Reportagem – é o aprofundamento de uma notícia ou o mergulho em um fato importante, mesmo que não seja recente, em busca de revelações exclusivas. A reportagem, na acepção aqui utilizada, está no universo do “jornalismo investigativo”, que remete ao esforço para tornar públicos fatos relevantes que autoridades ou pessoas poderosas gostariam de manter ocultos. Uma boa reportagem requer pesquisas intensas, entrevistas com grande diversidade de fontes, reiteradas checagens e cuidado especial na apresentação do conteúdo final, que pode trazer complementos como vídeos, infográficos, mapas e painéis de visualização de dados. Também deve trazer – ou, no mínimo, tentar obter – as explicações de quem pode ter sua imagem arranhada pela sua publicação.
Durante o governo Fernando Henrique, ele foi o autor das duas reportagens que, provavelmente, produziram maior abalo na tucanocracia à época reinante. Uma, provando a compra de votos para aprovar a emenda que permitiu ao então presidente se candidatar à reeleição, em 1998. A outra, revelando – por meio dos famosos grampos do BNDES – que FHC teve, no processo de privatização, uma atuação pessoal no mínimo discutível sob o aspecto ético.
No governo Lula, tornou-se ponto de mira de muitos petistas e lulistas, que vêem nele (e em tantos mais) a encarnação de um comportamento hostil da grande imprensa em relação ao atual presidente e ao PT.
O seu blog http://uolpolitica.blog.uol.com.br/ e as colunas e reportagens publicadas na Folha de S. Paulo garantem hoje a Fernando Rodrigues, 44 anos e 20 no jornal, a condição de um dos jornalistas políticos mais lidos no país. Mestre em Jornalismo pela City University (Londres) e quatro prêmios Esso no currículo, está também entre os mais empenhados em ajudar a população a conhecer melhor os representantes que elege. Frutos desse esforço são o livro Políticos do Brasil (Publifolha, 2006) e o site www.politicosdobrasil.com.br, que reúne os dados informados pelos candidatos a cargos eletivos no país à Justiça eleitoral.
Habituado a acompanhar os políticos de perto, em Brasília, Fernando Rodrigues ficará longe deles nos próximos 12 meses. Tirou licença para estudar na Universidade de Harvard, num programa patrocinado por uma fundação privada norte-americana (Fundação Nieman). Antes de embarcar, concordou em conversar com o Congresso em Foco sobre essas coisas que tanto nos mobilizam e inquietam: Congresso, governos, imprensa…
Alvos freqüentes de seus questionamentos, Fernando Henrique e Lula foram brindados com um reconhecimento. Os dois deram, para o jornalista, uma contribuição fundamental à consolidação da democracia no país. Na contramão do senso comum, também reservou palavras suaves para o sempre criticado Parlamento nacional. Na sua opinião, o Congresso tem melhorado a cada legislatura. “Estamos num processo de depuração do Congresso”, acredita.
Esboçou ainda uma autocrítica ao analisar o governo Lula e seus desacertos: “Eu acho que havia um despreparo de todos nós, do Brasil inteiro. Somos despreparados para muita coisa. Porque nós chegamos tarde ao baile da democracia”. Causa-lhe irritação, contudo, a crítica genérica de golpismo e manipulação desferida por alguns petistas contra a grande mídia: “São uns débeis mentais que falam isso. Eles encarnam o Ubaldo, o paranóico, personagem do Henfil. Aliás, sem prejuízo para os débeis mentais, porque também não quero passar por politicamente incorreto. Estou falando do ponto de vista político. Débeis mentais políticos”.
Fernando Rodrigues contesta os que vêem em uma radical reforma política a solução para males nacionais como a corrupção e falta de legitimidade dos representantes eleitos. No seu entender, o Brasil precisa do contrário disso, de estabilidade de regras. “Estamos consolidando a democracia, que está o tempo todo em risco, porque alguns cabeças-de-toucinho no Congresso e em outros lugares ficam achando que tem que fazer uma reforma política para mudar tudo porque tudo é muito ruim. Eu não acho que esse sistema político atual necessariamente seja muito ruim”, diz.
Como você acha que vai estar o país quando você voltar dos EUA?
