No dia 7 de dezembro, a presidenta Dilma Rousseff anunciou um plano de enfrentamento do consumo de drogas com o slogan “Crack – É possível vencer”. Dilma cumpriu ali uma de suas promessas de campanha – a de endurecer no país o combate ao comércio e ao consumo de substâncias ilícitas. Mas o evento acabou acontecendo com 15 dias de “atraso”: um grupo de deputados convenceu o Planalto a, antes do anúncio do plano, receber um estudo realizado na Câmara a partir de uma comissão temática que se debruçara por meses sobre o assunto. O objetivo foi reunir e analisar tudo o que tramita sobre o tema no Congresso, para que as boas ideias fossem incorporadas ao projeto do governo. Assim foi feito.
Leia também
Bem próximo ao Palácio do Planalto, onde a presidenta despacha, o Congresso tem registrado muita letra e pouco efeito prático a respeito do tema: cerca de 400 projetos, direta ou indiretamente ligados à questão das drogas, aguardam a chance de entrar na pauta de votações. E foi para fazer frente à essa realidade, e entrar em sintonia com as ações governamentais que uma comissão especial criada na Câmara se propôs durante esta legislatura a promover estudos, propor políticas públicas e elaborar projetos legislativos “destinados a combater e prevenir os efeitos do crack e de outras drogas ilícitas”. Na reta final da legislatura, com as atenções de governistas e oposicionistas voltadas para temas como Desvinculação das Receitas da União (DRU) e Orçamento Geral da União, quase nenhuma atenção foi dada ao assunto.
A comissão foi instalada nos primeiros instantes da legislatura, e teve sua composição definida em 29 de março de 2011 – entre titulares e suplentes, são 56 parlamentares. Suprapartidária, teve seus postos de comando preenchidos por Reginaldo Lopes (PT-MG), presidente; Wilson Filho (PMDB-PB), 1º vice-presidente; João Campos (PSDB-GO), 2º vice-presidente; e Iracema Portella (PP-PI), 3ª vice-presidenta. A relatoria da comissão, de caráter temporário, coube ao deputado Givaldo Carimbão (PSB-AL). Com 346 páginas, o relatório foi levado ao presidente da Câmara, Marco Maia (PT-RS), no último dia 14, por Reginaldo Lopes. O colegiado recebeu de seus criadores a alcunha de Cedroga.
Confira o resultado dos trabalhos da comissão especial
Para um dos membros da comissão, a questão das drogas teve percurso similar àquele registrado no final dos anos 1980, em que a Aids surgiu como um fantasma na vida da sociedade brasileira, um tabu a ser assimilado e vencido: tal como a epidemia, só foi tratada com a devida preocupação quando se intensificou no seio das mais variadas esferas da população. Afinal, trata-se de problema de saúde pública que não escolhe credo, cor ou posição social.
“Eu nunca vi um momento tão propício para discutir essa questão como estou vendo nesse mandato. Por quê? Porque o crack chegou à casa de todo mundo, ou chegou perto da casa. [A droga] passou a ser uma questão não só de vulnerabilidade dos pobres, passou a ser uma questão geral. Isso mexeu com o Parlamento, com o Executivo. Isso abriu a possibilidade de o Brasil fazer essa grande discussão”, declarou Carimbão, com 38 anos de mandato parlamentar – três de vereador e quatro de deputado federal –, 25 dos quais dedicados aos usuários de droga.
Fundador do Lar Sagrado Coração de Jesus, em Maceió, em 1989, Carimbão diz que cola de sapateiro e maconha, drogas muito menos danosas que o crack, eram “o problema a ser enfrentado” naquela época. “Cocaína e seus assemelhados eram drogas para pessoas de elevado poder aquisitivo. Como não houve a devida atenção por partes dos poderes constituídos, outras drogas foram surgindo, com alto poder danoso e que rondam as nossas ruas nos dias atuais”, disse o deputado alagoano em seu relatório, com críticas às “interpretações equivocadas” do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Resmas contra a droga
Não houve qualquer cancelamento de reuniões por falta de quórum na comissão especial. Ao final dos trabalhos, que consumiram mais de nove meses desde a instalação do colegiado, 1.025 páginas de relatório foram entregues à equipe da presidenta Dilma para análise – o que adiou em 15 dias o lançamento do plano de combate ao crack. “Grande parte [do documento] foi acatada. Tudo isso é a sinergia do sentimento das ruas com o Parlamento”, festeja Carimbão. Temas como saúde e educação, diz, perderam lugar nas súplicas dos eleitores. “Hoje, um dos principais pedidos que a população faz aos políticos é para resolvermos as questões da violência e do crack.”
