Reginaldo Minaré*
No dia 14 de dezembro de 2006, organizações não-governamentais conseguiram, por meio de ação civil pública, liminar suspendendo o andamento do processo de liberação comercial de milho geneticamente modificado tolerante a herbicidas à base de glufosinato de amônio, em trâmite na Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) desde 1998, até que seja realizada audiência pública sobre o tema.
Embora a Lei 11.105/05, a chamada Lei de Biossegurança, seja clara ao estabelecer que a CTNBio poderá, e não que deverá, realizar audiência pública, no caso de liberação comercial de organismo geneticamente modificado (OGM), o texto legal foi desconsiderado e o juiz exigiu a realização de audiência pública. Neste caso concreto, chama mais a atenção o fato de o juiz ter atribuído ao termo “poder” o significado conceitual do termo “dever”, do que ter compelido a CTNBio a realizar audiência pública antes de deliberar sobre projeto que a comissão, exercendo a competência legal que lhe é atribuída, já havia entendido ser desnecessária sua realização.
Leia também
Decididamente, o instituto da interpretação aberta dos sistemas jurídicos, muito trabalhado por juristas que são críticos da interpretação fechada dos sistemas normativos, não deve ser utilizado para desprestigiar uma norma, legitimada pelo procedimento democrático, para simplesmente impor a realização de audiência pública que seguramente em nada vai contribuir para a biossegurança do milho geneticamente modificado em análise.
O legislador atribuiu à CTNBio, por meio de lei, a competência para deliberar sobre a necessidade ou não de realização de audiência pública, solicitada em processo de liberação comercial de OGM. Essa regra estabelecida pelo Poder Legislativo, sob pena de criar insegurança jurídica, não pode ser modificada pelo casuísmo ou por interpretação equivocada do texto legal.
Essa decisão judicial se baseou em uma lógica inaceitável, totalmente inconsistente, que não pode prevalecer. Aceitando esse raciocínio, a CTNBio, por exemplo, poderá ser obrigada a reformular suas deliberações, por força de decisão judicial, quando exercer a competência que lhe é atribuída pelo inciso XX do artigo 14 da Lei 11.105/05, e identificar que uma atividade com OGM não é potencialmente causadora de degradação do meio ambiente.
Ser a atividade como OGM identificada, pela CTNBio, como potencialmente causadora de degradação do meio ambiente é pré-requisito para o órgão ambiental competente exigir o licenciamento ambiental da atividade.
Cabe lembrar que no Estado Democrático de Direito, que é o modelo de Estado escolhido pelo Constituinte de 1988, prevalece a regra de que a lei que foi legitimada pelo procedimento democrático, até que seja considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal ou modificada pelo Congresso Nacional, deve ser cumprida.
A celeuma negativa que se instalou no campo da regulamentação do desenvolvimento e do uso dos produtos oriundos da engenharia genética fere de morte qualquer possibilidade de o país avançar neste promissor segmento da economia baseada no conhecimento.
Enquanto a União Européia trabalha fortemente para diminuir a distância que a separa do bloco de países como os Estados Unidos da América e o Japão, inclusive com o objetivo de assumir uma posição de vanguarda nessa área, no Brasil a movimentação em sentido contrário ganha força.
Em 1998, um juiz federal proibiu a CTNBio de emitir parecer técnico em projeto de liberação comercial de OGM, e em suas razões argumentou: “Sem contabilizar exageros, creio que a velocidade irresponsável que se pretende imprimir nos avanços da engenharia genética, nos dias atuais, guiada pela desregulamentação gananciosa da globalização econômica, poderá gerir, nos albores do novo milênio, uma esquisita civilização de ‘aliens hospedeiros’, com fisionomia peçonhenta, a comprometer, definitivamente, em termos reais, e não fictícios, a sobrevivência das futuras gerações de nosso planeta”.
Atualmente, argumentos catastróficos como esse que foi utilizado em 1998 não são recomendados. Todavia, os que insistem trilhar o caminho do obscurantismo vêm explorando, em alguns casos com sucesso, os caminhos da pendenga regimental e da aventura jurídica.
* Reginaldo Minaré é advogado e diretor-jurídico da Associação Nacional de Biossegurança (ANBio).