Edson Sardinha
Em seu segundo mandato na Câmara, o deputado Orlando Fantazzini (Psol-SP) transformou em sua principal bandeira política um assunto que ainda é tabu para a maioria dos parlamentares: a discussão sobre os processos de concessão de rádio e TV. Coordenador da campanha "Quem financia a baixaria é contra a cidadania" e integrante da Comissão de Ciência e Tecnologia, Fantazzini não se cansa de criticar a qualidade da programação da TV brasileira e o abuso dos critérios políticos na distribuição das concessões de radiodifusão.
O deputado foi um dos poucos a criticar a decisão do presidente Lula de requisitar à Câmara, em junho, a devolução de 227 processos de renovação de outorga de rádio e TV ameaçados de rejeição pela Casa devido a problemas na documentação. Como mostrou o Congresso em Foco em sua edição de ontem (leia mais), o ato de Lula deu sobrevida a 76 rádios, algumas de parlamentares, que estão há mais de dez anos sem concessão. "Você tem todo o envolvimento de parlamentares e da própria comissão. E, por outro lado, a classe política morre de medo dos meios de comunicação, principalmente de rádio e televisão. E alguns sobrevivem politicamente em razão da concessão", disse ele.
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Guerra silenciosa
Na avaliação do deputado, que há um ano deixou o PT, a disputa silenciosa de poder entre o Ministério das Comunicações e a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), a falta de sintonia nas leis que tratam da radiodifusão e o lobby pesado dos empresários da comunicação explicam o elevado número de emissoras que funcionam à margem da lei no país. "Qual é a responsabilidade do Ministério das Comunicações? Comunicar à Anatel que a concessão da emissora A venceu e ela não conseguiu renovar. Portanto, a Anatel deveria tirá-la do ar. Esses seriam os papéis. Mas por trás de tudo existem os interesses políticos e econômicos", denuncia (veja o que a Anatel e o ministério falam sobre o assunto).
Avanço tímido
O deputado é um dos integrantes da subcomissão criada há dois meses para reavaliar os procedimentos da Câmara na aprovação de novas concessões e da renovação das outorgas já existentes. A subcomissão, presidida pela deputada Luiza Erundina (PSB-SP), deve apresentar suas sugestões até o fim do ano. Mas o próprio Fantazzini admite que as chances de se mudar a legislação nessa área são remotíssimas. "É muito difícil que nós consigamos aprovar um relatório avançado, mais consistente e atualizado para o século XXI dentro da comissão. Mas nós queremos suscitar o debate também com a sociedade. Se houver pressão de fora para dentro, este Congresso acaba avançando."
Levantamento feito pelo professor Venício de Lima, do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política da Universidade de Brasília (UnB), publicado pelo Congresso em Foco (leia mais), mostra que 49 deputados são concessionários diretos de emissoras de rádio e TV, conforme dados oficiais do Ministério das Comunicações. Dos 81 senadores, 28 controlam emissoras de rádio ou TV, em nome próprio ou de terceiros, de acordo com pesquisa feita pelo Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação (Epcom) (leia mais).
"Vários deputados e senadores são concessionários direta ou indiretamente, por meio de familiares ou laranjas. Há deputados que colocam assessores na sociedade da empresa e recebem a concessão. Fica evidente que há essa relação promíscua entre parlamentares e as concessões", diz Fantazzini.
Leia, a seguir, a entrevista concedida com exclusividade pelo deputado ao Congresso em Foco:
Congresso em Foco – Que propostas podem sair da subcomissão que vai discutir mudanças no processo de concessão das emissoras de rádio e TV?
Orlando Fantazzini – A subcomissão foi criada com o objetivo de fazer o estudo, o aprofundamento na legislação da outorga das concessões para, ao final, no relatório, apresentar uma proposta para alterar o arcabouço legal. Queremos ouvir dos últimos três ministros da Comunicação um relato: se eles tiveram dificuldades, quais foram elas e por que falta fiscalização. E vamos ouvir a sociedade civil, as emissoras de rádio e televisão e pegar sugestões para produzir uma proposta que possa atender aos anseios da sociedade e que atenda também aos interesses do Estado brasileiro.
Quais são as principais falhas que o senhor identifica na legislação dessa área hoje?
Há uma luta de poder entre o Ministério das Comunicações e a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações). O Ministério das Comunicações vem de uma concepção de Estado intervencionista, regulador, que não possibilita ao mercado impor sua vontade. A Anatel vem de uma concepção neoliberal, ou seja, o mercado regula as relações. A sobreposição de um modelo ao outro traz esses conflitos. Temos aí um problema.
O senhor poderia dar um exemplo de como e quando isso acontece?
Vamos pegar um exemplo recente na telefonia. A Anatel fez uma proposta de telefone popular, e o ministro (das Comunicações) Hélio Costa bateu pesado. Houve um atrito, uma disputa de poder. O mesmo ocorre em relação ao todo, porque, por um equívoco, no Brasil, nós separamos telecomunicação de radiodifusão. A Anatel ficou praticamente responsável por tudo na telecomunicação, e o Ministério das Comunicações atua muito mais na questão da radiodifusão. Na radiodifusão, a Anatel observa questões meramente técnicas, potência, se a emissora está na faixa etc. O resto fica com o ministério. Depois, você tem outro problema: a nossa legislação de radiodifusão é de 1962. Além de ser ultrapassada, é uma legislação cheia de remendos.
