Bajonas Teixeira de Brito Junior *
A bem da verdade, ou a mal da mentira, sinto-me na obrigação de dizer algumas palavras sobre o projeto de lei que pretende controlar a internet. Diz, sabiamente, o senador Eduardo Azeredo, para justificar a lei por ele proposta: "A internet não pode ser um manto de impunidade e irresponsabilidade – e na esmagadora maioria dos casos, não é isso." Diante dessa afirmação, generosa e cheia de boa vontade, cabe ao nosso bom senso redargüir: se não é isso, por que fazer uma lei justamente para isso? Se a maioria esmagadora das pessoas neste país bebe água diariamente, porque fazer uma lei obrigando-as a bebê-la? É claro que há exceções, mas as exceções não justificam a existência de uma lei e os gastos públicos necessários para implementá-la e fiscalizar o seu cumprimento. Enfim, fazer lei para o que não precisa de lei é supérfluo.
Por isso, a lei proposta pelo senador Eduardo Azeredo não deve estar visando apenas aos impunes e irresponsáveis. Se fosse assim, pelo que diz, seria bobagem, uma vez que é apenas uma minoria esmagada que recalcitra, já que a maioria esmagadora não o faz. Mas, se ele insiste, apesar de atropelar a lógica, em engessar a internet, qual será o motivo autêntico dessa preocupação? A quem interessaria transformar todo e qualquer usuário da internet em um estelionatário potencial?
Eu responderia que, paradoxalmente, os que mais desejam algemar a internet são os que mais lucram com ela: os bancos e as empresas de cartões de crédito. Para eles, ao que parece, seria mais fácil fazer de cada usuário da internet um suspeito, violando frontalmente o princípio da presunção de inocência, do que realizar os investimentos em segurança necessários à garantir a tranqüilidade do usuário. Da mesma forma que o cliente se sente inseguro dentro de um banco, lembrando ainda do período em que os assaltos a agências bancárias no país todo eram diários, o usuário da internet treme ao fazer qualquer transação bancária. Mas quem deve garantir a segurança de cada transação? Os mesmos beneficiários e prestadores dos serviços bancários que lucram com eles. Assim como não é o Exército que deve resguardar as agências bancárias ou garantir a segurança dos carros-fortes, também não se pode obrigar o Estado, e menos ainda a sociedade em geral, a pagar pelos prejuízos do setor financeiro.
Acrescente-se a isso que os bancos têm, no Brasil, ampliado inimaginavelmente seus lucros a partir da completa informatização. Na utilização da internet para drenar recursos financeiros da sociedade, estamos mais avançados que as grandes potências. Encontrando nos sucessivos governos uma espécie de massinha completamente moldável aos seus interesses, os bancos têm conseguido implementar crescentemente a virtualização de todos os seus serviços. Isso significa intensificar e aprofundar a capilaridade financeira, reduzir gastos e ampliar as margens de lucro. Mas essa é também uma seara de novos riscos. O principal deles sendo os hackers, que constantemente operam nas falhas do sistema, o que não justifica medidas extremas que penalizem indiscriminadamente os usuários da internet.
Segundo dados divulgados pelo Dieese, os lucros dos bancos em 2005 no Brasil chegaram a R$ 18,8 bilhões. Já a Febraban, em junho de 2006, afirmava que os prejuízos com as fraudes eletrônicas em 2005 chegava a R$ 300 milhões. Que percentagem esse valor representa dos lucros bancários? A bagatela de 1,6%. É esta a situação diante da qual estamos com a lei proposta pelo senador Eduardo Azeredo: acorrentar o uso da internet em todo o país para prevenir um prejuízo de 1.6% do setor financeiro. Exigir que qualquer uso da internet – seja ele lúdico, educacional, investigativo, intelectual, afetivo etc. – seja submetido ao imperativo exclusivo da lucratividade bancária.
Será certamente um grande prejuízo à dignidade pessoal do brasileiro, além de uma invasão à sua privacidade, apontá-lo a cada ingresso seu na internet como um potencial risco para a segurança dos bancos. É preciso, creio, dar um basta no violento poder de imposição da vontade dos bancos sobre a sociedade no Brasil. Os bancos brasileiros, como já é do conhecimento geral, estão entre os mais informatizados do mundo. Esse avanço, que permitiu reduzir custos e aumentar enormemente os lucros, não se fez com uma concomitante melhoria e humanização do atendimento nas agências.
Ao contrário, hoje estamos entre a cruz e a caldeirinha: ou correr o risco de uma transação na internet, ou enfrentar filas intermináveis nas agências. Esse é um dos traços específicos do despotismo financeiro no país. A lei do senador Eduardo Azeredo, apenas iria radicalizar esse estado de coisas. Ora, não basta que os bancos se beneficiem, para auferir seus lucros extraterrenos, desta criação da inteligência humana, a internet, para o qual não contribuíram em nada? Será preciso que, além disso, a despeito de todas as suas outras funcionalidades, nos obrigue ao mesmo repetido vexame, na hora de conectar, que experimentamos ao atravessar a porta de segurança de um banco? Se for assim, aquele constrangimento que buscamos evitar ao máximo, fugindo tanto quanto possível de visitar uma agência bancária, se transferirá para o nosso ambiente doméstico. A qualquer momento correremos o risco de sermos barrados ou indiciados por engano.
O mais curioso nisso tudo, porém, é que a lei proposta beira a boçalidade, fazendo crer que o senhor Eduardo Azeredo não possui vida virtual ativa. É simples a contraprova – qualquer um minimamente familiarizado com a internet já escutou falar que existem inúmeros programas para a geração de CICs, CPFs, keys etc. disponíveis na rede. Além disso, como ninguém ignora, a maioria esmagadora ao menos, é muito fácil hospedar um site no exterior. Portanto, a lei da identificação do usuário, se aprovada, seria completamente inócua para realizar os fins de controle da "impunidade e irresponsabilidade", só servindo para estabelecer um banco de dados que, mais cedo ou mais tarde, viria a servir para a cobrança de cada ato virtual, inclusive cada e-mail enviado. De certo, isso poderia beneficiar em muito as grandes empresas de telefonia, que controlam o serviço de internet no país, mas seria o maior desserviço possível ao usuário.
Penso, em conclusão, que a lei proposta pelo senador do PSDB deve ser objeto de um enérgico repúdio pela sociedade brasileira. Ela só trará benefícios aos bancos e outras instituições financeiras, enquanto apontará cada usuário da internet com um salteador que só se detém pela força da lei. Ela se enquadra nas célebres modernizações brasileiras que, ao cabo, apenas servem para perpetuar as estruturas oligárquicas e a força das elites dominantes.
* Doutor em Filosofia pela UFRJ, Bajonas Teixeira de Brito Júnior é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Publicou os livros Lógica do disparate (2001) e Método e delírio (2003); coordena a revista eletrônica www.revistahumanas.inf.br; e foi o principal responsável pelo lançamento do "Manifesto por uma mídia democrática e independente".
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