Às vésperas do seu 50º aniversário, a ser completado amanhã, Brasília é cenário de uma farsa medíocre. No sábado, em votação indireta, Rogério Rosso (PMDB) foi eleito governador do Distrito Federal pela Câmara Legislativa. Ontem, tomou posse anunciando combate sem tréguas contra a corrupção, sob os aplausos de políticos de praticamente todos os partidos, desde o DEM ao qual pertencia o governador cassado José Roberto Arruda até siglas que lhe faziam oposição, como o PT.
Rosso e aliados não guardam segredo quanto ao seu objetivo primordial. Para usar a mesma expressão que ele empregou em entrevista ao Congresso em Foco, ainda no sábado, sua prioridade é “bloquear” a intervenção. Durante a solenidade de posse, anunciou que irá procurar logo o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, e ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) exatamente com esta intenção: mostrar que a administração pública local já vive um novo tempo, de normalidade democrática e moralização, e que a intervenção se tornou dispensável. Como prova disso, dirá que contratos do governo Arruda serão auditados, haverá corte de gastos e tudo transcorrerá daqui até 31 dezembro de acordo com o mais alto interesse público.
Segundo o deputado distrital Cabo Patrício (PT), “a intervenção já está fora de cogitação”.
A cúpula petista chegou a se comprometer a descarregar seus quatro votos na Câmara Legislativa em Rogério Rosso, na eventualidade de um segundo turno.
Não foi necessário porque todos os oito deputados acusados de envolvimento direto com o mensalão do Arruda lhe garantiram a vitória na primeira votação. Um deles, Geraldo Naves, soldado fiel do ex-governador, ficou preso dois meses por ter sido flagrado em tentativa de corrupção de testemunha, num caso evidente de obstrução da Justiça. Saiu da cadeia para ajudar a eleger o homem que irá moralizar o Distrito Federal.
Suplente de deputado federal, Rogério Rosso reúne credenciais curiosas para livrar a capital do país de roubalheiras. Não bastasse o unânime apoio dos mensaleiros locais, no governo Arruda presidiu a Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan), um dos alvos centrais das investigações de corrupção que enredam o governo. Foi também secretário de Desenvolvimento Econômico e administrador da Ceilândia (a mais populosa cidade do DF) no governo Joaquim Roriz. Roriz, padrinho político de Arruda, é aquele mesmo que renunciou ao cargo de senador em julho de 2007 depois de revelado que havia recebido um cheque de R$ 2,3 milhões do empresário Nenê Constantino, dono da Gol. Deixou um monumental rastro de atos suspeitos durante as quatro vezes em que governou o Distrito Federal.
Versão mal-ajambrada daqueles políticos, à la Maluf, que adoram anunciar sua competência para “fazer”, Roriz perde em estilo para os seus congêneres de outras regiões do Brasil. Fala mal, possui imensa vocação para se meter em trapalhadas e não costuma disfarçar o jeitão, digamos, “fazedor” próprio dele e de sua turma. Ganha de goleada da maioria deles, no entanto, em dois quesitos: na fartura dos votos colhidos por um clientelismo demagógico tão tosco quanto eficaz; e no talento repetidamente demonstrado para calar a imprensa local, que possui longa tradição de canina fidelidade aos governantes de plantão.
Nesse cenário, é natural que a maioria da população do DF apoie o pedido de intervenção federal feito pelo procurador-geral, como mostram as pesquisas de opinião. A precisa análise jurídica e político-institucional feita por Roberto Gurgel no pedido encaminhado ao STF permanece atual após a eleição de Rosso, que se tornou ontem o quarto governador do DF num intervalo de somente 67 dias. Consta do documento:
“O instituto da Intervenção, entre outros objetivos, foi posto pela norma constitucional para assegurar a permanência dos alicerces federativos, diante das diversas situações fáticas que possam fragilizá-los ou pôr em risco sua estrutura. A medida postulada, notoriamente excepcional, busca resgatar a normalidade institucional, a própria credibilidade das instituições e dos administradores públicos bem como resgatar aobservância necessária do princípio constitucional republicano, da soberania popular – atendida mediante a apuração da responsabilidade dos eleitos – e da democracia.”
Trata-se, evidentemente, de matéria delicada e sujeita a interpretações diversas. Mas, à luz do artigo 34 da Constituição Federal, optar pela intervenção significa compreender que os acontecimentos em determinada unidade federativa comprometem o princípio republicano, o sistema representativo e o regime democrático.
Salta à vista que é exatamente isso o que ocorre no DF. A Câmara Legislativa, obviamente, não tem nenhuma condição de exercer o seu papel de investigação, já que está mais empenhada em proteger os seus integrantes. Os representantes eleitos distanciaram-se dos pressupostos republicanos, que incluem o exercício do mandato popular e a correta apuração das irregularidades, e tudo isso certamente compromete a credibilidade de nossa democracia.
Ao contrário do que supõem os tristes personagens que povoam a política brasiliense, a intervenção jamais foi tão necessária. Até aqui o Poder Judiciário se portou de maneira impecável em relação à sequência de revelações escabrosas que ganharam o noticiário da imprensa internacional na garupa de vídeos inesquecíveis. E é a Justiça a última esperança para a cidadania, humilhada primeiro pelos escândalos noticiados, agora pela farsa encenada pelas elites políticas locais.
Há 50 anos, as pessoas que se envolveram na aventura de construir Brasília vieram para o Planalto Central atrás de um sonho. O sonho de um país moderno e surpreendente, tão bem retratado pelo traçado original de Lúcio Costa e pelas curvas de Oscar Niemeyer, pela sua mágica de fazer com que o concreto, de forma improvável, parecesse flutuar no ar. Brasília merece que esse sonho não seja esmagado pelos senhores de paletó e gravata que insistem em transformar a utopia modernista em pesadelo. Esses senhores falharam. A cidade, não.
Foi extraordinário o avanço obtido com a prisão de Arruda e o afastamento dele e de Paulo Octávio. Considerando o tamanho do ultraje, Brasil e Brasília merecem mais. Intervenção já!
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