Fábio Góis e Rodolfo Torres
A felicidade serve como uma cola para unir e, ao mesmo tempo, despertar os direitos sociais previstos na Constituição brasileira. Essa é a análise do senador Cristovam Buarque (PDT-DF), que quer reunir as 27 assinaturas necessárias para apresentar uma proposta de emenda à Constituição (PEC) que garante aos brasileiros o direito à busca da felicidade. A PEC é iniciativa do Movimento + Feliz, ao qual já aderiram várias personalidades e artistas.
“Cola e despertador: cola para unificar os direitos; e despertador para que as pessoas despertem e lutem. Eu não vejo ninguém lutando pela educação. Me desculpem, eu sou um defensor da educação, mas eu não vejo. E descobrir que o brasileiro não luta pela educação me dá uma tristeza profunda”, disse Cristovam, em entrevista ao Congresso em Foco.
Para o senador, não só felicidade e educação andam juntas, bem como os demais direitos sociais previstos na Carta Magna. “Diz-se que ninguém cumpre a Constituição, e vai ver que é porque ninguém descobriu que precisa dela para ter felicidade. Ninguém briga por ela, deixa que ela seja descumprida. Vai ver que é porque não percebe que nela está a chance da felicidade”, resignou-se Cristovam.
A PEC dará a seguinte redação ao artigo 6º da Carta Magna: “São direitos sociais, essenciais à busca da felicidade, a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”
Felicidade globalizada
Diversos países atribuem ao Estado responsabilidade constitucional pela busca de meios para a garantia do direito de ser feliz. A Declaração de Direitos da Virgínia (EUA, 1776) outorgou aos cidadãos o direito de buscar e conquistar a felicidade. Na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (França, 1789), há a primeira noção coletiva de felicidade, determinando que reivindicações dos indivíduos sempre se voltarão à felicidade geral.
Constituições de outros países, como Japão e Coreia do Sul, também determinam que todas as pessoas têm direito à busca pela felicidade, devendo o Estado empenhar-se na garantia das condições para que ela seja alcançada.
“Quanto mais coisas boas dos outros países a gente copia e eles copiam da gente, ótimo. Eu gostaria que todos os países colocassem na constituição que é proibido ter arma nuclear, como a Constituição brasileira prevê. É uma pena que outros países não tenham feito isso”, declarou o senador.
Confira os principais trechos da entrevista:
Congresso em Foco: Qual a importância, para o brasileiro, de incluir a garantia da busca da felicidade no texto constitucional?
Cristovam Buarque: Eu prefiro dizer como surgiu tudo isso. Essa é uma reivindicação de um grupo de intelectuais, artistas, publicitários. Muitas das pessoas desse grupo me procuraram dizendo que o artigo sexto da Constituição diz que são assegurados a todo brasileiro direitos sociais como educação, saúde, segurança etc. Mas isso não toca o indivíduo, porque a pessoa não sente que precisa da educação, da saúde, da segurança para a sua própria felicidade. Uma coisa é você convencer uma mãe a lutar pela educação do filho. A outra é convencer uma mãe a lutar pela felicidade do filho, por meio da educação. Então, o que eles disseram é o seguinte: por que a gente não coloca que é direito de cada pessoa a busca da felicidade por meio dos direitos sociais. Uma maneira de você aproximar o indivíduo do direito social que a Constituição já lhe atribui. Quase como uma forma de dar consciência ao indivíduo sobre a importância do direito social. Com essa proposta deles – e eu sou presidente da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa –, e para levar adiante a participação, eu convoquei uma audiência, com muita gente a favor, e uma pessoa que levantou problemas, representando da CNBB [Conferência nacional dos Bispos do Brasil]. Nós estamos discutindo se vamos fazer outra audiência; se apresentamos uma PEC [proposta de emenda à Constituição] a partir dos senadores; e se a sociedade brasileira, como fez com o [projeto de lei de iniciativa popular que institui a] ficha limpa, fará também com essa ideia da busca da felicidade.
Então a busca da felicidade seria um preceito “colado” ao disposto no artigo sexto?
