O ano de 2006 foi marcado pelo debate político, especialmente em razão da velha dualidade caracterizada pela disputa presidencial entre o PT e o PSDB, então representados pelos candidatos Luiz Inácio Lula da Silva e Geraldo Alckmin. Além da questão da ampla privatização – uma bandeira do partido defendida pelo candidato peessedebista -, no palco da peleja também o tema da CPMI dos Correios, que resultara, depois, no que se chamou o “Escândalo do Mensalão”. As palavras “entreguistas” e “impeachment” eram comumente utilizadas, dependendo tão-somente do olhar torcedor do time acarinhado.
Lembro-me de um debate marcante em que participei na condição de secretário-geral da OAB, especificamente sobre a questão do caráter democrático do processo de impeachment. Impressionou-me a uníca preocupação dos respeitadíssimos juristas Fábio Konder Comparato, Paulo Bonavides e Marcello Lavenère Machado, advertindo-nos de que o instrumento parlamentar de afastamento presidencial poderia camuflar em golpe ao sufrágio universal. Em outras palavras: haveria o risco de uma maioria oligárquica, descontente com o resultado eleitoral, usar a sua força política para afastar um presidente eleito que discordasse do seu pensamento político.
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Esta hipótese gerou uma inquietação profunda em mim, pois tenho no combate às mais diversas oligarquias a razão da atuação na OAB. Registre-se que, na época, ainda não havia uma base fática a justificar a preocupação externada, até porque a oligarquia paraguaia não havia afastado o presidente Fernando Lugo, tampouco a elite brasileira a presidenta Dilma Rousseff. O meu respeito aos três grandes juristas, entretanto, exigia de mim um maior aprofundamento da questão. E a resposta não tardou.
A advocacia brasileira, quando me concedeu a honra temporal de ser o presidente da Casa da Cidadania, debateu a crise da democracia representativa, compreendeu a Reforma Política como a mãe de todas as reformas e, por fim, propôs ao parlamento brasileiro que aperfeiçoasse o sistema de participação política do soberano povo. Assim, em nome da OAB, encaminhei ao parlamento, no dia 23 de outubro de 2007, a proposta de Reforma Política aprovada pelo Conselho Federal, fundada em dois blocos: “Efetivação da Soberania Popular e Proteção dos Direitos Humanos” e “Reformas Partidária e Eleitoral”.
Entendíamos que o Brasil não vivia uma “simples crise episódica, mas de um estado de morbidez crônica, cujas causas são não apenas econômicas, mas também políticas”, especialmente em razão da “persistente marginalização do povo, impedido de tomar diretamente as grandes decisões políticas, não só na esfera nacional, mas também no plano local”. E, por acreditar na existência de “uma representação popular falseada, que acabou criando um pequeno mundo político irresponsável, cada vez mais distanciado da realidade social”, a OAB cuidou de propor como solução a valorização da Democracia Participativa.
Na nossa proposta de Reforma Política, patrocinada no Senado pelos parlamentares Eduardo Suplicy (PT-SP) e Pedro Simon (PMDB-RS), destacava-se o apoio aos projetos legislativos que procuravam tornar efetividade às manifestações da soberania popular consagradas no art. 14 da Constituição Federal, fazendo com que o plebiscito e o referendo, tal como sufrágio eleitoral, não dependessem, para o seu exercício, de decisão do Congresso Nacional, bem como desburocratizando e reforçando a iniciativa popular legislativa.PublicidadePretendia, ainda, incluir no texto permanente da Lei Republicana dois novos mecanismos de Democracia Direta, notadamente o recall e o veto popular. Era a ideia de fazer retornar ao soberano povo o protagonismo da História, tanto para cassar o mandato do seu representante, quanto para vetar as inciativas legislativas que destoassem da real vontade popular. Registre-se que a Proposta de Emenda Constitucional nº 0073/2005, ratificada no debate da Reforma Política, também era oriunda da Ordem dos Advogados do Brasil, quando presidida por Roberto Busato, fruto do Fórum pela Reforma Política coordenado por Fábio Konder Comparato.
Apesar do intenso debate no Senado, a proposta de fortalecer a Democracia Direta foi arquivada, pois os mandatos dos senadores Eduardo Suplicy (PT-SP) e Pedro Simon (PMDB-RS) chegaram ao fim em 2010. Mas a semente da ampliação da democracia participativa ficou plantada, brotando depois na proposta capitaneada pelo senador Antônio Carlos Valadares (PSB-SE). É que o senador sergipano apresentou a PEC 21/2015, fazendo incluir no art. 14, da Constituição, os IV e V, implantando no Brasil as modalidades recall e veto popular, porém deixando para a legislação infraconstitucional a regulamentação das inovações democráticas. Acreditava ele que a regulamentação via Constituição Federal dificultaria a sua aprovação.
E é exatamente aí que entra o aditivo proposto pelo senador mineiro Antonio Anastasia (PSDB-MG), aprovado na CCJ do Senado em 21 de junho. O texto vencedor, maliciosamente, estabelece regras que impedem a vigência da Democracia Direta, inviabilizando, na prática, que sejam utilizados pela cidadania os novos institutos constitucionais propostos. Inicialmente, exige quórum de participação exageradamente elevado (10% do eleitorado), maior do que exigido para a efetivação de projeto de lei de iniciava popular, criação de partidos políticos ou mesmo a dificílima cláusula de barreira partidária em tramitação. Restringe, também, a sua aplicabilidade à presidência da República, deixando o parlamento livre do controle popular. Mais ainda, condiciona a validade da consulta revogatória ao próprio querer do parlamento, afirmando que a Democracia Direta, depois da ampla mobilização popular, apenas valerá se referendada pela maioria qualificada do parlamento.
O senador mineiro anestesiou, na verdade, a própria ideia de resgatar a dignidade e a respeitabilidade da representação política, já prevista em vários países democráticos. E, paralisada a sua alma, o texto aprovado na CCJ do Senado fez do recall um corpo morto antes mesmo de ter nascido. A sua finalidade solucionadora de crises representativas perdeu o sentido, pois para entrar em vigor precisaria do aval daquele que provocou a própria crise. O relator do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, o mesmo Anastasia, não quer o povo, via recall, decidindo o seu próprio futuro político. E somente uma Democracia com o a participação do seu povo é que teria “poderes” para evitar qualquer tipo de golpe, seja ele vindo de onde viesse: do parlamento, do “mercado” e até mesmo militar.