Somos um casal gay, Toni Reis e David Harrad. Na hora de atualizar este relato (maio de 2015), Toni tem 50 anos e David 57. Vivemos juntos há 25 anos. Por volta do ano 2000, começamos a discutir a possibilidade de adotarmos filhos. Idealmente, queríamos uma menina e um menino de aproximadamente cinco ou seis anos de idade. Em 2005, demos entrada na Vara da Infância e Juventude da nossa cidade a fim de obter a habilitação para adoção conjunta, enquanto casal, assim como um casal heterossexual faria. Para evitar toda a burocracia que isso viria a causar, pela lei cada um de nós poderia ter adotado como solteiro, sem levantar a questão de sermos um casal. Mas para nós havia dois fatores importantes em jogo: a igualdade de direitos garantida pela Constituição Federal; e o bem-estar das crianças. Se adotássemos separadamente como solteiros e um de nós viesse a falecer, o outro não teria automaticamente o direito da guarda do filho adotado pelo falecido, prejudicando assim a segurança do filho criado conjuntamente pelos dois pais.
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Foi então que começou uma luta que durou dez anos. Nosso caso foi o primeiro em nossa cidade e ao juiz faltava precedentes para embasar a sua sentença. Quase três anos depois decidiu que pudéssemos adotar conjuntamente, mas restringiu a idade e o sexo das crianças. Teriam que ser maiores de dez anos e somente do sexo feminino. Achamos que a decisão do juiz foi discriminatória e recorremos. Na segunda instância ganhamos por unanimidade o direito de adotar conjuntamente sem qualquer restrição. No entanto, um promotor do Ministério Público recorreu e levou o caso ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), alegando que casais do mesmo sexo não formam uma entidade familiar e, portanto, não poderiam adotar conjuntamente. O STF rejeitou o recurso porque não dizia respeito à matéria em julgamento, qual seja a restrição quanto à idade e ao sexo das crianças. O STJ só preferiu sua decisão em 2014, fazendo com que continuássemos sem poder adotar na nossa comarca. Uma demora judicial um tanto cruel, tanto para nós quanto para as crianças à espera de adoção. Mesmo assim, o promotor recorreu novamente da decisão do STJ e a decisão da ministra Carmem Lúcia do STF, a nosso favor, foi dada em março de 2015, dez anos após o início do processo de adoção.
Mas nem tudo estava perdido. Em 5 de maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal decidiu por unanimidade que para os efeitos da lei a união estável entre casais homoafetivos há de ser considerada igual à união estável entre casais heterossexuais. Essa decisão tem desdobramentos no campo da adoção também. Em junho do mesmo ano, tivemos a oportunidade e a felicidade de fazer uma palestra sobre adoção por casais homoafetivos no XVI Encontro Nacional de Apoio à Adoção. Lá conhecemos uma juíza de outro estado que era bastante sensibilizada com o nosso caso. Passados alguns meses, recebemos um telefonema dizendo que essa juíza tinha sob seu cuidado um menino de dez anos que talvez se daria bem conosco e nos convidando para conhecê-lo.
Após certa hesitação, visto que o menino – Alyson – não era da idade que tínhamos imaginado, aceitamos e passamos dois dias com ele no mês de setembro de 2011. Alyson relata que quando falaram para ele na Vara da Infância que havia um casal gay que estava querendo adotar, no começo disse que não queria conhecer, muito menos ser adotado por eles. Mas com o tempo foi se acostumando com a ideia e finalmente aceitou conhecê-los.
PublicidadeFomos primeiro ao Fórum onde a psicóloga responsável pelo caso de Alyson relatou os principais pontos do seu histórico. Em seguida fomos apresentados a Alyson e passamos juntos uma tarde agradável. No início da noite levamos Alyson de volta para a casa da família acolhedora com quem estava morando. Na manhã do dia seguinte, ao ir buscá-lo, tivemos uma conversa bastante demorada com a mãe e o pai acolhedores e estes deram suas opiniões sobre Alyson e a história dele.
