Mário Coelho
No início de agosto, uma frase do governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda (DEM) – “é preciso haver sintonia com o governo federal” –, deixou explícita uma situação que ocorre desde 2003: delegados da Polícia Federal (PF) estão, gradativamente, ocupando o cargo de secretário de Segurança Pública nos seus estados. Das 27 unidades da federação, hoje 16 (60%) têm policiais da PF como titulares da pasta. A facilidade de diálogo com a União, o perfil geralmente mais técnico e menos politizado e a não vinculação com as polícias Civil e Militar são apontados como os principais motivos para a mudança no perfil dos gestores dos órgãos estaduais.
A esmagadora maioria dos secretários (14) faz parte de governos da base aliada ao governo do presidente Lula. Somando-se aos dois de legendas da oposição, as administrações do Distrito Federal (DEM) e de Roraima (PSDB), o alto número de delegados da PF nos órgãos estaduais criou, na prática, uma espécie de federalização das ações de segurança pública.
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Treinados pelo governo federal para atuar em várias áreas do tema, de lavagem de dinheiro ao combate ao tráfico de drogas, acabam aplicando os conceitos da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) no dia-a-dia dos estados.
Além disso, os secretários vindos da Polícia Federal são mais receptivos às diretrizes do Ministério da Justiça para a área. Com a criação do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), por meio do qual a União investirá R$ 6,7 bilhões nos estados até 2012, os governadores viram nas nomeações uma maneira de manter e até melhorar o relacionamento com o Ministério da Justiça (MJ).
“Os delegados passam para os governos estaduais mais flexibilidade na hora de negociar com o Ministério da Justiça. O processo fica mais fácil”, afirma o especialista em segurança pública da Universidade de Brasília (UnB) Antônio Flávio Testa.
O Pronasci já distribuiu verbas para todos os estados brasileiros. O programa prevê que todas as ações sejam centralizadas pelo Ministério da Justiça, o que reforça a latente federalização na segurança pública no país. A Constituição Federal, entretanto, determina que os governadores são responsáveis pela implantação das políticas.
Porém, segundo levantamento no Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (Siafi) feito pela ONG Contas Abertas, até julho, somente 10% do R$ 1,4 bilhão previsto de investimento haviam sido aplicados. Pelos cálculos feitos pela Contas Abertas, o ano vai terminar com a aplicação de apenas R$ 230,8 milhões, ou 16% do orçamento previsto para 2008.
Em julho, o governo federal anunciou a liberação de mais R$ 124 milhões para 16 municípios de São Paulo. Na semana passada, o MJ entregou novas viaturas e coletes para a Guarda Municipal de Fortaleza, no total de R$ 1,45 milhão, recurso vindo do Pronasci. Das 27 unidades da federação, a que recebeu mais verba federal foi São Paulo, com aproximadamente R$ 40 milhões. Depois aparecem Rio Grande do Sul, com R$ 15,6 milhões, Rio de Janeiro, com R$ 11,8 milhões, e Espírito Santo, perto de R$ 10,6 milhões.
A assessoria do Pronasci informou que mais de 60% dos recursos previstos para este ano foram empenhados, o que corresponde a R$ 746,3 milhões. O levantamento da Contas Abertas aponta promessa de pagamento de 53%. Segundo a assessoria do Ministério da Justiça, o dinheiro será desembolsado até o final do ano em projetos sociais como o Mulheres da Paz e a Bolsa Formação. A assessoria afirma também que a demora no envio dos projetos pelos estados e municípios prejudicou a agilidade da aplicação da verba.
Alinhamento ao MJ
Para o secretário de Segurança Pública do Espírito Santo, Rodney Rocha Miranda, os policiais começaram a assumir as pastas por fazerem parte de uma instituição forte. “No caso do Espírito Santo, o governo queria alguém que não fosse ligado às forças locais e que tivesse experiência no combate ao crime organizado”, justifica o secretário, delegado da PF.
Rodney foi um dos pioneiros na função. Assumiu a secretaria capixaba em 2003, no auge da crise com o crime organizado no estado. Ficou até 2005, quando saiu para assumir a mesma pasta em Pernambuco. Depois comandou por alguns meses o órgão no município de Caruaru (PE), até voltar para o Espírito Santo no ano passado. “A aproximação se dá perifericamente. Quem é realmente responsável é o governador, que dialoga com o presidente e os ministros”, disse.
