar resolver os problemas coletivamente. Ser de direita é justificar que os nossos problemas não pertencem a nós e se isentar de responsabilidades. O pensamento direitista coloca um excluído social como uma pessoa que não aproveitou as oportunidades.
GOVERNO LULA
F – A expectativa que era que Lula promovesse um governo de mudanças estruturais, do ponto de vista de ver o povo como cidadão e não como consumidor. Mas a política de Lula, em modos gerais, com todas as contradições, mantém a mesma lógica da política do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, a política da contra-reforma do Estado, no sentido de diminuí-lo e não mais para garantir direitos e promover políticas públicas de melhoraria de vida da maior parte da população.
K – O Lula foi mais um que apareceu para o governar o país e continua com políticas que prioriza o lucro de banqueiros, para os que já eram ricos permaneçam e enriqueçam, em detrimento de uma situação de pobreza que continua grande. As coisas continuam como está e para a gente isso não é novidade.
CONGRESSO NACIONAL
F – Acompanho o que se passa no Congresso Nacional, mas não sinto que os atores sociais e a configuração da nossa sociedade estão bem representados. O sistema eleitoral privilegia candidatos com apoio de grupos economicamente mais favorecidos. Eles conseguem, de fato, eleger os seus grupos para serem bem representados. Claro que tem um ou outro deputado e senador, que nos representa. Mas de modo geral, não.
K – Por estar no movimento estudantil, sempre estamos acompanhando o que se passa no Congresso. As nossas avaliações e análises de conjuntura levam em consideração o que se passa lá. Mesmo com todos os problemas do Congresso.
ABORTO
F – Não sou nem contra nem a favor. Eu não tenho posição moral sobre o aborto. Acho que o aborto pode ser uma violência moral para a mulher, mas ela pode gerar um feto que não vai ser bem-vindo na sociedade. Então eu sou a favor de uma política de descriminalização do aborto.
K – Minha gravidez não foi planejada. Eu sou a favor do aborto, sempre fui e não deixei de ser. Pensei em abortar, mas fiz uma opção de ter o filho. E estou feliz com essa opção. Decidir pelo aborto não é uma opção fácil, mas a mulher tem que ter o direito de escolher. E caso ela opte por abortar, o Estado tem que garantir o atendimento mínimo, para que ela não corra risco de vida.
DESCRIMINALIZAÇÃO DAS DROGAS
F – Deve-se fazer um debate no sentido da descriminalização. Não uso nenhuma droga ilícita, mas acho que há um moralismo exagerado. A descriminalização seria um passo para melhorar a relação da sociedade com as drogas. Usar drogas não deve ser crime. Depois poderiam legalizar algumas drogas menos pesadas, como a maconha e o lança perfume.
K – Sou a favor da legalização de algumas drogas ilícitas, como a maconha, por exemplo. Quando a descriminalização, acredito que é preciso um debate sem hipocrisia. Existe um tabu muito grande em cima da questão das drogas e esse moralismo não é o caminho.
HOMOSSEXUALISMO
F – Tem que reconhecer a união civil entre homossexuais, tornar crime a homofobia e garantir direitos a esse grupo. Essa é uma luta política, independente do que eu penso, ou do que você pensa. Ninguém será obrigado a casar com uma pessoa do mesmo sexo. É o direito de quem quer. Homossexualismo não é uma “opção sexual”. Essa é a pior burrice que se fala. Um homem não faz a opção de gostar de outro homem e ser descriminado, apanhar na rua ou sofrer outro tipo violência de quem tem preconceitos. Na sua vida, você é aquilo que você se construiu ou foi construído. Isso é gosto e não opção.
K – Encaro o homossexualismo como algo completamente normal. Não acho que é um desvio de conduta. Homem gostar de mulher não é puramente biológico. Existe uma carga cultura, de convenção. Entender e aceitar os homossexuais é uma questão de humanização. Os argumentos colocados contra o homossexualismo são puramente moralistas, não tem nenhuma reflexão. Os casais homossexuais têm que ter direitos iguais a qualquer outro.