Edson Sardinha
Elevar dos atuais US$ 3,6 mil para US$ 14 mil a renda per capita do brasileiro. Reduzir a taxa de desemprego de 18% para 5% e criar 38 milhões de novos postos de trabalho. Erradicar o analfabetismo (que hoje atinge 14% da população com mais de 10 anos de idade), diminuir o analfabetismo funcional de 30% para menos de 10% da população com mais de 15 anos e elevar o índice de escolaridade dos atuais 6,7 anos para 11 anos. Tudo isso a partir de um crescimento econômico anual superior a 6%. Realidade ou sonho? Essas são algumas das metas do documento "Brasil: para um projeto de consenso", que pretende incluir o país na lista das nações desenvolvidas em, no máximo, duas décadas.
Coordenado pelo sociólogo Hélio Jaguaribe e pelo economista João Paulo de Almeida Magalhães e relatado pelo senador Aloizio Mercadante (PT-SP), o projeto será entregue até agosto ao presidente Lula e ao candidato do PSDB à Presidência, Geraldo Alckmin. Uma versão da proposta foi apresentada sem sucesso aos candidatos ao Planalto em 2002.
Na época, ninguém encampou a idéia. Nem mesmo o relator Mercadante, que, por três anos e meio, foi líder do governo Lula no Senado. "Lula não estava interessado no projeto, mas em consolidar o poder do PT. Essa coisa não deu certo. Com as lições obtidas no primeiro mandato, na provável hipótese de vir a ser reeleito, Lula irá querer fazer coisas diferentes", acredita Jaguaribe.
Leia também
Amigo há cinco décadas do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e eleitor de Lula na eleição passada, o sociólogo defende a tese de que, sem um consenso suprapartidário sobre os principais objetivos do país a longo prazo, o Brasil não conseguirá dar o salto prometido e adiado sucessivamente pelos governos de plantão.
"O Brasil teve idéias a respeito do que lhe convinha apenas nos governos Vargas e Kubitschek. A partir daí ficou sem projeto. Isso é uma coisa grave porque, atualmente, estamos totalmente entregues às vicissitudes do mercado. E o mercado não opera necessariamente a favor dos países subdesenvolvidos e muito menos no sentido de acelerar o crescimento desses países", observa o professor.
Caminho do crescimento
Assinada por parlamentares de pensamentos tão divergentes quanto José Carlos Aleluia (PFL-BA), Jefferson Peres (PDT-AM) e Yeda Crusius (PSDB-RS), a proposta também apresenta estratégias de transição, como a superação da fragilidade fiscal do Estado, a revisão do papel do Mercosul, a discussão do acordo com a Alca e a implantação de uma Carta de Responsabilidade Econômica e Social.
Para retomar a rota do crescimento, afirma Jaguaribe, o Brasil terá de mudar a orientação de sua política econômica e contar com a vontade política do próximo presidente. "E liberação em grande massa de recursos para tornar possíveis esses projetos, o que significa corte vertiginoso de juros, protegido por medidas que evitem a crise cambial, e redução da carga fiscal. Com controle de câmbio, carga fiscal menor e juros pela metade, o Brasil passará a ter R$ 70 bilhões por ano para projetos prioritários", ensina.
Na avaliação dele, o país está no caminho certo para alcançar a segunda meta do projeto de consenso, ou seja, a erradicação da miséria. "O Brasil está hoje menos miserável do que estava quando Lula começou o governo. Essa política é correta, mas não é suficiente porque não está eliminando as causas da miséria. Está compensando os miseráveis com auxílio público. É preciso que os miseráveis tenham condições próprias para sobreviver. Isso significa crescimento econômico, educação e emprego", ressalta.
Lula na berlinda
Crítico do receituário neoliberal, Jaguaribe condena a continuidade da política econômica do governo FHC pelo governo Lula e avisa que não votará novamente no petista caso ele não sinalize com mudanças. "Se Lula não fizer uma ruptura com esse projeto neoliberal, não votarei nele em nenhum momento", alerta. "O governo Lula é um governo de boas intenções e modestas realizações", classifica. Na avaliação dele, Lula tornou-se um mito e, por isso, chega favorito às urnas em outubro, a despeito dos erros de seu governo. "Esse é um mito que não se destrói por argumentos puramente racionais. Ele resistiu aos maus aspectos do governo Lula", considera.
