Em meio ao mar de lama que escorre da Esplanada dos Ministérios com a sucessão de escândalos que já derrubou cinco ministros do governo Dilma, surge de repente uma notícia inusitada – produzida pela Controladoria Geral da União (CGU) – que passou quase desapercebida na imprensa: a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) divulgou o relatório da Avaliação do Sistema de Integridade da Administração Pública Federal e nele afirma que “na última década, o Brasil progrediu imensamente no que diz respeito à luta contra a má conduta no setor público. Porém, ainda há espaço para melhoria nos procedimentos de detecção e prevenção dos atos indevidos praticados por funcionários públicos”.
Sediada em Paris, a OCDE é uma organização internacional e intergovernamental que agrupa os países mais industrializados da economia do mercado. Lá, os representantes dos países-membros se reúnem para trocar informações e definir políticas com o objetivo de maximizar o crescimento econômico e o desenvolvimento destas nações.
A OCDE foi criada depois da Segunda Guerra Mundial, com o nome de Organização para a Cooperação Econômica Européia, e tinha o propósito de coordenar o Plano Marshall, produzido pelo governo norte-americano para ajudar na recuperação da Europa devastada pelo conflito. Em 1961, converteu-se na atual OCDE, com atuação transatlântica e depois mundial, e na qual o Brasil tem cooperação ativa, mesmo não sendo membro efetivo da entidade.
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Faço este registro porque a seriedade da instituição é incontestável, e a conclusão do estudo – segundo o qual, apesar dos avanços registrados, “o Brasil precisa fortalecer o sistema de integridade do serviço público federal” – é irrefutável e corresponde exatamente ao meu pensamento sobre o assunto. E também estou de pleno acordo com a observação do secretário-geral da OCDE, o mexicano Angel Gurria:
“Integridade não pode depender apenas do compromisso dos líderes. Este conceito deve contar com sistemas, processos e a organização da administração pública em todos os níveis”.
A solução para isso pode ser resumida em duas palavras: concurso público.
Eis aí a chave do problema. A integridade depende de sistemas, processos e – sobretudo (a ênfase é minha) – da organização da administração pública. Perfeito, pois é na desordem e na desorganização que a corrupção encontra um terreno fértil para proliferar, como estamos testemunhando com as escabrosas revelações sobre os convênios irregulares do Ministério do Esporte com ONGs fantasmas ou inidôneas – ou até mesmo as duas coisas, por incrível que pareça – e que custaram o cargo ao ex-ministro Orlando Silva.
Tudo isso ocorreu em consequência do “aparelhamento” – para usar um velho chavão comunista, que voltou à moda nos últimos oito anos – daquele Ministério – colocado a serviço de um partido político, o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), sem a menor cerimônia, pelos dois ministros da pasta nos governos de Lula e de Dilma – já por quase nove anos.
Essa é a explicação para tantas irregularidades em convênios com entidades pretensamente sem fins lucrativos, mas que, na verdade, visavam apenas ao lucro de políticos e cabos eleitorais, com o desvio dos recursos para o programa Segundo Tempo. Além da utilização política do programa pelo primeiro escalão do ministério, a falta de qualificação profissional dos gestores do programa certamente foi fator determinante na história.
Vale lembrar que o Ministério do Esporte jamais realizou um concurso público para preencher cargos de qualquer natureza, trabalhando praticamente com 100% de comissionados e terceirizados em todas as funções. Não há, portanto, carreiras estruturadas naquela pasta por concursos públicos, as quais seriam um fator preponderante para a “integridade” da pasta, como defende a OCDE.
Com o crescimento da importância política daquela pasta e, paralelamente, dos recursos a ela destinados como resultado dos futuros eventos internacionais que o Brasil vai sediar – Copa das Confederações, em 2013; Copa do Mundo, em 2014, e Olimpíadas do Rio de Janeiro, em 2016 – o Ministério do Esporte tornou-se uma galinha dos ovos de ouro para um bando de ongueiros e gestores desonestos que desviaram uma quantia ainda não bem definida em recursos do programa Segundo Tempo, conforme as investigações já conhecidas, mas que, possivelmente, avança pela casa dos 50 milhões de reais.
