Renata Camargo
O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) vai tentar impedir a aprovação pelo Congresso de uma proposta que reduz a participação dos pequenos produtores no comércio de alimentos para a merenda escolar. Algumas regras estabelecidas pela Medida Provisória 455/09 criam dificuldades para a participação dos agricultores familiares nesse mercado. O texto beneficia empresas de refeição coletiva e indústrias do setor.
A medida provisória foi anunciada pelo governo como um grande avanço na participação do pequeno agricultor no fornecimento de alimentos para a merenda escolar. Pelo texto, ao menos 30% do total de recursos financeiros repassados pelo governo federal aos estados e municípios, por meio do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) devem ser utilizados na aquisição de gêneros alimentícios da agricultura familiar e do empreendedor familiar.
O percentual de 30% já estava previsto no Projeto de Lei 178/08, em tramitação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado. Algumas brechas abertas na MP, no entanto, flexibilizam a aplicação da regra e desagradaram ao Consea, órgão responsável por assessorar o presidente Lula na formulação de políticas de segurança alimentar e nutricional.
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O texto dispensa o cumprimento do percentual caso o agricultor esteja impossibilitado de emitir nota fiscal do produto, seja inviável o fornecimento regular e constante dos alimentos, haja dificuldades logísticas para o fornecimento ou os alimentos se apresentem em condições higiênico-sanitárias inadequadas.
“É um movimento das empresas de refeição coletiva e das indústrias de alimentos na direção de não perder esse negócio. Estamos falando em 44 milhões de refeições por dia e um orçamento previsto de R$ 2,1 bilhões”, alerta o presidente do Consea, Renato Maluf, que se mostrou surpreso com a nova proposta.
“É um retrocesso. Embora entenda a preocupação do governo em dar efetividade ao programa de alimentação de forma rápida, nós nos surpreendemos com uma decisão que modificou um projeto que foi construído conjuntamente com a sociedade”, desabafou Maluf.
Na tarde da última quinta-feira (12), a diretoria do Consea encaminhou ao presidente Lula uma série de recomendações para que ele acompanhe as discussões da MP no Congresso. No documento, os diretores do Conselho afirmam que a alimentação escolar pode ser comprometida “devido à oposição de setores contrários a que o Estado brasileiro assuma, plenamente, suas obrigações com a efetivação do direito humano à alimentação adequada” (leia a íntegra).
As modificações do Projeto de Lei desagradaram a profissionais ligados à educação, nutrição, agricultura familiar e outras áreas. “O governo manteve os 30% do projeto de lei, mas colocou dificuldades que impossibilitam que o agricultor familiar participe. É evidente que o pequeno produtor tem essas dificuldades de comercialização de sua produção e por causa disso os prefeitos não vão comprar deles”, afirma a presidente da Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos (Abrandh), Marília Leão. “Isso é contra a ordem mundial. Se não tiver a agricultura familiar fortalecida, não vamos ter a variedade alimentar necessária e o desenvolvimento local”.
Entre as 70 emendas apresentadas para a MP, 12 foram referentes ao percentual destinado à agricultura familiar. Nas propostas, uma emenda do senador Mario Couto (PSDB-PA) modifica o texto para que “no máximo” 30% sejam comercializados por meio da agricultura familiar. Outra, do deputado Paulo Renato Souza (PSDB-SP), pede a retirada do percentual mínimo e exige licitação para a compra dos alimentos.
Dificuldades
O relator do Projeto de Lei na CCJ, senador Francisco Dornelles (PP-RJ), afirma que muitos estados e municípios não podem cumprir os 30% estabelecidos. Relator do projeto de lei na CCJ, Dornelles é um dos senadores que mais pressionaram para reduzir a participação de pequenos produtores no fornecimento da alimentação escolar e facilitar a participação de empresas no serviço da merenda escolar.
“Dois pontos do projeto de lei foram corrigidos com a medida provisória. Primeiro, o artigo que obrigava os trinta por cento, que agora foram colocados limites, e o outro é o que proibia a terceirização. Muitos estados já têm a alimentação escolar terceirizada. Isso seria um absurdo. E muitos locais não teriam como comprar os 30% da agricultura familiar”, defendeu Dornelles.
Autor do substitutivo do projeto de lei aprovado na Câmara, o deputado Nazareno Fonteles (PT-PI) argumenta que se o município não tiver condições de comprar do mercado local, ele pode recorrer ao agricultor de outra localidade. “É apenas cuidado de planejamento. Mais de 60% do abastecimento do mercado interno de alimentos no Brasil é feito pela agricultura familiar. Como dizer que não é possível adquirir 30 por cento? Esses argumentos não são desculpas suficientes”, condenou.
