*Por Patrícia Figueiredo, para a Agência Pública
O debate sobre a adoção de um novo sistema eleitoral no Brasil causou um impasse entre deputados da base governista e da oposição. No modelo previsto na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 77/2003, os eleitos para a Câmara dos Deputados em 2018 e 2020 serão necessariamente aqueles com mais votos em cada estado. Pelo esquema em vigor hoje, os votos dos candidatos e da legenda são somados, e o total de cada coligação determina quantas cadeiras cada grupo poderá ocupar.
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Ao criticar o novo formato, o deputado federal Alessandro Molon (Rede-RJ) alegou, no plenário da Câmara, que o distritão dificultaria a renovação do parlamento, aumentando as taxas de reeleição. O parlamentar disse ainda que o modelo desperdiça votos e dificulta a representação de mulheres e negros. O Truco – projeto de checagem de fatos da Agência Pública – analisou estudos internacionais e consultou cientistas políticos brasileiros, que confirmaram como desvantagens reais do distritão as consequências levantadas por Molon em seu discurso. Por isso, a frase foi classificada como verdadeira.
Procurado pela reportagem, o deputado forneceu uma justificativa por e-mail, citando reportagens e entrevistas, para comprovar a sua afirmação, além de dados oficiais que refletem a participação feminina na Câmara. Uma das matérias mencionadas por Molon inclui um estudo, feito pelo cientista político Jairo Nicolau, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que mostra que 30,6 milhões de votos teriam sido desprezados em 2014 caso o distritão fosse o modelo eleitoral adotado nas eleições proporcionais daquele ano. O número é resultado da soma dos votos recebidos por candidatos que não foram eleitos, utilizados em 2014 no cálculo do quociente eleitoral que ajudou a eleger outros deputados federais dos mesmos partidos ou coligações.
Relativo apenas às eleições brasileiras de 2014, o dado não é suficiente para comprovar a afirmação de Molon, que avalia o distritão como um sistema que sempre desperdiça votos. O Truco buscou outras fontes para saber se isso já ocorre em países que adotam esse modelo de escolha dos parlamentares.
Um dos bancos de dados consultados foi a Rede de Conhecimento Eleitoral ACE. Desde 1998, o grupo composto por oito organizações independentes de análise eleitoral possui um dos mais completos bancos de dados sobre eleições do mundo. Além de informações sobre os sistemas eleitorais usados em mais de 200 países, o projeto reúne também detalhes do funcionamento de cada um deles e destaca suas vantagens e desvantagens.
PublicidadeO distritão é chamado, em inglês, de Single Non-Transferable Vote (SNTV) – ou voto único não-transferível. De acordo com os dados do ACE, trata-se de um modelo adotado em poucos países no mundo. Apenas Afeganistão, Ilhas Pitcairn e Vanuatu utilizam o sistema para a totalidade das eleições legislativas; na Jordânia, Indonésia e em Taiwan, o modelo é usado apenas para parte das cadeiras disponíveis no parlamento.
Segundo a enciclopédia do ACE, o sistema SNTV “dá origem a muitos votos desperdiçados, especialmente se os requisitos de nomeação forem abrangentes, permitindo que muitos candidatos se apresentem”. Isto ocorre porque os votos creditados aos candidatos que não são eleitos não têm influência no resultado final, ou seja, não contam para o partido ou coligação, como ocorre no sistema proporcional em vigor hoje no Brasil.
Um estudo feito pela Universidade de Estocolmo em parceria com a União Interparlamentar (UIP) e o Instituto Internacional para Democracia e Assistência Eleitoral (IDAE) também aponta que sistemas como o SNTV tendem a desperdiçar mais votos. O documento relaciona, ainda, o melhor aproveitamento dos votos à maior representação feminina nos parlamentos. “Se uma fórmula eleitoral leva a menos votos desperdiçados […] os partidos terão mais incentivos para apresentar candidatos mais diversos e balanceados, o que leva à inclusão de mais mulheres nas listas”, atesta a publicação Atlas of Electoral Gender Quotas.
Renovação e representação
No seu discurso em plenário, o deputado disse também que o distritão dificultaria a eleição de mulheres. Um trecho do atlas da Universidade de Estocolmo aborda a participação feminina nos parlamentos de acordo com o sistema eleitoral adotado. Os números mostram que sistemas eleitorais proporcionais, como o que vigora no Brasil hoje, levam a eleição de mais mulheres do que sistemas majoritários, como o distritão. “A média de mulheres eleitas para parlamentos em 2012 foi de 25% em países que adotam o sistema proporcional. Países que adotam sistemas mistos ou majoritários tiveram 18% e 14% de mulheres eleitas, respectivamente”, informa o documento. O texto destaca ainda que, dentre os países que atingiram o índice de 30% de mulheres no parlamento, considerado ideal pela ONU, 65% adotam sistemas proporcionais para as eleições legislativas.
A alegação de que o distritão prejudica a representação de mulheres e negros, feita por Molon, também é confirmada por dois especialistas em ciência política procurados pelo Truco. Segundo Glauco Peres, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), a sub-representação de mulheres e negros, dois grupos já pouco presentes na Câmara, seria inevitável. “Imagine que uma pessoa represente um determinado grupo social. Para ser eleito, como se trata de uma minoria, praticamente todas as pessoas desse grupo teriam que votar numa pessoa só. Se eles dissiparem o voto nesse sistema, não elegem ninguém”, explica.
Há também a inviabilidade financeira das candidaturas desses dois grupos. “No caso dos negros, especialmente, eu vejo que eles seriam prejudicados no distritão pelo inevitável aumento nos custos da campanha individual”, afirma o professor do departamento de Política da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Pedro Arruda. Ele destaca que há grande desigualdade social entre negros e brancos no Brasil.
Outra alegação de Molon, a de que o modelo dificulta a renovação do parlamento, é confirmada pela enciclopédia do projeto ACE. “Como este modelo oferece aos eleitores apenas um voto, o sistema contém poucos incentivos para que os partidos políticos atraiam um amplo espectro de eleitores, de maneira inclusiva”, diz um trecho do volume. Segundo o texto, o esquema permite que os partidos “ganhem assentos sem precisar apelar para ‘outsiders’”, referindo-se aos candidatos novatos, de fora do meio político.
Peres, da USP, diz que os eleitos neste modelo “tendem a ser as pessoas que já estão lá, na Câmara, porque já são conhecidas do público”. O professor destaca também que o distritão pode beneficiar ainda mais políticos-celebridade. “O fato de serem conhecidas dá a elas um ponto de partida à frente dos outros nesse modelo não-proporcional”, explica. Arruda, da PUC, segue a mesma linha. “Quem já está em um cargo eletivo e já tem os holofotes da mídia tem mais visibilidade e mais chance de conseguir a maioria dos votos”, afirma o cientista político.