Infelizmente, o estado de decadência no Ministério do Esporte, e antes no Ministério do Turismo e antes no Ministério dos Transportes, por exemplo, tem esse mesmo problema em sua origem. A falta de compromisso e o despreparo dos gestores de ocasião com a administração pública é a porta aberta para a corrupção, com a transformação dos ministérios em balcões de negócios escusos que desafiam os órgãos de controle como a CGU e o TCU com a prática sistemática de fraudes e fazem escorrer milhões – e até bilhões de reais – pelo ralo cada vez mais largo da corrupção. Nem mesmo um decreto presidencial, estabelecendo normas mais rígidas para os tais convênios com ONGs, foi capaz de deter esse assalto aos recursos públicos pelos corruptos.
É curioso que o governo demonstre surpresa e indignação a cada escândalo desse tipo, porque as fraudes são detectadas e apontadas em tomadas de contas realizadas pelos auditores da Controladoria e do Tribunal de Contas da União. Porém, isso não intimida os malfeitores que desviam ou se apropriam de dinheiro público, que apostam na impunidade gerada nas chicanas judiciais do complicado processo penal brasileiro, com sua inesgotável proliferação de recursos em todas as instâncias, em casos de condenação, que acabam caindo na vala comum da prescrição das penas.
Também não podemos esquecer que a suspensão dos concursos públicos e das nomeações de aprovados em seleções realizadas no ano passado, decretada pelo governo federal em fevereiro último, é um dos motivos da caótica situação que os ministérios e outros órgãos da administração direta enfrentam atualmente. Em nome de uma economia orçamentária que poderia recorrer a outras medidas, deixa-se de atender as necessidades inadiáveis de pessoal na administração federal para substituir aposentados, falecidos, demitidos e até mesmo os terceirizados, que deveriam sair por força de compromisso assumido com o Ministério Público Federal para por fim a uma irregularidade escandalosa praticada pelo governo há muitos anos.
Há muito tempo lutamos por medidas capazes de dar ao serviço público melhor qualidade, com a preparação adequada dos servidores para as funções que vão exercer, remuneração condizente com as responsabilidades de seus cargos e uma carreira atrativa e com possibilidades de ascensão profissional bem definida. Para isso, incentivamos e participamos ativamente do Movimento pela Moralização dos Concursos (MMC), cujas propostas já se transformaram em projetos de lei encaminhados ao Congresso Nacional. Nelas, estão presentes os pressupostos para garantir a segurança das seleções, os direitos dos aprovados e a punição severa, com penas de reclusão de até oito anos, para os fraudadores dos concursos.
Estamos convencidos de que qualquer tentativa de moralização do serviço público está fadada ao fracasso se não partir de uma seleção de pessoal dentro das normas constitucionais, que estipulam o concurso como única forma legal de preenchimento dos cargos públicos. Isto significa fortalecer o Estado com os melhores servidores de carreira que puderem ser recrutados, entre os milhares que se candidatam e se preparam para os concursos fazendo cursos específicos e ampliando os conhecimentos em diversas áreas do saber tecnológico, jurídico, pedagógico e administrativo exigidos pelas atividades que irão exercer.
Por isso, vejo com restrições a solução dada pela presidente da República para a crise no Ministério do Esporte. A simples troca de ministros não resolverá o problema, uma vez que a máquina administrativa daquela pasta continua partidarizada pela mesma agremiação política a que pertencia o antigo ministro, e que está no comando há quase uma década. Sem exagero, parece-me muito mais uma troca de seis por meia dúzia do que um efetivo desejo de extinguir um perigoso foco de corrupção no coração do governo, haja vista que a transmissão de cargo no Palácio do Planalto acabou se transformando num desagravo ao PCdoB, o partido dos dois ministros – o que saiu, Orlando Silva, e o que entrou, Aldo Rebelo.
Essa sensação permanece mesmo com a suspensão dos convênios com ONGs, anunciada primeiro pelo novo ministro em sua pasta e depois pelo governo, como medida generalizada, por 30 dias, para realização de uma devassa nos contratos existentes em toda a administração federal com essas entidades – principalmente quando se sabe que a corrupção custa ao país a bagatela de 80 bilhões de reais em recursos desviados dos cofres públicos, como mostrou a revista Veja na semana passada.
Espero que o secretário-geral da OCDE tenha razão quando afirma que “o Brasil tem demonstrado comprometimento com a reforma do setor público para prevenir a corrupção”. Se, porém, ele infelizmente estiver errado, nós ainda vamos testemunhar muitos escândalos na Esplanada dos Ministérios.