Almoçamos no centro da cidade com Alyson e um casal de gays amigos nossos. No tempo que nós, Toni e David, passamos sozinhos com o Alyson durante a visita, tivemos uma ótima impressão dele e já estávamos com vontade de adotá-lo. Alyson diz que a impressão que ele tinha de gays era de pessoas nojentas e horrorosas. Com a aproximação a nós e nossos amigos, afirma que inicialmente se sentiu bem e mal ao mesmo, porque nunca tinha convivido com gays. Diz que com o tempo foi “percebendo que são muito melhores que pensava e adorou”, acrescentando que agora os ama. Para não interromper os estudos de Alyson, resolvemos que seria melhor ele vir morar conosco definitivamente apenas em dezembro, após o fim do ano letivo. Com o intuito de manter o contato frequente com Alyson, compramos um celular para ele. Fomos um tanto ingênuos nesse sentido, o celular serviu mais como brinquedo e em poucos dias ele pôs uma senha que depois não conseguiu desbloquear, de modo que não deu certo a nossa ideia de ter o celular como um meio de comunicação direta entre nós. Mesmo assim ligávamos quase que diariamente para ele nesse período por meio do celular da mãe acolhedora. Sentíamos muita saudade.
Durante o período de habilitação para adoção e subsequente espera, lemos vários livros sobre o tema e participamos de vários cursos de preparação para adoção, tanto de crianças mais novas como mais velhas, inclusive com depoimentos de pais e mães adotivos quanto às suas experiências com a adoção tardia. Como resultado, sabíamos que a adaptação poderia ser um processo marcado por algumas dificuldades, principalmente a questão da criança querer testar os limites.
Um mês depois de conhecê-lo, Alyson veio passar uma semana conosco, para nos conhecer melhor e a nossa cidade e amigos e conhecidos também. Nessa visita, a convivência com Alyson foi muito boa na maioria dos aspectos, mas também tivemos situações de birra e frustração quando ele não podia fazer tudo do jeito que queria. Foi muito importante ter tido a oportunidade prévia de participar nos cursos para não ser pegos de surpresa com esses comportamentos. Mesmo assim, saber lidar com eles não foi tão fácil inicialmente, talvez porque nunca tínhamos sido pais e nós também estávamos passando por isso pela primeira vez. Por sua vez, Alyson afirma que se deu bem na visita e se sentiu feliz. Diz que foi aí que começou a gostar de nós.
Ainda, um mês mais tarde, fomos até a cidade de Alyson passar o final de semana com ele na ocasião de seu 11º aniversário. Novamente, foram três dias de encontros e desencontros nas expectativas e vontades de cada um à medida que fomos nos conhecendo melhor. A birra surgia principalmente quando Alyson queria que comprássemos tudo que chamava a atenção dele, como por exemplo uma prancha de surfe, óculos de natação, um relógio… Nesse início da relação, dizer “não” pesava para nós, mas foi necessário, apesar da reação dele, para ir estabelecendo limites. Por outro lado, conhecemos no Alyson um menino inteligente, bem humorado, comunicativo, encantador, carinhoso e extramente sociável. Participamos de um evento durante essa visita e enquanto nós dois queríamos ficar juntos com ele, ele estava perfeitamente à vontade sozinho, conhecendo novas pessoas e conversando, de forma bastante independente e responsável. Alyson afirma que nós já cuidávamos dele “como se fosse nosso filho, mesmo não sendo adotado ainda e apesar de não ser filho de sangue.”
É preciso explicar que Alyson vivenciou uma experiência dolorosa de separação de sua família, da qual foi tirado por motivo de maus tratos. Afirma que passou por sete abrigos. Fugia do abrigo e voltava para casa, sem que a sua mãe o acolhesse, passando então a morar em outro abrigo e assim sucessivamente. Sua revolta era tamanha que nas audiências com a juíza ele precisava ser escoltado por policiais para que não fugisse. Nos abrigos, a maioria mantida por organizações de base religiosa, Alyson conta que sofria repressão e castigos bastante desumanos… ficar de cabeça para baixo apoiado numa parede, ficar ajoelhado em grãos de feijão, ficar sem comer à noite. Quando conhecemos Alyson, ele já estava morando havia mais de um ano com a família acolhedora mencionada acima, dentro de um programa de abrigamento do município onde morava. Apesar dele ter criado um forte vínculo afetivo com a mãe acolhedora, lá também a influência religiosa era grande: o pai acolhedor era testemunha de Jeová. Alyson tem disposição artística e criativa e nesses ambientes sofreu forte repressão. Quando visitávamos a casa deles, o pai acolhedor fazia questão de pegar a Bíblia e ler em voz alta para nós os capítulos que podem ser interpretados como condenando a homossexualidade.
