Tarciso Nascimento
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Durante 23 anos, o advogado Paulo Afonso Martins de Oliveira teve mais poder na Câmara do que muito deputado. Entre 1965 e 1988, coube a ele a missão de orientar os processos de votação da Casa, na condição de secretário-geral da Mesa Diretora. Personagem de fundo de um dos capítulos mais conturbados da história política nacional, o regime militar de 1964 a 1985, Paulo Afonso se dedica atualmente à revisão do livro em que promete contar aquilo que testemunhou nos bastidores do Legislativo. Aos 77 anos de idade, 42 dos quais dedicados à Câmara, acompanha com olhar crítico as transformações na atuação dos parlamentares. Lembra com saudosismo do tempo em que, segundo ele, político tinha espírito público aguçado, os grandes oradores se acotovelavam para ocupar a tribuna do Parlamento, e os parlamentares sabiam o que estavam votando. Leia também “Os deputados não votam mais. Quem vota (hoje) é o líder. Eles não sabem nem o que estão votando. Se, ao terminar uma sessão, você perguntar o que se votou, eles não sabem”, diz, com uma ponta de indignação. Não há como deixar de associar a crítica à passagem do documentário “Fahrenheit 9/11”, do norte-americano Michael Moore, em que um deputado admite que os parlamentares (também lá) não lêem os projetos que aprovam. O democrata, no caso, se referia à aprovação da Lei Patriótica, que suprima direitos civis no calor dos ataques de 11 de setembro aos Estados Unidos. Saudoso de figuras como Tancredo Neves e Ulysses Guimarães, ao qual, aliás, dedica os maiores elogios, Paulo Afonso lamenta a decadência intelectual dos parlamentares. “Um deputado é a representação ética e moral do povo brasileiro. Então, se o nível do povo cai, se o analfabetismo continua, se não há princípios éticos, tudo isso vai se refletir no Congresso”, avalia. Paulo Afonso descobriu a política aos 18 anos, ainda no Rio de Janeiro, quando foi convidado a trabalhar como datilógrafo da Constituinte. Com a transferência da capital para Brasília, em 1960, assumiu a secretaria da Comissão do Distrito Federal. Cinco anos depois, assumiria a Secretaria-Geral da Mesa, onde permaneceu até a promulgação da Constituição de 1988. Nesse período, assessorou 11 presidentes na Câmara. De lá saiu direto para o Tribunal de Contas da União (TCU), já na condição de ministro. Em Tempos Vividos, título provisório do livro que escreve a quatro mãos com o jornalista Tarcísio Hollanda, Paulo Afonso se dispõe a contar detalhes das atribuladas sessões da Câmara no regime militar. “Foi um período altamente trabalhoso, difícil. Nós tínhamos que contemporizar”, diz. Nesta entrevista exclusiva ao Congresso em Foco, ele relata histórias pouco conhecidas do grande público. O ex-ministro lembra, por exemplo, da manobra regimental feita no final da década de 70 pelo ex-presidente da Casa Flávio Marcílio (Arena) para evitar que a ameaça de fechamento do Congresso feita pelo general Ernesto Geisel se cumprisse. Também conta que foi do atual presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Nelson Jobim, a idéia de incluir na Constituição um mecanismo que, segundo ele, causa grande prejuízo ao Congresso: as medidas provisórias. “Foi ele o responsável pela aprovação, porque ninguém sabia o que realmente eram essas MPs. Nós tínhamos o decreto-lei, mas o decreto-lei tinha limites”, diz. Congresso em Foco – O senhor assessorou a presidência da Câmara por 21 anos. Os parlamentares estão mais bem preparados para o exercício do cargo hoje? Paulo Afonso Martins – Antigamente era melhor. Os políticos tinham uma conduta diferente. Eu não sei se foi a mudança da capital para cá (Brasília) que mudou isso. Antes, havia mais discussão dos projetos e um debate maior. Hoje não há mais debate. Isso significa que o chamado tribuno parlamentar, o grande orador, acabou. Os deputados não votam mais. Quem vota é o líder. Eles não sabem nem o que estão votando. Se, ao terminar uma sessão, você perguntar o que se votou, eles não sabem. “Nunca se votou nada na Constituinte sem que Hoje se vota às escuras? Sim. Na minha época não se votava nada no escuro. Nunca se votou nada na Constituinte sem que os congressistas conhecessem. Era um dever conhecer. Mas, hoje, o que acontece: não explicam nada a esses congressistas, e eles também aceitam isso. Esta é a verdade: eles aceitam tudo. Os congressistas não aceitavam votar o que desconheciam? Não. Levantavam questão de ordem (perguntas que os deputados fazem no calor das