E como essas falhas se manifestam?
As emissoras sabem que, antes de vencer a concessão, elas têm de fazer o pedido de renovação. Havia um decreto de 1983 estabelecendo que, se as emissoras encaminhassem o pedido com toda a documentação, a renovação seria automaticamente renovada. Entretanto, esse decreto não foi recepcionado pela Constituição de 1988. Então, o que acontece hoje? A Constituição de 1988 disse que a outorga ou a renovação só se dão com a aprovação do Congresso Nacional. Não basta ingressar com um pedido, juntar documentos, que isso não assegura mais a renovação. É por isso que o ministério manda pra cá essas informações. Só que o ministério manda esses processos pra cá faltando documento. Essas emissoras que estão aí há dez ou 15 anos com a renovação vencida estão funcionando de maneira totalmente irregular. E quem deveria tomar providências? A Anatel, porque quem não tem licença, não tem concessão, não pode funcionar. Do mesmo jeito que eles fazem com a rádio comunitária, eles deveriam estar atuando com as rádios comerciais, mas não o fazem. O ministério não fiscaliza também. Não fiscaliza conteúdo, não fiscaliza a questão da concessão. Então, você tem aí um cipoal de leis que não atende aos interesses do país. Nós precisamos urgentemente de um código de comunicação no Brasil.
No caso dos 227 processos ameaçados de rejeição recolhidos pelo presidente Lula, como o Ministério das Comunicações e a Anatel poderiam ter agido pra evitar que a coisa chegasse a esse ponto?
O Ministério das Comunicações deveria agir na perspectiva, primeiro, de receber a documentação referente ao pedido de renovação. Estando satisfeitos todos os requisitos legais, ele encaminharia os documentos à Presidência da República, que a enviaria ao Congresso, para aprovação. O que acontece hoje? Não há documentação hábil, e o processo fica se arrastando no ministério. O ministério manda para a Presidência, que manda pra cá. Nós observamos que falta um conjunto de documentos e os solicitamos. Esses documentos não chegam, os processos ficam parados, e aí o prazo vai embora. Qual é a responsabilidade do Ministério das Comunicações? Comunicar à Anatel que a concessão da emissora A venceu e ela não conseguiu renovar. Portanto, a Anatel deveria tirá-la do ar. Esses seriam os papéis. Mas por trás de tudo existem os interesses políticos e econômicos. O cipoal de leis levou o próprio ministro a dizer que o Congresso não pode votar um relatório contrário às renovações. Por que não podemos? Se há irregularidades, somos obrigados a votar favorável? Claro que não, mas ele diz que cria um problema jurídico. Esse cipoal possibilita todo e qualquer tipo de compreensão dentro da conveniência de cada um.
Inclusive de que parlamentares também podem ser concessionários de rádio e TV…
Vários deputados e senadores são concessionários direta ou indiretamente, por meio de familiares ou laranjas. Há deputados que colocam assessores na sociedade da empresa e recebem a concessão. Fica evidente que há essa relação promíscua entre parlamentares e as concessões.
O que pode ser feito para mudar esse cenário?
Já há uma proibição constitucional (parlamentares são proibidos pela Constituição de serem concessionários de rádio e TV). O que não pode é o ministério aceitar passivamente, como tem aceitado, que isso ocorra. Eles podem dizer que os documentos dizem outra coisa. Uma coisa é o que é de direito, outra coisa é o que é de fato. Se o ministério tivesse vontade de fazer uma fiscalização, ele conseguiria detectar quem se utiliza de laranjas ou de contrato de gaveta para obter concessão. Nós sabemos que o ministério não tem essa vontade política.
O que a subcomissão pretende fazer?
Ela pretende fazer com que essa legislação seja aprimorada. Mas sabemos das dificuldades. É extremamente difícil aprovar qualquer alteração na área da radiodifusão no Brasil. Há um lobby pesadíssimo das emissoras de televisão e de rádio. Você tem todo o envolvimento de parlamentares e da própria comissão. E, por outro lado, a classe política morre de medo dos meios de comunicação, principalmente de rádio e televisão. E alguns sobrevivem politicamente em razão da concessão. Essa somatória de interesses acaba convergindo num lobby extremamente forte no Congresso, que tem impossibilitado a mudança. Por outro lado, defendemos uma maior participação da sociedade.
Como isso é possível?