No dia 19 de dezembro de 2011 fomos novamente à cidade de Alyson para receber a guarda provisória dele, por um período de convivência de seis meses. Em todo esse processo de aproximação ao Alyson e até nas formalidades legais fomos abençoados com a solidariedade e os esforços de muitas pessoas para que tudo desse certo. Na audiência Alyson estava bastante triste por ter que deixar a casa da família acolhedora e falou para a juíza que para ele ir morar conosco era uma decisão bastante difícil porque havia criado vínculos com essa família.
Apesar dos recursos do promotor do Ministério Público junto ao STF e STJ contra nosso pedido de adoção, a juíza responsável pelo caso do Alyson entendeu que como os recursos não tinham efeitos suspensivos, o que estava valendo enquanto o STJ não desse sua decisão era a decisão do Tribunal de Justiça do Paraná de que poderíamos adotar em conjunto sem quaisquer restrições.
Chegando à nossa casa, Alyson diz que às 2h30 da madrugada do primeiro dia ele acordou, levantou e andou pela casa para conhecer. Diz que gostou do espaço em que passou a morar.
No mesmo dia, fomos fazer a carteira de identidade de Alyson, para que dali a algumas semanas ele pudesse viajar para o exterior conosco (sem a carteira de identidade, não seria possível a saída dele do Brasil). Durante a espera no Instituto de Identificação Alyson disse, “sabiam que eu tenho nojo de homossexuais?” Mais tarde no mesmo dia, retomamos essa conversa e falamos que havia nos ofendido, sobretudo porque sabia muito bem que éramos um casal gay antes de aceitar ser adotado por nós. Ele se desculpou e disse que falou aquilo devido ao que aprendeu em função das convicções religiosas dos abrigos e da família acolhedora. Ele tinha um preconceito parecido em relação às religiões de matriz africana e à igreja católica. Na primeira visita de Alyson a nossa cidade em outubro de 2011, fomos almoçar um dia em um restaurante mineiro onde havia enfeites rústicos, como galinhas, panelas de barro com fumaça saindo etc. Alyson disse que não queria comer lá e queria sair o mais rápido possível por causa da “macumba”. De forma semelhante, ao passar na frente da catedral, que estava com as portas abertas, ele também fez comentários depreciativos sobre a igreja católica. Quase um ano depois, um dia que estávamos passando novamente na frente da catedral, por iniciativa própria ele entrou para conhecer e saiu apenas descrevendo o que viu, desta vez sem fazer julgamentos, mostrando o quanto conseguiu trabalhar os preconceitos que havia adquirido.
Nos cursos sobre adoção tardia que fizemos, foram vários os relatos de “regressão”, isto é, quando a criança volta a ter comportamentos que seriam de crianças muito mais novas. No nosso caso isto não ocorreu muito, apenas no sentido de querer dormir junto conosco, de querer ser levado de “cacunda” (apesar da idade, do tamanho e peso), de fazer birra, chorar e até espernear, e de ter um comportamento mais infantil quando na companhia de crianças menores. Nas primeiras semanas, mexia muito nos armários e gavetas, procurando conhecer e tirando coisas que interessavam a ele. Meses depois ele devolveu grande parte dessas coisas. O pedido de dormir junto veio logo na primeira noite em nossa casa. A solução foi permitir que dormisse em um colchão no chão no nosso quarto, mas não na mesma cama, deixando claro que era uma exceção. Durante os primeiros anos, de vez em quando, talvez uma vez a cada mês ou dois meses, ele ainda pedia para dormir em nosso quarto. Agora não pede mais.
Fomos passar duas semanas de férias em Balneário Camboriu no natal e ano novo daquele ano (2011). Ficamos num apartamento alugado. Alyson fez amizade com uma família no mesmo andar do prédio que tinha um filho mais novo que ele. Também, dois amigos nossos passaram parte das férias junto conosco, de modo que o Alyson teve várias pessoas com quem conversar e sair, além de nós dois. O tempo foi chuvoso, mas aproveitamos o máximo possível para sair e passear. Nesse período de convivência mais próxima, as dificuldades no relacionamento que surgiram eram no sentido do Alyson desobedecer, responder de forma mal educada e ter momentos de birra acompanhados de choro. Não eram situações constantes e tivemos ótimos momentos juntos também. Alyson diz que as férias foram o melhor momento que teve até então com os seus pais.