Durante os meses de junho e julho, o governador do DF, José Roberto Arruda, negociou a entrada de um delegado da PF para comandar a secretaria local. O então titular da pasta, general Cândido Vargas, era contrário à política da Senasp, inclusive sobre uso da Força Nacional de Segurança nos municípios goianos localizados no Entorno do Distrito Federal.
No dia da posse do novo titular, o delegado Valmir Lemos de Oliveira, em 31 de julho, o general Cândido disse que “segurança pública é assunto de Estado, não se deve envolver política”. “O governo atual (federal) está pretendendo federalizar a segurança pública no país”, desabafou o general, na época. Ele não foi encontrado pela reportagem do Congresso em Foco para dar sua opinião sobre o tema.
Em seu discurso de posse, Valmir Lemos confirmou que sua entrada na secretaria atendia à necessidade de alinhamento com as diretrizes do Ministério da Justiça e da Senasp. Procurada pela reportagem, a Secretaria de Segurança Pública do DF informou que o secretário não dá entrevistas.
Delegado federal há oito anos, Valmir atuou 13 anos como agente da Polícia Civil do DF. Seu último cargo na PF era a chefia do Departamento de Segurança de Autoridades, responsável pela segurança de chefes de Estado que visitam Brasília. Mesmo sendo de um partido que faz feroz oposição ao governo Lula, o DEM, Arruda mantém um bom relacionamento com o Palácio do Planalto.
Falsa sensação
Para o presidente da Comissão de Segurança da Câmara dos Deputados, deputado Raul Jungmann (PPS-PE), a cooperação entre os órgãos existe pelo fato de os delegados da Polícia Federal estarem mais atualizados com técnicas de investigação, policiamento e prevenção.
Mas, na visão do parlamentar, esse deve ser o terceiro item em importância na escolha do secretário da pasta. “Geralmente o governador quer fugir das facções de grupos que se dividem e digladiam por cargos, além de escapar da politização, buscando um perfil mais técnico”, opinou.
O vice-presidente da Associação Nacional de Delegados Federais (APDF), Bolívar Steinmaetz, afirma que cabe aos secretários originários da corporação se firmarem como elo entre a Senasp e o governo local. “Há um entrosamento melhor com o delegado da PF“, comentou.
Já para o especialista em segurança pública George Felipe Dantas, ex-consultor da ONU na área, a “nova onda” tem fatos positivos e negativos. Ele atesta que a instituição adquiriu credibilidade nacional com toda a série de operações recentes. Além disso, explica ele, a disputa entre policiais militares e civis nos estados por cargos no órgão tem levado os governadores a escolherem profissionais de fora. “Existem muitas querelas locais políticas entre as lideranças da segurança, inclusive os segmentos ostensivo (PM) e judiciário (Civil)”, começou.
Ele aponta, porém, que os delegados federais, por atuarem em níveis especializados, não possuem uma boa visão da criminalidade de massa. “Eles não estão afeitos ao tipos penais da criminalidade de massa, como furto, violência contra a mulher, briga de vizinhos”, explicou. Dantas diz ainda que os policiais têm “a consciência de que tem a carreira na PF”, e que não “hesitariam em trocar a secretaria por um alto cargo no departamento”.
O deputado federal Laerte Bessa (PMDB-DF), que foi diretor-geral da Polícia Civil do DF entre 1999 e 2006, é crítico do recente movimento em favor dos policiais federais nas SSPs. Ele diz que existe uma falsa sensação de que a PF é uma instituição melhor que as policias Civil e Militar.
“A formação é a mesma, não existe essa superioridade”, disparou. Bessa comenta também que boa parte dos governadores, por questões políticas, não nomeia militares ou civis para o cargo com receio de haver ciúmes entre as corporações. “Mas quem conhece a realidade local são a PC e a PM. Por isso que eu defendo que o secretário seja um delegado da Polícia Civil ou um coronel da PM.”
Presidente da Federação Nacional das Entidades de Oficiais Militares Estaduais, o coronel Marlon Jorge Teza não vê diferença no trabalho dos delegados federais. Para ele, a principal função de um secretário é “não se meter no trabalho operacional da PM”. “O que prejudica é justamente isso. Os secretários têm que se ater à parte política do cargo, fazer articulação. Se ele quiser participar da parte operacional, vai ter problemas, como vemos em vários estados”, comentou.