Os telespectadores brasileiros ficaram aturdidos quando, das poltronas acomodadas de seus lares, receberam a televisa notícia de que a Polícia Federal encontrara, na primeira terça-feira do mês da Independência, impressionantes quantidades de malas repletas de dinheiro. Remexeram-se com alguma agitação quando, aumentando o som da televisão via “indignado” controle remoto, foi revelado que o soteropolitano apartamento da Graça abrigara suntuosos R$ 42.643.500,00 (quarenta e dois milhões, seiscentos e quarenta e três mil, quinhentos reais) e US$ 2.688.000 (dois milhões, seiscentos e oitenta e oito mil dólares). E ao serem informados de que maior apreensão de dinheiro vivo da história policial brasileira tinha relação direta com ex-ministro Geddel Vieira Lima, externaram suas sacras iras através das “agitadoras” redes sociais.
Confesso que fui bombardeado por esta moderna forma de embravecida revolta, certamente entendida como mais eficaz do que as aposentadas panelas e encardidas camisas verdes e amarelas que desfilaram país afora. Aliás, o vídeo mais repetido fora exatamente aquele em que o suspeitíssimo e aprisionado Geddel Vieira Lima, na passeata dos patos amarelos, igualmente colorido, dizia: “Ninguém aguenta mais tanto roubo”. Competia esta palavra de ordem com outros vídeos em que o honestíssimo personagem aparecia apoiado por Lula, Dilma, Temer, ACM Neto e variados políticos de quem já fora aliado. Centenas de chacotas, panfletagem preferida dos ciber-amotinados, também passaram a circular, destacando-se as que chamavam de pochete a mala de Rocha Loures, bem assim que agora consta do Dicionário Aurélio a nova expressão popular: Roubou pra Geddel.
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Particularmente gostei de uma postagem, notadamente por fazer da vida ficcional um retrato fiel do mundo real. Nela, a cena da dinheirama espalhada no apartamento demonstrava que os famosos irmãos Metralha conseguiram, finalmente, roubar a Caixa Federal de Tio Patinhas, entregando o fruto da pilhagem ao arquivilão Patacôncio. Nesta versão abrasileirada dos quadrinhos de Walt Disney, perguntava-se ao internauta-leitor quem era a incorporação humana do personagem vilão Patacôncio, quem estava por trás dos números 176-671, 176-761, 176-176, estampados nas roupas dos irmãos Metralha. Embora a alegria criminosa tivesse durado pouco, a ideia postada era a de uma sala cheia de dinheiro em que o dono do butim nela mergulhava em êxtase, inclusive deixando as impressões digitais como prova do crime.
A ficção, entretanto, serve de alerta neste momento em que se anuncia a venda de mais de cinquenta estatais, da floresta amazônica, dos aeroportos, do pré-sal, da Eletrobrás e da Casa da Moeda pela irmandade política integrada pelo aprisionado Geddel Vieira Lima. Não está aqui se dizendo que toda a sua turma partilha do mesmo desejo de colecionar dinheiro alheio em apartamentos clandestinos, até porque faço ressalvas ao ditado popular “diga com quem andas e te direi quem és”. Não afirmo que é infalível o mandamento religioso previsto no Coríntios 15, 33, quando assim proclama: “Não vos enganeis. As más companhias corrompem os bons costumes”. Tampouco que são certeiras as flechas do autonomeado paladino Janot, mesmo porque a História do Judiciário atesta um incontável número de denúncias julgadas improcedentes, pois, como já advertiu Ruy Barbosa: A acusação é apenas um infortúnio enquanto não verificada pela prova.
Mas não se pode negar que tudo isso faz pairar uma grande dúvida sobre a razão concreta das anunciadas privatizações e o destino dos recursos obtidos com a venda do patrimônio nacional. Não podemos negar que neste emaranhado de personagens ficcionais que se confundem com personagens da vida real, sabemos que parte das fortunas sugadas no cotidiano da corrupção fora obtida nas privatizações brasileiras, ou, como alertou o jornalista Elio Gaspari em expressão por ele mesmo criada, nas privatarias brasileiras. É o que demonstrou outro jornalista, Amaury Ribeiro Júnior, ganhador de diversos prêmios Esso de jornalismo, em seu imperdível livro A Privataria Tucana. É o que se constata em todos os processos de privatizações ocorridos no Brasil e nos demais países que adotaram a política de cessão do patrimônio nacional aos grandes grupos econômicos internacionais.
O planeta ficcional tem livre autorização para escrachar as coisas ácidas do cotidiano, inclusive como forma de alerta aos habitantes do mundo da lua. O problema está quando o mundo real escracha o cotidiano e apenas reagimos como se moradores de um tempo ficcional. E assim, sentados nas poltronas e repassando “revolucionários manifestos” virtuais, vamos fazendo do futuro um mero projeto ficcional, onde acharemos absolutamente normais apartamentos repletos de dinheiro alheio, irmãos Metralhas ocupando cargos públicos, a Casa da Moeda sendo uma propriedade privada nas mãos de Patacôncio e o Brasil uma nação de adoráveis ladrões. E assim entenderemos, em estado de Graça, o que certa vez alertou o imortal Machado de Assis: “A ocasião faz o roubo, o ladrão já nasce pronto”.
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