Todo ano desde 2001, durante as férias de fim de ano fazemos nosso planejamento pessoal para o ano que vem. A metodologia envolve dois passos: uma análise “FOFA” – de Fortalezas e Fraquezas pessoais e Oportunidades e Ameaças externas. Em cima disso, é feito um plano a fim de aproveitar as coisas boas identificadas e achar respostas para as coisas ruins no decorrer do próximo ano, na medida do possível. Cada um faz seu planejamento individual e em seguida é feito um planejamento só do casal. Mostramos para Alyson e o ajudamos a fazer o planejamento dele também.
Na segunda semana de janeiro fomos para Montevidéu para a defesa da tese de doutorado do Toni. Também nos acompanhou na viagem uma das “avós” adotivas do Alyson, a professora Araci. Alyson e Araci se deram muito bem e foi aí que surgiu uma diferenciação no comportamento do Alyson, que um dia chegou a dizer “Avó é para obedecer, pais são para desobedecer”. Dito feito, com a Araci ele se comportava perfeitamente, enquanto conosco continuava testando limites, às vezes desobedecendo e respondendo.
De volta no Brasil, foi num desses episódios de desobedecer e responder que surgiu o “contrato” ou “combinado”. Inicialmente, o castigo que demos ao Alyson foi de ficar no quarto dele em “reflexão” sobre o acontecido. No início ele chorava e se comportava como uma criança menor. Parecia que só entendia quando gritava com ele e botava de castigo. Sem dúvida, uma herança das convivências anteriores. No entanto, a mudança não demorou. Logo não chorava mais e foi saindo do quarto para pedir desculpas e conversar. Agora muito dificilmente é mandado para o quarto, e em vez disso há um tipo de “reunião familiar” para discutir o que aconteceu e achar soluções. Foi nessas conversas que se estabeleceram as “cláusulas” do contrato, que foi feito por escrito e assinado. Para cada situação, conversamos juntos o que estava aceitável ou não e qual seria o “castigo” em caso de repetência. Logo foi criado um sistema de multas. Conforme a gravidade da falta, a multa era maior, e era descontado da mesada do Alyson (tem um livro caixa para isso). Tinha tabela de multas, formulário de aplicação da multa e a pessoa que aplicava e o próprio Alyson assinava. O contrato foi incorporado ao planejamento do Alyson feito na virada do ano e inicialmente todo o documento foi revisto uma vez por mês e modificado conforme necessário.
No início o contrato cresceu rapidamente, mas depois estabilizou até que muita coisa já passou a ser vencida e houve poucos acréscimos de um mês para outro. Depois de seis ou sete meses, começamos apenas a ver mensalmente o que estava “pegando” em vez de rever o contrato inteiro. A metodologia do contrato deu certo para nós. Alyson começou a responder e desobedecer muito menos e não foi um processo de imposição, mas sim de diálogo e estabelecimento de limites claros. O contrato serviu e ainda serve de norte em situações de desentendimento. Atualmente, o que ainda cria situações de “estresse” dentro de casa é o não cumprimento do contrato ou da palavra e a enrolação, mas estamos sempre trabalhando para melhorar isso. Agora, dificilmente temos que recorrer ao contrato ou às multas.
Foi preciso ter muita paciência e autocontrole para não “perder as estribeiras” com Alyson nesse primeiro período. Numa sexta-feira à noite, já depois de vários meses de convivência, chegamos a uma crise, provocada por um gesto bobo mas que foi a gota d’água no processo do teste dos limites. Alyson queria ficar mais tarde do que combinado na aula de balé (até meia-noite) e não deixamos. Em vez de aceitar, ele ficou insistindo, fazia caras e bocas e então começou a soluçar a fim de que tivéssemos dó dele e deixássemos fazer o que queria. Seguiu-se uma discussão acalorada e prolongada que quase resultou na decisão de devolver o Alyson em função de sua persistência em desobedecer e o efeito que os desentendimentos estavam tendo na relação entre nós, Toni e David. No final, fizemos as pazes e Alyson ficou conosco. O que não se pode fazer é ceder ao dó que se tem pelo que a criança já passou, deixando de corrigi-la com firmeza. Os limites são essenciais para a convivência harmoniosa, não só agora como no futuro. Caso contrário, a criança poderá tomar conta. Por outro lado, não se pode esquecer tudo o que a criança passou antes de ser adotada, sobretudo no caso de uma criança mais velha. Às vezes é preciso ter a compreensão disso e do fato de que ninguém muda de hábitos e comportamentos da noite para o dia. A adaptação é um processo gradativo, para todos os envolvidos. Também não dar para pensar que tudo vai ser um “mar de rosas” depois do período de convivência e da adoção definitiva. As dificuldades na relação podem continuar a surgir periodicamente, assim como em qualquer família.