Carimbão acredita que ainda não será desta vez, com o plano anunciado por Dilma, que a problemática das drogas será resolvida – no quesito prevenção e recuperação de drogados, diz, o programa ainda é insuficiente. “Foi um passo. Essa luta é de mais 10, 20 anos”, calcula o parlamentar, parabenizando o Ministério da Educação, por exemplo, por ter financiado o aumento do repasse de R$ 57 para R$ 200, por leito hospitalar, para ações de desintoxicação. Ele diz contar com o trabalho paralelo dos senadores Wellington Dias (PT-PI) e Ana Amélia (PP-RS), respectivamente presidente e vice da Subcomissão Temporária de Políticas Sociais sobre Dependentes Químicos de Álcool, Crack e Outras Drogas, colegiado criado no âmbito da Comissão de Assuntos Sociais do Senado.
O deputado informou ainda que 13 projetos de lei sobre o tema foram elaborados com base nos trabalhos da comissão, que também incorporou proposições anteriores. Uma delas (Projeto de Lei 7663/2010), de autoria do deputado Osmar Terra (PMDB-RS), provocou a criação de outra comissão especial. “Ninguém podia prever a proporção que [a comissão antidrogas] tomou. A gente fez esse projeto de lei justamente para avançar em relação à lei atual, que não está conseguindo controlar nada, está agravando o problema”, diz Osmar, para quem o PL 7663 moderniza e aprimora o tratamento de usuários de droga, além de “tirar os traficantes de circulação pelo maior tempo possível”.
“Isso funciona como uma epidemia viral: quanto mais vírus tem circulando, mais gente doente tem; quanto mais traficante circulando, mais tem gente com essa doença crônica. Então, que se diminua a possibilidade de alguém ficar dependente retirando de circulação, por mais tempo, o traficante”, emendou o parlamentar gaúcho, defendendo a internação involuntária por antecipar o tratamento. “Nem que seja por um período de tempo curto, para desintoxicar. Depois se vê se a pessoa quer continuar. Isso é até em defesa da família, que sofre mais do que o usuário.”
O projeto de Osmar acrescenta e altera dispositivos da Lei nº 11.343 (agosto de 2006) para tratar do Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas. A proposição garante conselhos comunitários de acompanhamento e combate às drogas, para estimular a participação popular. A matéria também garante incentivos às empresas para que elas contratem dependentes químicos em recuperação. Além disso, assegura-se o credenciamento das comunidades terapêuticas junto ao Ministério da Saúde, desde que elas estejam adequadas aos requisitos protocolares. Protocolada em julho de 2010, a matéria aguarda determinação da Mesa Diretora da Câmara para ser apreciada em comissão especial.
Confira a íntegra do Projeto de Lei 7663/2010
Pinça
Entre as cerca de 400 proposições na fila de espera da Câmara, o presidente da comissão especial (Cedroga), Reginaldo Lopes, considera que o projeto proposto por Osmar Terra é o mais completo no que diz respeito às mudanças na legislação. “Durante o debate [na comissão especial a ser criada], a sociedade poderá, inclusive, propor outras mudanças. É um debate aberto, em que a sociedade terá o direito de contribuir para que ajustes possam ser feitos nessa atual legislação”, emendou o petista, para quem a proposição colocará fim à insuficiência da política antidrogas ora executada no Brasil.
Para Reginaldo, o trabalho da comissão não implica recomeçar “do zero” o processo legal de combate às drogas. “Pela primeira vez vai haver um projeto bem estruturado, como diz a presidenta Dilma, moderno e corajoso. E trabalhou quatro eixos que, até então, eram ações isoladas. Não era um programa nacional. Tinha ações pontuais no Ministério da Saúde, no Ministério da Educação, na repressão. Agora, temos um conjunto articulado de propostas”, completou o deputado, referindo-se às ações de prevenção, acolhimento ao tratamento, requalificação e reinserção e repressão previstas no projeto de Osmar Terra.
Por meio da articulação de ações mencionada por Reginaldo, a comissão antidrogas pretende priorizar a recuperação do dependente químico. “E, a partir dele, termos uma metodologia de início até o final do tratamento, e depois irmos para a outra parte. Ficar em abstinência não é fácil, essa pessoa precisa refazer seu projeto de vida, suas relações afetivas”, concluiu Reginaldo, mencionando entre os benefícios do projeto a garantia, para usuários em recuperação, de 10% de vagas nas escolas técnicas federais.