Cola e despertador: cola para unificar os direitos; e despertador para que as pessoas despertem e lutem. Eu não vejo ninguém lutando pela educação. Me desculpem, eu sou um defensor da educação, mas eu não vejo. E descobrir que o brasileiro não luta pela educação me dá uma tristeza profunda. Alguns que têm dinheiro pagam pela educação, mas os que não têm dinheiro não pagam nem lutam por educação. Eu não vejo um candidato a presidente [da República] falando de educação de uma forma enfática, permanente, consistente. Como defensor da educação, eu quero ver se desperto a população brasileira. Quando a gente vincula felicidade e educação, talvez consiga despertar.
O senhor quer dizer que uma não vive sem a outra?
Educação, saúde, segurança… felicidade não é uma coisa abstrata. Tem gente que pensa que felicidade é uma coisa só sua. Não. Uma pessoa feliz analfabeta é menos feliz do que se soubesse ler. Quando ela tomasse um remédio, por exemplo, ela não iria sofrer perguntando: ‘Será que esse remédio é o que eu quero?’, porque ela leria a bula. Hoje o analfabeto pode tomar veneno pensando que é aspirina. Ele não sabe o ônibus que vai tomar. Uma coisa é você dizer: ‘Você precisa aprender a ler o ônibus’. A outra é dizer: ‘Você precisa aprender a lutar pela sua felicidade e, para isso, você tem de aprender a ler. Então, a felicidade depende de muitas variáveis sociais, e muito do seu pessoal. Esse social a Constituição assegura e ninguém briga para realizar. Faz 20 anos [desde a promulgação] e ninguém briga para realizar o direito à educação para todos. O povo brasileiro se acostumou à ideia de que educação é coisa para rico, e pobre não tem direito, apesar de estar na Constituição. Essa é a realidade.
Como foi a recepção da pré-proposta entre os senadores com quem o senhor conversou, fora do âmbito da comissão?
Eu não tratei com nenhum. Entre os colegas senadores eu não tenho nenhuma repercussão, nem a favor nem contra. Há uma grande despreocupação sobre o assunto. Na minha correspondência do Twitter, a grande maioria é contra, como a grande maioria é contra meu projeto de colocar cinema brasileiro nas escolas. É uma coisa inacreditável, parece que não tem um cineasta nem atores nesse Brasil. De 100 mensagens, eu não recebi nem cinco a dez dizendo que achavam ser bom passar cinema brasileiro nas escolas. E quanto à felicidade também, a maioria acha que é desnecessário. Alguns acham que, quando colocar isso [na Constituição] ninguém vai mais fazer nada da vida achando que a felicidade chega pelos Correios enviada por um órgão do governo. Isso, porém, não desanima. Quanto mais gente contra, mas justificativa para debater.
Em ano eleitoral e com muitos feriados, as prioridades do Congresso devem ser outras. Não é difícil que essa proposição seja apreciada neste ano?
Essa questão é para daqui a cinco anos. A gente deu entrada agora, mas levará cinco anos para a gente chegar aos debates no plenário. Estamos na primeiríssima fase, a gente não pode tomar tempo de nada, a não ser o tempo de um senador assinar. Ninguém vai debater isso neste ano e nem o próximo.
Por quê? A felicidade não seria prioritária?
Porque tem outras coisas na frente. Prioritária seria, mas colocar na Constituição aqui não vai ser visto com urgência. O governo não vai deixar passar na frente do pré-sal, por exemplo.
E o que o senhor acha da possibilidade de padronização das constituições mundo afora, que já garantem dispositivos legais de busca da felicidade? Seria uma tentativa de padronizar globalmente um sistema legal?
Eu nem sabia, fui saber durante esse processo que muitas constituições têm isso. Mas há algumas coisas boas de serem padronizadas. Acho ótimo que a democracia esteja em todas elas. Você vai tirar a democracia do Brasil porque eles têm lá? Não, é ótimo. Quanto mais coisas boas dos outros países a gente copia e eles copiam da gente, ótimo. Eu gostaria que todos os países colocassem na constituição que é proibido ter arma nuclear, como a Constituição brasileira prevê. É uma pena que outros países não tenham feito isso.
As próximas gerações terão benefícios a curto, médio ou longo prazo com a eventual promulgação da proposta?