Quando Alyson veio morar conosco o quarto dele estava vazio. Não compramos nada com antecedência porque queríamos que ele participasse do processo da escolha das decorações e dos móveis, para que sentisse que fossem dele. Enquanto o quarto dele não ficava pronto, ele usava o quarto de hóspedes. Com o mesmo intuito de fazer com que Alyson se sentisse pertencente, criamos uma espécie de “família estendida”, com madrinhas e padrinhos e vovós que nos visitam de vez em quando e com os quais Alyson tem contato periódico. Uma das madrinhas tem uma casa de praia e ainda durante as férias de fim de ano tivemos a oportunidade de passar alguns dias lá. Quando o quarto do Alyson ficou pronto, fizemos uma festa de inauguração com a família estendida e amigos numa espécie de reafirmação de boas-vindas para Alyson em nosso meio.
Percebemos que muitas vezes desperta curiosidade nas pessoas no sentido de querer saber quem desempenha quais papéis num relacionamento entre duas pessoas do mesmo sexo. David, que foi casado por dez anos com uma mulher, afirma que na convivência cotidiana não há diferença alguma. Procuramos dividir as tarefas conforme as capacidades e habilidades de cada um. Temos um escritório em casa e é lá que trabalhamos. Para ajudar nas tarefas domésticas, temos a felicidade de contar com o apoio da Romy, já há quatorze anos. Ele trabalha de segunda à sexta, cuida da limpeza, das roupas a lavar e passar e faz o almoço, sempre delicioso por sinal! Nos fins de semana, feriados e dias que a Romy não vem trabalhar, é o David que tende a cuidar mais desses aspectos. Na relação com Alyson, estamos procurando fazer com que ele também cuide da organização da casa, do quarto dele e ajude com algumas tarefas, mas é um processo lento e a tendência dele é de deixar as coisas desarrumadas. Em termos da educação e dos cuidados com Alyson, Toni é mais uma figura de autoridade, embora brinque bastante, enquanto David tende a se preocupar com os aspectos mais práticos, como acordá-lo de manhã para ir para escolar, ir fazer compras juntos… No entanto, Toni viaja bastante e nesses momentos David necessariamente acaba assumindo mais a figura de autoridade também. Ambos acompanham os deveres de casa, saem juntos nos fins de semana e procuram proporcionar uma vida em família. Na opinião de Alyson, “Toni é exigente, carinhoso, afetuoso, fofo e sempre de bom humor (feliz). David é maravilhosamente bonzinho é do tipo de pessoa que não gosta de estresse em exatos momentos. Adora fazer as coisas para a gente com muito carinho e amor. Tudo que ele faz é maravilhoso, o jeito de falar dele é fofo, bem britânico!”
Em fevereiro de 2012, Alyson começou no 6º ano do ensino fundamental. É um colégio da rede pública estadual de ensino. No primeiro dia David foi até a escola com Alyson de manhã cedo e conversou com as pedagogas sobre o histórico de Alyson e o fato dele ter dois pais gays. A resposta foi que a única novidade era ter dois pais; já tinha outros/as estudantes com duas mães e havia uma professora transexual. Toni foi buscar Alyson na hora do almoço e conversou com a diretora e outros docentes. Foi importante fazer isso para já deixar tudo às claras e ter o corpo docente preparado em caso de nosso arranjo familiar causar problemas de “bullying” para Alyson na escola. Em casa já havíamos abordado isso com ele, especialmente no planejamento e na identificação das ameaças externas. Também foi importante ter essa aproximação com a escola para poder acompanhar o desempenho e o comportamento dele. Já fomos lá várias vezes, tanto por termos sido chamados como por conta própria. Apesar de ser criativo, vivaz e líder, Alyson também é curioso, tem dificuldade em se concentrar e “se esparrama” (palavras dos/das professores/as) em vez de sentar na carteira. São coisas que estão foram sendo trabalhadas gradativamente, tanto pelos/as professores/as quanto por nós. Acompanhamos de perto o caderno dele e os trabalhos de casa, ajudando quando precisa, verificando se fez e trabalhando junto na preparação para as provas. O rendimento escolar melhorou muito no segundo bimestre, com média acima de nove. No entanto, não dá para bobear! É preciso insistir. Para isso também foi estabelecido no contrato um horário para estudar em casa. Depois de dois anos na escola, Alyson estava chegando com frequência em casa com bilhetes sobre o mau comportamento dele, além das ligações recebidas das pedagogas. No final, percebemos que não era só um caso de disciplina, já que nossas medidas de disciplina em casa não estavam tendo mais efeito sobre o comportamento dele na escola. A solução foi um psicólogo. Depois de um ano consultando com o psicólogo, Alyson melhorou muito e diminuíram bastante as reclamações sobre o comportamento dele na escola.