discussões, geralmente sustentadas em questões regimentais) e faziam um tumulto. Os debates estão mais escassos no Congresso? Não tem mais debate. Tudo é questão de ordem. Na minha época isso não existia, porque na questão de ordem o deputado tinha que invocar o artigo do regimento. Hoje esses questionamentos se resumem a discursos paralelos. “Um deputado é a representação ética e moral do O nível intelectual caiu muito? Caiu. Eu sempre disse que um deputado é a representação ética e moral do povo brasileiro. Então, se o nível do povo cai, se o analfabetismo continua, se não há princípios éticos, tudo isso vai se refletir no Congresso. O senhor se sente decepcionado com os rumos da política atual? Hoje o código político mudou muito. Essas medidas provisórias, nos termos em que elas são editadas, causam um grande prejuízo ao Congresso, porque entram imediatamente em vigência. O Executivo não quer ver suas medidas provisórias rejeitadas. A medida provisória tranca a pauta (ou seja, impede a votação de qualquer outra proposição). Isso permite que a oposição crie dificuldade na aprovação de outros projetos. Os trâmites são mais demorados que antes? Sim. É muito mais demorado. O senhor já recebeu alguma proposta indecorosa? Nunca me fizeram propostas indecorosas, mesmo porque eles me conheciam e sabiam que eu não admitiria qualquer iniciativa nesse sentido. “Os políticos tinham princípios éticos muito Havia mais princípios éticos na política? Os políticos tinham princípios éticos muito acentuados. Naquela época existia um princípio que hoje está esquecido, o chamado espírito público. Hoje ninguém tem mais espírito público, algo que confronta a ética. Antes, eles (parlamentares) votavam, discutiam e apresentavam propostas. Mas também não existia a troca de favores por voto? Não. Isso não existia. Aqueles que eram governistas, normalmente, o governo ajudava mais. Mas não significava que houvesse compra de votos. A existência de lobbies no Congresso é um fenômeno recente? Já tinha muito “lobby”. O meu gabinete nunca teve a porta fechada. De vez em quando, algum deputado tentava conversar comigo para ver o que iria acontecer, se determinado projeto seria aprovado ou rejeitado. O senhor presenciou muitos tumultos? Alguma agressão física no Congresso? Muitos. Certa vez, o deputado Aurelino Chaves deu um soco no deputado João Herculino. O motivo foi uma discussão envolvendo Minas Gerais. Um outro caso foi de um deputado do Rio de Janeiro, Breno Silveira, com um deputado do Acre. O Breno deu um soco que fez o parlamentar do Acre entrar pelas bancadas. Mas, naquela época, o atrito era mais verbal. Hoje em dia tem até deputado que “incorpora espírito” em plena sessão. O senhor se recorda de algum fato inusitado que o tenha marcado? Isso eu nunca assisti, mesmo porque, naquela época, nunca um deputado que não fosse membro da Mesa presidia uma sessão. Excepcionalmente poderia acontecer de, no fim de uma sessão, assumir o parlamentar mais idoso. “Numa Casa como aquela (Câmara), é preciso ter cautela constante e atenção de toda ordem, porque há conflitos dentro das próprias bancadas e entre os deputados. O secretário-geral da Mesa tem que se dar com todos eles, mas não pode ter preferência por nenhum” Durante boa parte dos anos que o senhor trabalhou na Câmara, o país esteve sob a “mão de ferro” dos generais. Como era trabalhar numa Casa com tantas restrições políticas? Foi um período altamente trabalhoso, difícil. Os presidentes da Câmara eram todos ligados ao Governo. O Bilac Pinto (1965-1966) era ligadíssimo ao Castelo Branco (presidente da República entre 1964 e 1966). Nós tínhamos que contemporizar. Numa Casa como aquela (Câmara), é preciso ter cautela constante e atenção de toda ordem, porque há conflitos dentro das próprias bancadas e entre os deputados. O secretário-geral da Mesa tem que se dar com todos eles, mas não pode ter preferência por nenhum. Há alguma história do regime militar (1964-1985) que não sai de sua memória? Eu me lembro do caso do deputado Chico Pinto. Certa vez, ele fez um discurso (contra o general chileno Augusto Pinochet), e o Geisel (presidente da República entre 1974 e 1979) pediu licença ao Congresso para processá-lo no Supremo Tribunal Federal (STF). O líder da oposição pediu tempo para o Chico Pinto falar, para que ele pudesse se despedir da Câmara. O presidente da Câmara era o Flávio Marcílio, que concordou com a despedida. Quando o Palácio soube, vetou. O Armando Falcão, que era Ministro da Justiça, amigo do Flávio, ligou para ele e