Do alto de seus 83 anos, Jaguaribe é um dos intelectuais mais respeitados do país. Nos anos 1950, fundou ao lado de outros estudiosos o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), que funcionou como núcleo irradiador de idéias e de políticas públicas inovadoras. Com o golpe militar de 1964, mudou-se para os Estados Unidos, onde lecionou até 1969, quando retornou ao Brasil.
Um dos fundadores do PSDB, Hélio Jaguaribe deixou a vida partidária em 1992 para ser secretário de Ciência e Tecnologia do governo Collor. Após o impeachment do presidente, decidiu dedicar-se exclusivamente à vida acadêmica. Atuando como pesquisador e decano emérito do Instituto de Estudos Políticos e Sociais (Iepes), cuja sede fica no Rio de Janeiro, o sociólogo continua um observador atento da cena política. Veja a íntegra da entrevista dele ao Congresso em Foco.
Congresso em Foco – O senhor tem dito que importa menos para o Brasil que o próximo presidente seja Lula ou Alckmin. O que importa é a definição de uma agenda púbica para o país. Que agenda é essa?
Hélio Jaguaribe – A idéia de consenso comanda a ação de todos os países desenvolvidos. Existe consenso na Grã-Bretanha, nos EUA, na Europa e no Japão a respeito dos principais objetivos desses países. O Brasil teve idéias a respeito do que lhe convinha apenas nos governos Vargas e Kubitschek. A partir daí ficou sem projeto. Isso é uma coisa grave porque, atualmente, estamos totalmente entregues às vicissitudes do mercado. E o mercado não opera necessariamente a favor dos países subdesenvolvidos e muito menos no sentido de acelerar o crescimento desses países. O Brasil está precisando desesperadamente de um consenso nacional a respeito dos seus objetivos fundamentais, independentemente da alternância democrática de partidos e lideranças. Seja Lula, seja Alckmin, seja quem for, o próximo presidente não pode continuar desprovido de projeto nacional como tem sido até agora. Essa iniciativa retoma um projeto que foi objeto de consenso parlamentar de alto nível em 2002 e que não teve seqüência porque o relator, que era o senador Aloizio Mercadante, passou a ter uma vida partidária muito ativa e não pôde se ocupar de uma idéia transpartidária e de consenso.
Qual o eixo desse projeto?
Isso vai depender da maneira com que essa idéia de consenso for assimilada pela classe política e admitida pelos candidatos. Fizemos uma primeira comunicação dessa nova redação do projeto de consenso ao presidente interino, Renan Calheiros, numa ausência de Lula. Estamos programando um encontro com o presidente da Fiesp este mês para programar um grande lançamento nacional, em data ainda a ser fixada, visando a conscientizar a classe política e os dois principais candidatos da absoluta necessidade de que certas medidas mínimas sejam objeto de seus programas de governo.
Que metas são essas?
São metas que se dividem em diversos aspectos. Entre os principais, destaco a retomada de um acelerado crescimento econômico e a organização das condições para que esse crescimento nos conduza a uma significativa redução das desigualdades socais e à erradicação da miséria. Para conseguir esse acentuado crescimento econômico, o Brasil precisa sair da estagnação. E isso não será possível se o país não tiver um crescimento anual superior a 6%, em vez dos atuais miseráveis 2% ou 3%, que estamos tendo nos últimos anos. O Brasil está estagnado há 25 anos. Não pode ficar estagnado no próximo quadriênio. Daí a necessidade de uma meta que fixe como prioridade absoluta o crescimento econômico superior a 6%.
Mas como fazer isso?
Com várias medidas, como a redução dos juros e da tributação excessiva e o estímulo à exportação e à empresa privada. O objetivo é o mais importante: adotar as questões necessárias para que o crescimento seja superior a 6% ao ano. Em segundo lugar, a meta da erradicação da miséria. Essa, aliás, está sendo, em parte, muito bem ativada no que diz respeito ao curto prazo, pelo governo Lula, que aumentou significativamente a quantidade de famílias indigentes que estão recebendo o Bolsa-Família. É uma medida necessária que corrige, num curto prazo, as condições miseráveis dessas pessoas. Mas não corrige a miséria. É uma aspirina. Temos de continuar com a Bolsa-Família, mas também caminhar para erradicar as condições que geraram essa miséria, o que significa oferecer mais educação e emprego.
Mas no discurso, professor, todos os partidos defendem isso. O que acontece que, quando chegam ao poder, eles não levam isso a cabo? O que fazer pra isso sair do discurso?