Alyson considera que a escola é muito boa: “parece até privada de tão boa que é. As pedagogas são ótimas. Também ajudam a dar limites para mim. Meus amigos são muito legais. No entanto, às vezes tem colegas que fazem brincadeiras de mau gosto como, por exemplo, escrever atrás do armário (já duas vezes) coisas pejorativas sobre a minha família homoafetiva.”
Alyson passou a fazer natação duas vezes por semana e também começou a frequentar os escoteiros. Atualmente também faz dança quatro tardes por semana num projeto de extensão da Universidade Federal do Paraná, além de ter aulas de inglês, japonês e matemática, Têm sido meios para Alyson também ter uma vida própria, de certa forma independente de nós, porém com acompanhamento, além de gastar a energia que ele tem em quantidades copiosas.
Em julho de 2012, após o final do período de convivência, houve a adoção definitiva do Alyson. Somos um casal bastante público no sentido de sempre termos achado importante dar visibilidade à questão gay e mostrar para a sociedade que não se trata de um “bicho de sete cabeças”. Junto com Alyson, resolvemos tornar público também o fato da adoção dele por dois pais gays. A notícia gerou um debate acirrado no maior jornal do nosso estado, que durou mais de uma semana. Valeu a pena porque trouxe o assunto à tona e serviu para diminuir a polêmica, inclusive o desfecho do debate foi muito mais positivo do que negativo para a adoção homoafetiva.
Com a adoção definitiva, fomos ver a documentação de Alyson. A carteira de identidade que ele fez quando veio morar conosco foi feito com seu nome anterior. Com a nova certidão de nascimento em mãos, na qual no item “filiação” Alyson tem dois pais, fomos fazer o novo RG. A atendente, muito educada e atenciosa, não conseguiu fazer porque não constava o nome da mãe do Alyson, necessário para o sistema. Tivemos que ir até o diretor, que depois de se certificar de toda a documentação, inclusive a sentença da adoção, autorizou. Agora Alyson tem RG com seu novo nome e o nome de seus dois pais. Ao fazer o CPF, ocorreu a mesma coisa. Nos Correios não foi possível fazer o CPF porque faltava o nome da mãe. Mandaram procurar a Receita Federal, onde o atendente também não conseguiu fazer pelo mesmo motivo. Finalmente a chefe dele venceu a burocracia e emitiu o CPF do Alyson.
Um ano depois de vir morar conosco, Alyson disse que “nesses últimos três meses eu já estou confiando nos meus pais, inclusive coisas íntimas, meus desejos, eu não preciso disfarçar. Eles não gostam de enrolação, de enganação e tampouco de mentira . Nosso diálogo é aberto e franco, mesmo que de vez em quando rola um ‘estresse básico’.”
Para nós, Toni e David, tem foi um ano de muita aprendizagem, uma vez que estávamos sendo pais pela primeira vez. Crescemos como pessoas e ficamos muito felizes de formar uma família com Alyson. Valeu a pena a adoção tardia. Para completar nosso sonho, só faltava adotar uma filha!
Passaram-se dois anos e alguns meses e pouco antes da páscoa de 2014 recebemos um comunicado do serviço social da mesma Vara de onde veio o Alyson, convidando para conhecer a Jéssica, que acabara de completar 11 anos. Tinha um porém: ela tinha um irmão, Filipe, de 8 anos, e não podia ser separada dele. Fomos os três, Toni, David e Alyson, passar 5 dias com Jéssica e Filipe durante a páscoa. Tivemos a felicidade de poder ficar no apartamento dos nossos amigos gays que Alyson conheceu quando da nossa primeira visita a ele em 2011 e que passaram a ser os padrinhos dele. Eles também estavam com a guarda de um menino e uma menina. Mesmo assim, num gesto muito nobre, abriram a casa deles para nós três e mais a Jéssica e o Filipe, mas não conhecendo e não sabendo se o processo iria dar certo ou não. Deu certo e foi com muito choro que nos separamos de Jéssica e Filipe no final da primeira visita. Filipe falou “isso é o pior dia da minha vida. Gostei de vocês e agora vocês vão me deixar e ir embora”. Em menos de duas semanas fomos para lá de novo e passamos mais cinco dias juntos no feriado de 1º de maio. No final da visita ganhamos a guarda provisória de Jéssica e Filipe e retornamos os cinco para Curitiba.