disse: “Se o Chico Pinto falar, ele não termina o discurso, porque o Geisel decreta o recesso do Congresso”. O Plenário estava cheio. Só havia um jeito: quando o presidente desse a palavra ao Chico Pinto, alguém levantaria uma questão de ordem, alegando que, como o Supremo havia denúncia contra o deputado, ele não poderia falar, porque já teria deixado de ser deputado. O Flávio deu a palavra ao Chico Pinto. Eu fui obrigado a fazer um gesto discreto para o líder da oposição, que iria levantar a questão de ordem. Ele levantou a questão de ordem e o Flávio aceitou dizendo que havia verificado a comunicação e, praticamente, cassou a palavra do Chico Pinto. O doutor Ulysses Guimarães se levantou e fez uma crítica terrível ao Flávio Marcílio, que era muito esquentado. Aí eu disse para o presidente: “Não responda, porque aí vai tumultuar e essa sessão não termina”. Houve alguma intervenção de sua parte, naquele período (1964-1985), que tenha evitado o fechamento do Congresso? Uma vez o governo mandou um projeto determinando que só poderiam servir militarmente os estudantes universitários que tivessem habilitação na área de Ciências. Isso depois de formado. A oposição foi contra. Achava que aquilo era uma violência. A proposta foi distribuída a três comissões. Duas foram contra. O relator era o Márcio Moreira Alves. Ele era contra, mas já avaliava a situação. Rondon Pacheco, que era o chefe da Casa Civil na época do Costa e Silva (presidente da República ente 1967 e 1969), disse que, se o projeto fosse rejeitado, eles iriam decretar o recesso do Congresso. O presidente da Câmara era o José Bonifácio. O Márcio concluiu pela rejeição do projeto e foi saudado com muitas palmas. Tive então de encontrar uma saída. A Constituição na época falava em “parecer contrário de comissão”. O Márcio, porém, não tinha delegação da comissão. Ele falava em nome próprio. Era um parecer pessoal. O presidente da Câmara entendeu que aquele voto era pessoal e, portanto, não valia. Isso evitou o fechamento do Congresso. “O (Nelson) Jobim foi quem teve a idéia de introduzir as medidas provisórias, uma característica do regime parlamentarista. Foi ele o responsável pela aprovação, porque ninguém sabia o que realmente eram essas MPs. Aconteceu algum fato curioso durante a mudança do regime militar para o democrático? A Constituinte foi o restabelecimento do regime democrático. Houve um confronto muito grande entre o José Sarney (presidente da República entre 1985 e 1989) e o Ulysses Guimarães (presidente da Câmara). A Constituinte conseguiu devolver para o Congresso todas as atribuições e competências. O Sarney dizia que isso criava a ingovernabilidade. Um dia, o doutor Ulysses fez um discurso, na mesa da Câmara, contestando o Sarney publicamente, uma coisa muito desagradável. Ele havia me dito que precisava dar uma resposta ao Sarney. Eu falei: “Não, presidente, é melhor não dar uma resposta”, mas o Nelson Jobim, que era deputado, atual presidente do STF, convenceu o Ulysses, de quem era muito amigo, a fazer o discurso. A Constituinte não saiu do jeito que o Sarney queria. Tanto assim, que eles já fizeram várias emendas constitucionais. O Jobim foi quem teve a idéia de introduzir as medidas provisórias, uma característica do regime parlamentarista. Foi ele o responsável pela aprovação, porque ninguém sabia o que realmente eram essas MPs. Nós tínhamos o decreto-lei, mas o decreto-lei tinha limites. Só em duas ou três hipóteses é que o presidente da República poderia baixá-lo. Como era o seu relacionamento com os presidentes da Câmara? Era muito bom. Quando um presidente novo chegava, eu fazia uma carta colocando o meu cargo à disposição dele. Nunca pedi para ficar. Eu queria ter autoridade para discordar deles, mas eles sempre me confirmavam na função. Nunca tive restrição mental. Achava que aquela conduta era melhor. Todos eram muito educados, mas cada um tinha o seu temperamento. E quem tinha o temperamento mais difícil? O mais difícil era o Flávio Marcílio. Ele tinha uma noção muito sensível da independência da Câmara. Ele tentou, através de uma emenda constitucional que não teve sucesso, restabelecer as prerrogativas dos congressistas e teve certos atritos com o Palácio do Planalto. Ele era meio autoritário. Em que momento esse temperamento intempestivo se revelou, por exemplo? O Djalma Marinho era presidente da Comissão de Constituição e Justiça quando o governo pediu licença para processar o deputado Márcio Moreira Alves. Muito agitada, a comissão concedeu a licença por um