Beth Veloso *
Uma sapatilha, uma roda empenada. A bicicleta repousa no canto do pequeno apartamento do Guará. É o que sobrou de recordação para o filho de Idália Meireles. Nada, naquele domingo ensolarado, indicava que seria o pior dia para aquela mãe, quase avó de um bebê de sete meses, ainda em gestação, mas que jamais veria o pai a não ser em álbum de formatura. Lula se foi aos 27 anos.
É apenas mais uma história. Mudam as circunstâncias, os nomes, endereços, mas a rotina se sucede para milhares de famílias no Distrito Federal. Pelo menos uma vez por semana, alguém, em algum lugar, recebe a notícia: um simples passeio, uma pedalada para o trabalho, um treino para a próxima competição, no caminho, a morte. Jovens, crianças, idosos, pobres ou ricos.
A fatalidade ronda hoje quem monta em duas rodas. Fina, estreita, quase invisível, apesar disso, as ruas não reservam mais lugar para as bicicletas. Talvez, porque sejam invisíveis demais. “Eu não vi”, foi a resposta ingênua do motorista que atropelou Lula no início de uma tarde com luz radiante da capital.
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7 de abril de 2004. Comissão de Viação e Transportes da Câmara dos Deputados. Discurso de abertura numa audiência pública para discutir a violência no trânsito. A ONG Rodas da Paz ainda era uma criança. Assustada com a voracidade das ruas, com as garras ferozes dos carros que cruzavam as grandes avenidas a mil por hora. Também éramos crianças, nós, voluntários, ongueiros. Eu mesma, nem pedalava, mas escrevíamos discursos como ninguém. Falávamos com muita propriedade. Exigíamos mais do que respeito aos ciclistas. “Queremos o nosso lugar”, era nosso estandarte.
Diante de uma realidade dura de quase um ciclista morto por semana, nós éramos a voz roubada de famílias mortas por um trânsito intolerante e instantaneamente cruel. Isso foi dez anos atrás. E tudo que sonhávamos era que pudéssemos sobreviver a mais dez anos, em que certamente teríamos um outro cenário, uma outra década, uma era de esperança e civilidade. Ciclovias, campanhas, punição para quem dirigir criminosamente. Era o desenho de giz de uma cidade que iria evoluir, certamente.
Julho de 2014. Na véspera do passeio anual da Rodas da Paz, camisetas começam a ser distribuídas, mas as sapatilhas ou sapatos continuam sendo perdidos pelo caminho. Dez anos se passaram e a estatística é quase a mesma: um ciclista morto por semana. Esse é o saldo de um julho cavernoso que não deu férias para o crime de trânsito, um mês em que a impunidade transitou no banco do carona. Vários desses motoristas atropeladores fugiram. Não, talvez, sem antes dar uma olhadela fatal pelo retrovisor. Uma bicicleta torta, um corpo caído, sapatilhas, pés descalços.
Um dia isso acaba, acreditávamos piamente. Com tantos protestos, um turbilhão de entrevistas, passeios de grande logística, carros de som e discursos nas manhãs de domingo ensolarado. “É pedalando que a gente se entende”, era o bordão que ecoava de Samambaia ao Paranoá, em passeios em que a segurança era a nossa preocupação número 1. Pelo menos no passeio, não poderíamos ter nenhum acidente. Fora dali, como ter controle? A falta de controle é latente hoje na capital das ciclovias.
Quando cunhamos Brasília como capital das ciclovias, lá pelos idos de 2004, éramos um misto de palhaços visionários e adoráveis sonhadores. E incansáveis na batalha, é claro. Está tudo aí: o discurso não foi em vão. As ciclovias estão por toda parte, ainda que não seja o bastante. Leis impositivas determinam obras que tiram do papel o conceito de mobilidade sustentável, um nome chique para diversos veículos circulando juntos e intercalados. Grandes progressos???!!!
É de choque a perspectiva daqueles que hoje revezam o bastão da solidariedade para tocar uma ONG que ainda luta pela segurança do ciclista no trânsito. Em alguns dias, a Esplanada dos Ministérios se tornará o tapete vermelho onde a generosidade circulará em duas rodas movidas a duas pernas. “Bicicleta gera gentileza” é o tema do XXI Passeio da Rodas da Paz, que acontece em 10 de agosto. Mas, nas ruas de Brasília, é a brutalidade que manda. O carro atropela. O ciclista morre. O motorista foge. E a Rodas da Paz vê cada vez mais distante o dia em que ela, ONG, vai deixar de existir, dentro de um trânsito verdadeiramente generoso.
Será que daqui a dez anos vamos ter, de fato, uma cidade que seja não apenas a capital das ciclovias, mas a capital da generosidade no trânsito? Será que daqui a dez anos vamos ter não apenas leis que obriguem campanhas e obras cicloviárias, mas assegurem a cidade da morte zero para o ciclista? Será que daqui a dez anos vamos ver policiais nas ruas e motoristas imprudentes na cadeia, enquanto trabalhadores pedalam suas magrelas para o trabalho com a certeza do amanhã?
Nem os engarrafamentos que param o trânsito cada vez mais motorizado de Brasília conseguem salvar os que se aventuram em duas rodas. A lógica não mudou: o carro ainda é o senhor dos anéis e das obras viárias da cidade de concreto; os controles de velocidade – ou pardais para os antigos – estão mais do que manjados. E as faixas de pedestre mal existem, amarelam-se na memória dos tempos áureos que se foram. Tá difícil circular em Brasília, reclamam os motoristas sempre afoitos e atrasados. Mal sabem eles que difícil mesmo é prosseguir sem aqueles que nunca mais vão se atrasar para um compromisso, porque foram mortos num trânsito moldado por engenheiros e não por educadores. Generosidade mesmo só no passeio anual da Rodas da Paz. Com batedores, é claro!
* Jornalista e primeira presidente da ONG Rodas da Paz, que se dedica à convivência pacífica entre ciclistas e motoristas no trânsito.
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