A adaptação com Jéssica e Filipe tem sido muito mais harmoniosa do que com o Alyson, talvez por estarem juntos. Fizemos um contrato básico com eles e uma rotina diária para os três. Tem funcionado muito bem e não precisamos agir com o mesmo rigor que tivemos que agir com Alyson. Depois de um ano juntos, estamos convivendo muito bem como uma família.
“ACÓRDÃO DA MINISTRA CARMEM LÚCIA DO STF, DE 5 DE MARÇO DE 2015
ADVOGADO : 28621/PR – GIANNA CARLA ANDREATTA
VEICULAÇÃO : 17/03/2015 00:00:00
BOLETIM : SEM NOTA
ÓRGÃO : SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
VARA : SECRETARIA JUDICIÁRIA
CIDADE : BRASÍLIA
JORNAL : DIÁRIO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
PÁGINA : 156
EDIÇÃO : 52/2015
RECURSOS
RECURSO EXTRAORDINÁRIO 846.102 (722) ORIGEM : AC – 529976101 – TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARANÁ PROCED. : PARANÁ RELATORA :MIN. CÁRMEN LÚCIA RECTE.(S) : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ PROC.(A/S)(ES) : PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARANÁ RECDO.(A/S) : A L M DOS R RECDO.(A/S) : D I H ADV.(A/S) : GIANNA CARLA ANDREATTA ROSSI DECISÃO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA E RESPECTIVAS CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS. ADOÇÃO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE N. 4.277. ACÓRDÃO RECORRIDO HARMÔNICO COM A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO AO QUAL SE NEGA SEGUIMENTO. Relatório 1. Recurso extraordinário interposto com base na al. a do inc. III do art. 102 da Constituição da República contra o seguinte julgado do Tribunal de Justiça do Paraná: “APELAÇÃO CÍVEL. ADOÇÃO POR CASAL HOMOAFETIVO. SENTENÇA TERMINATIVA. QUESTÃO DE MÉRITO E NÃO DE CONDIÇÃO DA AÇÃO. HABILITAÇÃO DEFERIDA. LIMITAÇÃO QUANTO AO SEXO E À IDADE DOS ADOTANDOS EM RAZÃO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL DOS ADOTANTES. INADMISSÍVEL. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. APELO CONHECIDO E PROVIDO. 1. Se as uniões homoafetivas já são reconhecidas como entidade familiar, com origem em um vínculo afetivo, a merecer tutela legal, não há razão para limitar a adoção, criando obstáculos onde a lei não prevê. 2. Delimitar o sexo e a idade da criança a ser adotada por casal homoafetivo é transformar a sublime relação de filiação, sem vínculos biológicos, em ato de caridade provido de obrigações sociais e totalmente desprovido de amor e comprometimento” (doc. 6). Os embargos de declaração opostos foram rejeitados. 2. O Recorrente alega contrariado o art. 226, § 3º, da Constituição da República, afirmando haver “duas questões jurídicas que emergem do contexto apresentado, para que se possa oferecer solução ao presente recurso: i) se há possibilidade de interpretação extensiva do preceito constitucional para incluir as uniões entre pessoas do mesmo sexo na concepção de união estável como entidade familiar; ii) se a interpretação restritiva do preceito constitucional incorreria em discriminação quanto à opção sexual. (.) Logicamente, nem dois homens e uma mulher; nem duas mulheres e um homem (fatos estes que não chegam a ser tão raros em certas regiões do Brasil); nem dois homens ou duas mulheres; foram previstos pelo constituinte como configuradores de uma união estável, ainda que os integrantes dessas relações, hipoteticamente consideradas, coabitem em caráter análogo ao de uma união estável, ou seja, de forma pública e duradoura, e estabelecida com o objetivo de constituição de família. (.) Com isso, a nível constitucional, pelo que foi dito, infere-se, em primeiro lugar, que não há lacuna, mas sim, uma intencional omissão do constituinte em não eleger (o que perdura até a atualidade) a união de pessoas do mesmo sexo como caracterizadores de entidade familiar. (.) E vamos além, a generalização, no lugar da individualização do tratamento jurídico a ser dado a situações materialmente diversas, poderá, sim, se não respeitadas e previstas as idiossincrasias e particularidades dos relacionamentos homoafetivos, vir em maior prejuízo que benefício aos seus integrantes, ferindo axialmente o princípio da igualdade, por tratar igualmente situações desiguais” (doc. 7). Apreciada a matéria trazida na espécie, DECIDO. 