A sua pergunta é perfeitamente válida. Há duas condições fundamentais para que isso saia do discurso para a prática. Primeiro, uma excessiva vontade política de realizar esses objetivos, algo que não seja um marketing para ganhar votos mas um compromisso real dos candidatos para implementar essas políticas. Ponto dois: para que essas metas sejam viáveis, é preciso desengessar a União. As finanças da União estão completamente engessadas. Ela recebe uma gigantesca massa de recursos sob forma de tributos e não tem um centavo disponível. Tudo é consumido pelos juros, que absorvem mais de 20% da despesa federal e por uma outra série de despesas parasitárias. Se nós cortarmos os juros pela metade e eliminarmos essas despesas na mesma proporção, teremos verbas anuais da ordem de R$ 60 a R$ 70 bilhões para serem aplicadas nesses planos.
O senhor tem percebido preocupação dos candidatos a presidente em definir essas prioridades?
Estamos iniciando agora a segunda etapa do projeto, que foi muito bem elaborado por Mercadante em 2002, mas que, no governo Lula, ficou estagnado. Estamos tirando ele da geladeira, renovando as estatísticas e programando com a Fiesp o grande lançamento do projeto. Na medida em que o projeto alcançar audiência pública, ele tenderá a ser executado.
Mas não está claro que o PT e PSDB estão mais preocupados hoje com um projeto de poder do que com um projeto de governo?
Sim, é lamentável isso. Mas é preciso fazer uma distinção entre o presidente Lula e o PT. Embora seja a principal figura do PT, ele tem um estilo próprio, é independente do partido. Esperamos poder conscientizá-lo, por meio do projeto de consenso, da absoluta necessidade de adoção de metas mínimas que ponham o Brasil novamente no caminho do desenvolvimento e contribuam para eliminar as desigualdades, não apenas no curto prazo, mas de forma definitiva.
Sempre há embate entre as áreas econômica e social. O que fazer pra que essas duas áreas joguem no mesmo time?
Há duas condições fundamentais prévias. Vontade política, que não seja meramente retórica para o eleitorado mas efetivo compromisso pessoal do futuro presidente. E liberação em grande massa de recursos para tornar possíveis esses projetos, o que significa corte vertiginoso de juros, protegido por medidas que evitem a crise cambial, e redução da carga fiscal. Com controle de câmbio, carga fiscal menor e juros pela metade, o Brasil passará a ter R$ 70 bilhões por ano para projetos prioritários.
Mas isso é possível mesmo com o Congresso e o modelo eleitoral que temos?
O nosso modelo eleitoral está longe de ser o ideal. Em outubro vamos eleger Alckmin ou Lula. Os outros candidatos são irrelevantes. Qualquer dos dois que venha a ser eleito precisa executar um projeto que tire o Brasil do marasmo. Estou convencido de que eles vão ter essa disposição.
O senhor disse que o senador Aloizio Mercadante foi relator do projeto de Consenso. Mas o fato de ele não ter levado essa proposta adiante, como líder do governo, não é sintomático de que essas idéias não irão pra frente?
Como líder do governo, Mercadante tinha de seguir o que Lula queria naquela ocasião. E Lula não estava interessado no projeto, mas em consolidar o poder do PT. Essa coisa não deu certo. Por isso, creio que agora, com as lições obtidas no primeiro mandato, na provável hipótese de vir a ser reeleito, Lula irá querer fazer coisas diferentes.
O senhor é amigo do ex-presidente Fernando Henrique, mas votou em Lula nas últimas eleições. O senhor identifica avanços no governo Lula em relação ao governo FHC?
São governos muito diferentes. O governo Lula aumentou significativamente o número de famílias beneficiadas pela Bolsa-Família, que é uma invenção do governo FHC. Com isso, deu uma contribuição significativa para reduzir a massa de miséria do país. O Brasil está hoje menos miserável do que estava quando Lula começou o governo. Como lhe disse, essa política é correta, mas não é suficiente porque não está eliminando as causas da miséria. Está compensando os miseráveis com auxílio público. É preciso que os miseráveis tenham condições próprias para sobreviver. Isso significa crescimento econômico, educação e emprego.
Uma das metas do projeto de consenso é que a renda per capita do brasileiro chegue a US$ 14 mil por ano num prazo de 20 anos. O que fazer pra resolver esse problema crônico da distribuição de renda no Brasil até lá?