“Não é cota. Nós estamos criando uma ação estratégica de ampliação dessas vagas em todos os cursos, em todos os turnos das escolas técnicas para fazer a qualificação profissional do dependente químico em tratamento de abstinência”, justificou o parlamentar mineiro, diante do fato de que 95% dos dependentes de drogas não concluíram o ensino médio. “O foco correto é formação de nível médio tecnológico. Temos uma economia de pleno emprego que precisa de mão de obra qualificada.” Reginaldo lembrou ainda que o o relatório de Givaldo Carimbão propôs, como providência complementar, a reserva de 1% para a contratação de dependentes em tratamento nas obras, contratos e serviços públicos, para garantir a reinserção deles no mercado de trabalho.
Multa para drogados
Tanto na Câmara quanto no Senado, a maioria das proposições protocoladas ainda aguarda despacho das subsecretarias de atas. Entre os projetos em tramitação – ou seja, já em análise nas comissões temáticas correspondentes –, um pretende estabelecer pena de multa para usuários de droga, além de “criar nova circunstância agravante ao agente que comete crime sob efeito preordenado de drogas”, entre outras providências. “Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar ficará sujeito a pena de multa, de R$ 200,00 a R$ 1.000,00, (…)”, diz o artigo 28.
A matéria (leia a íntegra) foi protocolada em 21 de dezembro, véspera do recesso parlamentar, pelo senador Sérgio Souza (PMDB-PR). “As penas para o usuário de drogas são muito brandas e não desestimulam a prática ilícita. (…) Estamos convencidos de que a guerra contra o tráfico de drogas jamais será vencida sem a punição eficaz dos usuários”, diz o senador na justificativa do projeto, alegando que um combate eficaz contra as drogas requer “que o Estado adote medidas em desfavor dos que alimentam esse comércio”.
Já a deputada Keiko Ota (PSB-SP) preferiu propor mais punição aos presos por tráfico de drogas. Ela é a autora do Projeto de 2840/2011 (confira a íntegra), que entre outras disposições “proíbe a prisão especial para crime hediondo, tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e terrorismo”. Apresentada em 1º de dezembro de 2011, a proposição tramita em regime de prioridade de votação e em caráter terminativo (sai das comissões temáticas direto para o Senado, sem necessidade de passar pelo Plenário da Câmara).
Para Keiko, o direito a prisão especial, “já muito criticado por juristas e doutrinadores do direito e que bastante perplexidade ainda provoca na sociedade brasileira”, deveria ser vetado nos casos mencionados no projeto. A deputada defende a restrição àqueles delitos porque, “além de revelarem grande potencial ofensivo, causam elevada repulsa ou clamor social”. Concisa e indiretamente ligada à questão das drogas, a proposta altera a legislação referente a crimes hediondos (Lei nº 8.072, promulgada em julho de 1990).
Arquivo
As cerca de 400 proposições direta ou indiretamente ligadas à questão das drogas dificilmente terão, na totalidade, sua tramitação concluída ainda nesta legislatura (até dezembro de 2014). Além da agenda apertada, do tempo que ficará comprometido pelas duas próximas eleições (municipal, em 2012, e presidencial, em 2014) e da concorrência de outros temas, cuja prioridade é definida pelas lideranças partidárias, muitas das propostas acabam sendo deixadas de lado pelos próprios autores.
Graças à longa permanência de algumas proposições nas gavetas da pauta, estas se tornam “velhas” ou têm propósitos aprovados em outros projetos – caso do PLS 53/1990, apresentado em 17 de maio de 1990 pelo então senador Márcio Lacerda (PMDB-MT) para permitir que comissão mista do Congresso pudesse acessar dados de pessoas indiciadas por tráfico de drogas. A matéria foi arquivada ao final da legislatura, em dezembro daquele ano.
O Congresso em Foco atestou a grande quantidade de registros formalizados sobre o assunto. Em uma rápida pesquisa na página da Câmara, o número de instrumentos legislativos relacionados ao tema (requerimento de informações, sugestões, propostas de fiscalização e controle, etc) impressiona ainda mais: ao digitar o termo “drogas”, o internauta obtém 935 itens protocolados até o encerramento do ano legislativo (22 de dezembro). Já no Senado, a partir da consulta com o termo “drogas”, a reportagem detectou 221 documentos referentes a matérias em tramitação na Casa – ou seja, restringindo-se a pesquisa a “projetos de lei do Senado”.
Confira os projetos antidroga