3. Razão jurídica não assiste ao Recorrente. STF – DJe nº 52/2015 Divulgação: terça-feira, 17 de março de 2015 Publicação: quarta-feira, 18 de março de 2015 157 4. No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 132, Relator o Ministro Ayres Britto, por votação unânime, este Supremo Tribunal Federal deu interpretação conforme ao art. 1.723 do Código Civil, “para dele excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, entendida esta como sinônimo perfeito de família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva” (DJe 14.10.2011). No voto, o Ministro Relator ressaltou que “a Constituição Federal não faz a menor diferenciação entre a família formalmente constituída e aquela existente ao rés dos fatos. Como também não distingue entre a família que se forma por sujeitos heteroafetivos e a que se constitui por pessoas de inclinação homoafetiva. Por isso que, sem nenhuma ginástica mental ou alquimia interpretativa, dá para compreender que a nossa Magna Carta não emprestou ao substantivo “família” nenhum significado ortodoxo ou da própria técnica jurídica. Recolheu-o com o sentido coloquial praticamente aberto que sempre portou como realidade do mundo do ser. Assim como dá para inferir que, quanto maior o número dos espaços doméstica e autonomamente estruturados, maior a possibilidade de efetiva colaboração entre esses núcleos familiares, o Estado e a sociedade, na perspectiva do cumprimento de conjugados deveres que são funções essenciais à plenificação da cidadania, da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho. Isso numa projeção exógena ou extramuros domésticos, porque, endogenamente ou interna corporis, os beneficiários imediatos dessa multiplicação de unidades familiares são os seus originários formadores, parentes e agregados. Incluído nestas duas últimas categorias dos parentes e agregados o contingente das crianças, dos adolescentes e dos idosos. Também eles, crianças, adolescentes e idosos, tanto mais protegidos quanto partícipes dessa vida em comunhão que é, por natureza, a família. Sabido que lugar de crianças e adolescentes não é propriamente o orfanato, menos ainda a rua, a sarjeta, ou os guetos da prostituição infantil e do consumo de entorpecentes e drogas afins. Tanto quanto o espaço de vida ideal para os idosos não são os albergues ou asilos públicos, muito menos o relento ou os bancos de jardim em que levas e levas de seres humanos abandonados despejam suas últimas sobras de gente. Mas o comunitário ambiente da própria família. Tudo conforme os expressos dizeres dos artigos 227 e 229 da Constituição, este último alusivo às pessoas idosas, e, aquele, pertinente às crianças e aos adolescentes. Assim interpretando por forma não-reducionista o conceito de família, penso que este STF fará o que lhe compete: manter a Constituição na posse do seu fundamental atributo da coerência, pois o conceito contrário implicaria forçar o nosso Magno Texto a incorrer, ele mesmo, em discurso indisfarçavelmente preconceituoso ou homofóbico. Quando o certo – data vênia de opinião divergente – é extrair do sistema de comandos da Constituição os encadeados juízos que precedentemente verbalizamos, agora arrematados com a proposição de que a isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. Entendida esta, no âmbito das duas tipologias de sujeitos jurídicos, como um núcleo doméstico independente de qualquer outro e constituído, em regra, com as mesmas notas factuais da visibilidade, continuidade e durabilidade”. O acórdão recorrido harmoniza-se com esse entendimento jurisprudencial. Nada há, pois, a prover quanto às alegações do Recorrente. 5. Pelo exposto, nego seguimento a este recurso extraordinário (art. 557, caput, do Código de Processo Civil e art. 21, § 1º, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal). Publique-se. Brasília, 5 de março de 2015. Ministra CÁRMEN LÚCIA Relatora .-“
* Toni Reis e David Harrad vivem juntos há 25 anos e são casados oficialmente desde 2011. São autores do livro A história de um casal gay.
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