Veja o projeto ficha limpa. Para o seu José e a dona Maria, o que isso vai trazer de vantagem hoje? Vai trazer a moralidade para a política. O que um projeto como esse pode trazer para esse pessoal [cidadãos comuns]? É despertar para a consciência sobre o que as decisões de governo têm a ver com a sua felicidade. Hoje, ninguém pensa nisso. As pessoas não ligam os fatos sociais com os fatos individuais. A grande vantagem dessa ideia é despertar as pessoas para a relação entre o social e o individual. É mostrar que os direitos sociais são necessários para a realização individual de cada um.
Como doutor em Economia, o senhor vislumbra a criação de algum índice de felicidade no Brasil?
Há anos venho dizendo que o PIB [Produto Interno Bruto] não reflete o índice de satisfação, para não usar o termo felicidade. O PIB é tão idiota que ele aumenta se houver um engarrafamento desses de quatro horas, que causam um caos e irritam todo mundo. Aumenta o PIB porque faz gastar muita gasolina e movimenta a economia. Não tem nada mais idiota do que isso: o aumento da queima de combustível indicar o aumento do PIB. Daí surgiu o IDH, Índice de Desenvolvimento Humano, que inclui saúde, educação. Mas ele também não basta. Tem que ter algo mais amplo, que inclua liberdade, por exemplo, seriedade da mídia. Um país é mais feliz ou satisfeito se a mídia é livre e séria – porque a mídia pode ser livre sem ser séria. Quem liga a liberdade de imprensa com a felicidade? É bom ligar. Por que se quer uma liberdade de imprensa? Qual a importância? Para ser mais feliz, porque você tendo um jornal livre, você sabe das coisas que acontecem, para se precaver contra as coisas erradas. Eu creio que a gente tem de tentar trazer para o debate a ideia de que, um dia, poderemos ter um índice que meça o grau de satisfação da população. Se o nome vai ser felicidade, satisfação ou bem-estar, aí é uma coisa para ser discutida. Mas não basta ter educação, saúde. Tem de ter algo que diga: este é um país satisfeito consigo próprio. Alguns países riquíssimos têm alto índice de suicídio, então a felicidade não é tão grande lá. O Butão criou um índice de felicidade nacional. O Brasil ainda é prisioneiro do mais estúpido dos índices, que é o PIB.
Muito do que está definido na Constituição não é cumprido. O senhor acha que o direito à busca da felicidade no texto da Carta Magna seria cumprido?
Ele não é cumprido, ele ajuda a cumprir o resto. Diz-se que ninguém cumpre a Constituição, e vai ver que é porque ninguém descobriu que precisa dela para ter felicidade. Ninguém briga por ela, deixa que ela seja descumprida. Uma Constituição bem cumprida dá mais felicidade. Quando a Constituição foi aprovada, dizia que em dez anos deveria se erradicar o analfabetismo. Ninguém fez nada para isso, talvez porque não soubesse que tinha a ver com a felicidade. Ninguém cumpre a Constituição, vai ver que é porque não percebem que nela está a chance da felicidade.
O povo brasileiro é reconhecido no mundo inteiro como um povo feliz por natureza, com uma felicidade atávica….
Essa é uma questão boa… Mas essa felicidade é ilusória. Uma pessoa pode se julgar feliz sendo analfabeta. Mas ela rapidamente perceberá o quanto mais feliz ela poderá ser quando souber ler. Quando puder ler um grande clássico da literatura. Quando for capaz de abrir com cuidado um portão porque nele está escrito ‘cachorro bravo’. O analfabeto, por mais feliz que seja, é uma pessoa assustada. Eu sei porque minha avó morreu analfabeta, e eu a acompanhava, desde que eu tinha dez anos, para ensinar o ônibus que ela tomava. Ela era uma mulher fortíssima, mas tinha um certo medo de andar nas ruas. O analfabeto não olha nos olhos, como estou olhando nos seus. O analfabeto olha para baixo. A gente dá um degrau para a felicidade quando ensina alguém a ler. Não quer dizer que ele suba o degrau da felicidade, mas a gente dá a condição.
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