Aquela campanha "Quem financia a baixaria é contra a cidadania" (promovida pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara que divulga o ranking dos programas que mais apelam à baixaria) tinha exatamente o objetivo de desmistificar isso perante a sociedade. Mostrar que televisão não é uma propriedade privada, é uma concessão, e que as concessões no Brasil se dão de forma a privilegiar setores econômicos e políticos. O povo é que é o legítimo proprietário. Precisamos construir uma consciência na sociedade para que ela também exija o seu direito, a sua liberdade de expressão. Hoje apenas oito famílias, que controlam os meios de comunicação, têm liberdade de expressão no país. É obvio que você tem algumas mídias alternativas nas quais a sociedade tem espaço. Mas essa mídia alternativa não fala com a massa com a qual as emissoras comerciais falam. Temos de democratizar os meios de comunicação. Uma das questões mais importantes a serem discutidas pela comissão é exatamente a instituição do controle social na concessão, na fiscalização e na renovação.
Como seria esse controle social?
Poderíamos constituir uma comissão tripartite, com representantes do Estado, da sociedade civil e das concessionárias, que iria analisar as concessões, o conteúdo e se as emissoras cumpriram o contrato, se merecem ter a renovação contratual, se estão regularmente em dia com o fisco, se recolheram os tributos, se pagaram o FGTS e o INSS. Quando você tem esse tipo de controle, fica muito difícil ocorrer o que está acontecendo.
O senhor acha que a subcomissão pode propor uma melhor redistribuição dos papéis entre a Anatel e o Ministério das Comunicações?
Podemos chegar a isso ou propor que um órgão regule tanto a radiodifusão quanto as telecomunicações, porque temos de levar em conta hoje também a questão tecnológica. Não há motivo para manter essas duas áreas em separado, porque a tecnologia evoluiu tanto que podemos assistir à programação televisiva pelo celular, sintonizar emissoras de rádio pelo celular, receber imagens por banda larga. Precisamos pensar de forma global. Não dá para ficar mais nessas divisões de conveniência, de grupo de interesse político ou econômico. Eu vou sempre defender o modelo em que o Estado possa regular, porque existe uma diferença entre quem detém o poder econômico e quem não o detém. O Estado tem que fazer esse equilíbrio.
Mas qual a possibilidade de esse tipo de mudança ser aprovada por uma comissão que é formada, em grande parte, por parlamentares que detêm concessões de rádio e TV?
É muito difícil que nós consigamos aprovar um relatório avançado, mais consistente e atualizado para o século XXI dentro da comissão. Mas nós queremos suscitar o debate também com a sociedade. Se houver pressão de fora para dentro, este Congresso acaba avançando. O grande problema é quando a sociedade não participa. Aí fica parecendo que são disputas de grupos econômicos e que o Estado não tem nada a ver com isso e a sociedade não tem responsabilidade nenhuma. Por isso, um dos nossos objetivos é envolver a sociedade para que ela faça o seu papel de pressionar esta Casa.
Até hoje o Congresso nunca rejeitou um projeto de renovação de concessão, não é mesmo?
Exatamente, e tem um detalhe. Para você cassar uma concessão, é preciso ter uma decisão de Plenário. O problema é que, quando vence a concessão e a concessionária não apresenta a documentação, não estamos cassando a concessão. Uma coisa é uma concessionária ter 15 anos e, no sétimo, apresentar algum problema, então vamos cassar a concessão. Aí você tem que submeter ao Plenário e são necessários os votos de dois quintos (ou seja, o apoio de 238 parlamentares) do Congresso. Agora, nas renovações, você não tem mais a concessão. Já venceram os dez anos, ela não tem a concessão. É praticamente uma nova concessão. Se não cumprir os requisitos, você vota contra a solicitação. Você não está cassando, você apenas não está renovando.
A Comissão de Ciência e Tecnologia pode agir, de alguma forma, pra evitar abusos no período eleitoral por candidatos ou familiares de candidatos que detêm concessão?
A comissão não tem instrumentos para coibir isso. Nesse caso, quem deveria fazer a fiscalização é o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), exigindo do Ministério das Comunicações a relação das emissoras denunciadas por terceiros. Há mais de 8 mil processos de denúncias entre as próprias emissoras no Ministério das Comunicações de que o grupo do deputado tal ou do senador tal fez isso ou aquilo. Então, o TSE poderia exigir essas informações, ainda que não comprovadas, para fazer uma fiscalização sobre essas emissoras, supostamente, de propriedade de deputados, senadores ou de grupos políticos. Isso o TSE tem condições de fazer. É uma disputa desigual. Quem detém a concessão de uma emissora de rádio ou televisão será todo dia enaltecido, elogiado, para disputar com um concorrente cujo nome nem é mencionado. É uma disputa desigual, desonesta, imoral e que afronta a lei. O Estado brasileiro é muito bom para fazer leis e péssimo para fiscalizar o cumprimento delas.
A decisão do presidente Lula de recolher os 227 processos de renovação desmoraliza a tentativa de mudar?
É lamentável. Ao adotar essa medida, o presidente sinalizou claramente que não estava defendendo os interesses da nação. O ato dele foi de defesa dos interesses de correligionários, que supostamente irão apoiá-lo na reeleição. É vergonhoso e triste, depois de tantos anos de combate à ditadura militar, ver o processo democrático ser praticamente atirado na lata de lixo. É uma postura antidemocrática, porque não respeita os valores republicanos, não respeita a própria democracia. É um episódio vexaminoso para a instituição Presidência da República.