A primeira coisa é voltar a ter crescimento. Não se pode fazer nada com o país estagnado. Crescer 2% ou 3% ao ano é perpetuar a miséria. Com isso, o Brasil vai ficando cada vez mais perto da África. Para se livrar disso, o país precisa ter o que chamo de velocidade de escape, ou seja, um crescimento superior a 6%. Se atingirmos essa velocidade, passaremos a ter condições para acumular recursos adicionais para educação, saúde, investimentos etc.
Dois temas que devem ser levados a cabo durante o processo eleitoral são a corrupção e a segurança pública. Eles são obstáculos ao crescimento do país?
São medidas operacionais indispensáveis. Creio que é preciso fazer uma distinção entre as metas estruturais do que se pode chamar de metas contingentes. O combate à violência e à corrupção são metas importantíssimas de caráter contingente. O projeto de consenso não pode ser detalhado, isso não funciona. Ele deve ter um número muito pequeno de metas que todo mundo reconheça como indispensáveis para que, depois, cada candidato adote as medidas de acordo com o seu repertório.
A hoje improvável aproximação entre o PT e o PSDB é inevitável, na avaliação do senhor?
Estou convicto de que, a longo prazo, o PT e o PSDB representam a mesma idéia de um projeto de social-democracia do qual o Brasil precisa. Vamos imaginar que depois da reeleição de Lula, num prazo um pouco mais longo, se forme uma frente social-democrática neste país. É um objetivo de longo prazo. Num curto prazo o que importa é que os candidatos dos dois partidos assumam condições para o escape da miséria e do subdesenvolvimento.
O senhor já disse que o governo FHC era neoliberal. O governo Lula seguiu o mesmo caminho?
Também é totalmente neoliberal economicamente. Não pode continuar sendo. Para passarmos de uma política econômica neoliberal para uma política de equilíbrio e desenvolvimentista, as principais medidas a tomarmos são: a drástica redução de juros, o controle do câmbio e a redução do gasto público em atividades meios.
Oposição acusa governo Lula de aparelhar o Estado, de inchar a máquina administrativa. O senhor concorda com isso?
Claramente. O governo Lula é um governo de boas intenções e modestas realizações. Teve uma política externa bem orientada, embora nem sempre tenha tido êxito com ela. Teve uma política de correção da miséria extremamente feliz. Também teve muito êxito nas exportações. O ministro (do Desenvolvimento) Furlan (Luiz Fernando Furlan) revelou-se extremamente competente, conseguiu aumentar de maneira impressionante as exportações brasileiras, corrigindo o eterno déficit externo que vulnerava nosso país.
A última eleição foi ditada pela esperança de mudança. Mas não foi isso que se viu nesses três anos e meio de governo Lula. Os principais candidatos à Presidência são exatamente do PT e do PSDB. Isso não sepulta a esperança de mudança do eleitor?
No momento, estamos diante de um governo Lula que quer ser reeleito sem dizer o que pretende fazer no segundo mandato, e de um candidato, o Alckmin, que critica Lula, mas ainda não definiu o que pretende fazer. O último discurso foi um pouco melhor porque ele disse que tem compromisso com o crescimento econômico. Mas não disse como vai fazer isso. O período eleitoral está começando.
O senhor vota em Lula novamente?
Depende de como eles vão se posicionar. A manutenção dessa política econômica não interessa. Se Lula não fizer uma ruptura com esse projeto neoliberal, não votarei nele em nenhum momento.
O senhor votaria em Alckmin?
Se o Alckmin não tiver um projeto neoliberal, como parece que não vai ter, posso votar nele. As coisas estão pouco definidas agora. Uma pessoa que tenha o voto consciente ainda não pode se antecipar. Não voto por simpatia, voto por projetos.
Inclusive o senhor não votou no Serra mesmo ele sendo seu amigo.
É verdade, porque eu queria um projeto de renovação que, lamentavelmente, não houve.
Que cenário o senhor antevê para o final do mandato do presidente Lula? Chegou-se a acreditar que ele não chegaria ao final por causa da crise política…
O que salva Lula de seus erros e omissões é o fato de que ele se tornou um grande mito. O mito do operário presidente, o do filho de uma família de cortadores de cana que passa fome na infância e consegue, com o seu talento, galgar a condição de presidente da República. Esse é um mito que não se destrói por argumentos puramente racionais. Ele resistiu aos maus aspectos do governo Lula. Essa compra de votos do PT não tem precedente. Aliás, só teve precedente no partido bolchevique russo, que pegava dinheiro de qualquer maneira. Para eles, tudo o que fosse para o partido era legítimo. O PT entrou nessa mesma política, que é inaceitável.