Terceirização
Outro ponto polêmico da medida é a exclusão do artigo que impedia a terceirização do serviço da merenda escolar. No texto do PL, havia um item que estabelecia que “a aquisição, o preparo e a distribuição da alimentação escolar deverão ser realizados pelo ente público”. Com a retirada do dispositivo, saem também os impedimentos legais para a terceirização da merenda escolar.
“É um grave retrocesso, pois significa manter a alimentação escolar como um negócio. Inúmeros países já mostraram que no fornecimento da alimentação dos alunos as empresas não cumprem com os preceitos de uma alimentação saudável. É um negócio, que quer lucro”, protestou Renato Maluf.
“As experiências que vimos de terceirização é que a qualidade da alimentação baixa muito. Eles privilegiam a alimentação industrializada e de baixa nutrição porque é mais barata. Além disso, colocar a merenda nas mãos de empresas, você perde o vínculo com a atividade pedagógica”, completa Marília Leão.
Gastos
No estado de Dornelles, a briga pelo controle da merenda escolar tem causado polêmica. No final do ano passado, o presidente e o vice-presidente da Comissão de Educação da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, deputados Comte Bittencourt (PPS) e Marcelo Freixo (Psol), entraram com uma ação contra o governo do estado para inviabilizar o fornecimento de merenda escolar em forma de quentinhas.
“A merenda descentralizada no Rio sempre foi um dos ganhos do estado. As escolas recebem um valor, fazem a compra e são responsáveis pela alimentação dos alunos. O governo do estado, no entanto, não se sabe com qual interesse, vem trabalhando para centralizar as merendas e colocar nas mãos de uma única empresa”, condena Marcelo.
Segundo o deputado, a merenda escolar que sai por R$ 0,32 por aluno no modelo descentralizado, ou seja, com gestão e gerenciamento feito pelas escolas, passaria para R$ 2,10 se realizada por uma empresa.
“É um projeto que encarece e atinge os cofres públicos. E, além disso, não representa avanços pedagógicos. É um retrocesso”, considerou o deputado que é também professor de história no ensino médio. “R$ 0,32 por aluno é um valor muito reduzido. Evidente que o poder público tem que ter os seus instrumentos de fiscalização, mas é muito mais fácil os cofres públicos serem lesados pela terceirização do que pelo ente público”, complementou.
Denúncias
As denúncias de irregularidades envolvendo empresas que prestam serviços de merenda escolar também são recorrentes. Na semana passada, o Ministério Público de São Paulo encaminhou à prefeitura da cidade uma recomendação para o estado suspenda e rescinda os contratos de fornecimento da merenda para a rede pública de ensino.
De acordo com o Ministério Público, as empresas são suspeitas de formação de cartel, fraudes em licitação, superfaturamento, corrupção de agentes públicos, além de fornecimento de frutas e outros alimentos estragados ou com prazo de validade vencido.
Desde 2001, o fornecimento de merenda no estado paulista é feito por empresas privadas. Pesquisa realizada pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), a pedido do governo do estado, revelou que aos cofres públicos a merenda terceirizada custa 3,7 vezes mais do que a fornecida pela prefeitura.
“Não se pode dizer que toda a terceirização é ruim, nem que a merenda feita pelo Estado é sempre boa. Existem situações positivas com a merenda escolar feita por empresas. Hoje a tendência da terceirização é fazer o que o nutricionista quer”, considerou o senador Dornelles.
Saúde
Os contra-sensos envolvendo a medida provisória, no entanto, recaem também sobre os parâmetros básicos de alimentação saudável. O novo texto enviado pelo governo retira o dispositivo que exigia que na elaboração dos cardápios fossem incluídos alimentos a serem consumidos em seu estado natural, como frutas e verduras.
“Tirar os conceitos de alimentação saudável nos preocupa muito, porque essa é uma pressão da indústria de alimentos de baixa qualidade”, condena Marília. “Com isso os responsáveis pela merenda escolar podem dar para as crianças só alimentos sem valor nutricional, ao invés de considerar alimentos saudáveis como verduras e frutas”, completou.
Além de retirar do texto os artigos que estabeleciam a obrigatoriedade de uma alimentação balanceada, podem ser abolidos também itens que dispõem sobre a necessidade do acompanhamento de um nutricionista.
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