voto. O Djalma, que não precisava votar, tendo em vista aquela situação, renunciou à presidência. E disse: “Ao rei tudo, menos a honra”. Em seguida veio a comemoração dos 150 anos do poder legislativo. O Flávio, que era o presidente da Câmara, convidou o Djalma para ser o orador oficial e começou a sofrer uma pressão muito grande. Muitos achavam que o Djalma iria fazer um discurso de desafio, de contestação ao regime. Ele então procurou o Flávio e disse: “Olha, fique à vontade para me substituir. Eu vou dizer que estou doente e você me substitui”. O Flávio não aceitou, alegando que já o havia designado. Na véspera da sessão solene, o Djalma chega com o discurso escrito e o entrega ao Flávio, que disse que nem iria lê-lo – preferia ouvi-lo. Também teve um outro episódio. Na fixação de subsídios para os congressistas, um ministro chamou o Flávio e disse que tinha um decreto legislativo fixando um subsídio para os parlamentares no ano seguinte. Muito irritado, Flávio disse ao ministro: “Nós sabemos fazer as leis”. Ele pegou o papel, o rasgou e o jogou no lixo na frente do ministro. “O doutor Ulysses não se irritava, mas era daquelas figuras que não admitiam que ninguém batesse na barriga dele. Mas quem foi o melhor presidente da Câmara? Foi o doutor Ulysses Guimarães, uma pessoa muito educada, uma grande sensibilidade política, o homem das maiorias. Ele sempre ficava com a maioria. Não dava murro em ponta de faca. O doutor Ulysses não se irritava, mas era daquelas figuras que não admitiam que ninguém batesse na barriga dele. Ele mantinha distância, conversava, mas ninguém tomava intimidade com ele. Apesar desse distanciamento, o senhor se recorda de algum episódio pitoresco envolvendo o doutor Ulysses? O doutor Ulysses não tem histórias pitorescas. Era muito recatado. Sabia fazer as coisas. Eu me lembro da discussão envolvendo a autonomia do Distrito Federal. O Tancredo Neves, que foi quem levantou a questão, dizia que Brasília era uma cidade politicamente cassada. Márcia Kubitschek, que era deputada federal, fez uma emenda dando autonomia política ao Distrito Federal. Ulysses foi contra. Mas a Márcia trabalhou muito no Plenário. Quando chegava a hora de votar a emenda, o Ulysses me dizia: “Deixa para depois”. Ele esperava que a proposta fosse rejeitada. O doutor Ulysses era contra a autonomia política de Brasília? Sim. Ele achava que deveria deixar como estava. Acho que ele tinha razão. É só ver que essa Câmara Distrital não corresponde à cidade. Então eu dizia: “Doutor Ulysses, está na hora de votar a emenda da Márcia”. Ele falava: “Passa para depois”. No final, ela foi uma das últimas a ser aprovada, se não foi a última. Quem era o parlamentar mais habilidoso? Quem o senhor mais admirava? Foram vários: Tancredo Neves, Bilac Pinto, Guilherme Machado, Prado Kelly, Milton Campos, Afonso Arinos, Cantídio Sampaio, Gustavo Capanema, entre outros. Teria que ver a relação dos nomes. O Tancredo era um excelente orador. Habilíssimo. Ele não confrontava ninguém. Tinha aquele espírito mineiro. Contornava tudo e via principalmente a sua posição e projeção política. Era muito habilidoso. E dos atuais, quem chama a sua atenção pela habilidade política? O novo presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL). Eu o conheço desde deputado. É hábil, cauteloso, não se expõe. Ele tem um temperamento muito diverso do Severino Cavalcanti (PP-PE). E como o senhor avalia a atuação do Severino Cavalcanti na presidência da Câmara? É difícil avaliar. Eu acho que ele é um homem sincero. Não sei se faz bem, mas tem a preocupação de caracterizar a Câmara como um órgão independente do Executivo. Ele tem certos princípios religiosos, e acho que aos poucos está cedendo. Ele demonstrou que não tem muita paciência na Mesa. Um presidente não discute com um deputado (há duas semanas, Severino discutiu com o líder do PSDB, Alberto Goldman, após rejeitar denúncia contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva). O presidente tem de dar a decisão e pronto. Se começar a discutir com deputado, termina em bate-boca e cai muito o nível. Com o decorrer do tempo ele vai melhorar. “Eu acho que o Senado está melhor. São homens Quem está mais representado hoje: o Senado ou a Câmara? Eu acho que o Senado está melhor. São homens que têm mais experiência na administração pública e na questão do relacionamento. O Sarney, por exemplo, não bate-boca com ninguém. Ele, na presidência do Senado, tomava a decisão e encerrava. |
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