As propostas em discussão preveem desde a criminalização das atuais hipóteses legais de interrupção da gestação – caso de estupro, feto anencéfalo e risco de morte para a mãe – até a classificação do aborto como crime hediondo, o que o tornaria inafiançável. A defesa do endurecimento da legislação é patrocinada por integrantes de três bancadas suprapartidárias que reúnem 373 deputados e senadores. Juntos, esses parlamentares representam 63% de todo o Congresso. Eles compõem a Frente Parlamentar Evangélica, em Defesa da Vida e da Família e a Frente Parlamentar Mista da Família e Apoio à Vida.
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O assunto ficou fora da pauta na última legislatura devido ao compromisso assumido pela então candidata Dilma Rousseff, em 2010, com segmentos religiosos, de não apoiar qualquer tentativa de descriminalização do aborto. Este ano, porém, voltou a ganhar força com a eleição daquele que é considerado o Congresso mais conservador desde a redemocratização.
Coordenador da Frente Parlamentar Mista da Família e Apoio à Vida e pastor da Assembleia de Deus, o deputado Ronaldo Fonseca (Pros-DF) diz que a pauta antiaborto reflete a vontade de uma sociedade conservadora e de formação cristã, representada em maior número no Parlamento.
“Somos um extrato da sociedade. A sociedade é conservadora e mandou para cá deputados e deputadas conservadores, do bom costume, da moral e da ética. O pessoal insiste em falar de pauta conservadora como se fosse de uma religião e esquece que o Brasil por inteiro tem cultura judaica-cristã, independentemente de religião”, afirma. Pesquisa feita pelo Ibope em setembro de 2014 apontou que 79% dos entrevistados eram contra a legalização do aborto e 16% favoráveis à descriminalização.
PublicidadeDesde a concepção
“O perfil dos parlamentares hoje é o melhor dos últimos anos. Somos maioria entre aqueles que são favoráveis à vida”, avalia o ex-deputado Luiz Bassuma (PEN-BA), autor do chamado Estatuto do Nascituro (PL 478/2007), que estabelece que a vida deve ser considerada um direito inquestionável desde a sua concepção. O texto torna o aborto um crime hediondo e, originalmente, proibia até as hipóteses legais de aborto.
Quando foi apreciado pela Comissão de Seguridade Social e Família, em 2010, o projeto retomou as hipóteses de aborto legal, como estupro e risco de vida da mãe. Em 2013, foi incorporado ao texto um benefício apelidado de “bolsa estupro”, que prevê uma garantia financeira provida pelo Estado a filhos gerados por violência sexual que não tiveram o pai identificado.
A discussão foi acompanhada de fortes críticas de parlamentares que defendiam que, além de abrir brecha para proibição de todos os tipos de aborto, inclusive de gravidezes originárias de violência sexual, também poderia estabelecer um vínculo entre a mulher agredida e o agressor, já que os pais identificados poderão requerer judicialmente o direito à visita.
Pílula do dia seguinte
Além desse projeto, outras duas proposições preveem a criminalização de qualquer tipo de interrupção de gestação, culminando até mesmo na proibição da pílula do dia seguinte. Uma proposta (PEC 164/07) de autoria do presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), e do coordenador da bancada evangélica, João Campos (PSDB-GO), inclui na Constituição a inviolabilidade do direito à vida desde a concepção, evitando qualquer tentativa de legalização de aborto. A PEC aguarda parecer do relator na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara.
Outro projeto similar tramita no Senado. A PEC 29/15, de Magno Malta (PR-ES), espera pela designação da relatoria na Comissão de Constituição e Justiça da Casa. Ainda há outros cinco projetos de lei que alteram a tipificação do crime do aborto. Outros cinco estabelecem dificuldades e constrangimentos para atendimento e assistência à mulher que aborta. Mais um trata sobre a proibição da pílula do dia seguinte e, por fim, dois projetos de lei que estabelecem datas comemorativas para a celebração da vida, sob a ótica “pró-vida”, que considera a existência do ser humano desde a fecundação de um óvulo.
Criminalização das mulheres
O levantamento, realizado pelo Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), considera as propostas apresentadas no Congresso nos últimos oito anos. Segundo o instituto, o ano de 2007 foi “paradigmático de criminalização de mulheres”, envolvendo condenação de profissionais de saúde à pena de prisão e de mulheres a penas alternativas. Também naquele ano foram criadas quatro frentes parlamentares contra a legalização do aborto.
Em comum, essas frentes possuem como porta-vozes parlamentares homens, assim como os que propuseram as 15 matérias em questão. Para a deputada Maria do Rosário (RS-PT), os temas abordados, visando, em sua maioria, a criminalização de toda prática abortiva, inclusive as permitidas por lei, indicam um cenário de punição às mulheres. “Antes tínhamos projetos que criminalizavam as mulheres na prática do aborto em geral. Chegamos a um patamar em que as mulheres são perseguidas pela interrupção de gravidez até mesmo diante de um estupro. Quando chega a esse patamar é porque realmente há uma criminalização das mulheres”, diz ela.
Na ilegalidade
Estudo conduzido pelo professor Mario Giani Monteiro, do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, e por Leila Adesse, da ONG Ações Afirmativas em Direitos e Saúde, revelou que, de 2004 a 2013, entre 7,5 milhões e 9,3 milhões de mulheres interromperam a gravidez. Segundo eles, só no ano retrasado, o número de abortos induzidos pode ter chegado a 856,7 mil. Do total, apenas 1,5 mil foram abortos legais, de acordo com o Ministério da Saúde.
A pasta também informou que o número de óbitos por mulheres atribuídos ao aborto representa a quinta causa de mortalidade materna no país. O alto índice que desperta problematizações para a saúde pública do país, no entanto, não muda a linha de pensamento dos políticos “pró-vida”.
“Quantos homicídios tem por dia? Eu continuo matando? Se eu continuo matando, eu devo legalizar o homicídio? O que acontece é que elas continuem fazendo o aborto, então pare de fazer. Por que tem que continuar matando? Não quero que tenha assassinato, homicídio, então também não quero que tenha aborto”, diz Ronaldo Fonseca.
Para a deputada Maria do Rosário, o tema deveria ser debatido como questão de saúde pública. Mas, segundo ela, por possuir forte apelo popular, é usado como bandeira eleitoral. “Essa bandeira virou tema eleitoral, uma exploração eleitoral de uma questão que deveria ser alçada no âmbito da saúde pública”, defende ela. “As questões relacionadas tanto à sexualidade quanto aos direitos reprodutivos historicamente têm sido controladas pelos homens. Mas isso tem a ver com o controle sobre o corpo e a vida da mulher”, completa.