Infelizmente, talvez esteja igual. As coisas são muito lentas. Mas é assim na democracia. O processo democrático tem muitas qualidades e um grande defeito. O grande defeito é o ritmo pausado com que o progresso e as coisas vão ocorrendo na direção correta. Há quase inexistência de atalhos no processo democrático. Eu gosto muito de falar em termos comparativos. A democracia no Brasil é uma criança, muito jovem. Há quantos anos o Brasil, achado em 1500 pelo Pedro Álvares Cabral, tem democracia moderna? A rigor, de maneira bem estrita mesmo, com regras mais ou menos estáveis, é de 1994 para cá. Porque teve a ditadura militar. Antes da ditadura, vamos combinar, o país era outro, rural, não dá nem para comparar, era outro mundo. A ditadura acaba e a gente tem cinco anos de Sarney [1985-1989], que foi o presidente do PDS, que era o partido da ditadura. Acabou o Sarney, a gente teve um ambiente marcado por muita coisa. Terminou o governo Collor [1990-1992], veio o governo Itamar [Franco, 1992-1994] e só daí a gente passou a ter uma democracia mais ou menos regular no Brasil, com eleições regulares e com regras mais ou menos fixas, que é um valor inestimável. São poucos os países no mundo que têm isso. Tem alguns exemplos mais notórios: Estados Unidos, Japão, Inglaterra… Mas a maioria dos países muda a regra toda hora. O Tocqueville, naquele livro Da Democracia na América, criticava no início da democracia americana a mudança de regra constante que os EUA faziam. Quando eles decidiram parar de mudar as regras, eles engrenaram. E não existe sistema mais defeituoso de democracia no mundo que o americano. Tem mil defeitos. Eles não têm eleição direta para presidente, o sistema é distrital puro para eleição de deputados, tem praticamente guerra campal na definição dos candidatos, mandato curto, eleições que não são concomitantes… Qual é a maior beleza do modelo americano, a maior virtude? É que eles persistiram num modelo, a população aprendeu qual é o modelo e, daí, nesse modelo com as regras dadas, passaram a jogar muito bem.
Você pode discordar do que fazem os EUA no Iraque, onde quer que seja. Mas tem que concordar que eles construíram, com esse modelo, o país mais rico do mundo. Você pode falar: “Puxa, mas não era assim que eu gostaria que o Brasil fosse, porque eles são autoritários, imperialistas”. Essa é uma crítica. Há 200 anos, o Brasil e os EUA eram a mesma coisa, dois países marginais. O fato é que, com as regras fixas que eles fizeram para a democracia deles, as quais se auto-impuseram, com a persistência que tiveram, fizeram o país mais rico do mundo. Então, algum valor deve ter. Você vai criticar a intervenção no Iraque. Isso é outra coisa. Estou falando do que produziu em termos de riqueza para uma população gigantesca como a americana. Esse tipo de valor eu acho importante estar se consolidando no Brasil.
Esta é a melhor coisa no Brasil no momento: estamos consolidando a democracia. Que está o tempo todo em risco, porque alguns cabeças-de-toucinho no Congresso e em outros lugares ficam achando que tem que fazer uma reforma política para mudar tudo porque tudo é muito ruim. Eu não acho que esse sistema político atual necessariamente seja muito ruim, que ele seja o produtor da corrupção, de todos os nossos problemas éticos e morais. O problema é outro. Porque isso eu acho que é a parte boa do Brasil. E a parte ruim, a falta de saúde, de educação, transporte público de qualidade, a infra-estrutura dos direitos básicos do cidadão que o Estado, em todos os seus níveis, não consegue prover. O dia em que o Estado conseguir prover esses direitos de maneira mais completa de integral, disso vão derivar melhores padrões de ética e moral, somados ao desejo dos governantes de disseminarem bons valores na sociedade.
Essa sua crítica à reforma política é porque acredita que as pessoas tendem a votar melhor a cada ano?
Exato. Não tem aforismo mais sem razão do ponto de vista científico que aquela frase: “Todo Congresso é sempre pior que o anterior”. Está absolutamente errado. Não guarda relação nenhuma com verdades históricas e quem fala isso fala porque é uma frase engraçada. A gente gosta de rir de si mesmo, uma qualidade do brasileiro. Isso é legal, porque bom humor é um sinal de inteligência. Mas eu acho que todo Congresso eleito é sempre, na média, igual ou até melhor ao anterior. O que acontecia antigamente, porque a gente não conhecia o que se passava, é que ão tínhamos instrumentos de aferição das falcatruas, das mazelas que aconteciam no meio político. Eu não tenho como provar isso cientificamente, mas tenho uma impressão muito forte de que é isso exatamente que ocorre. Acho que os Congressos durante a ditadura no Brasil foram frágeis, frouxos. Acho que o Ulysses Guimarães, que hoje é idolatrado, tinha imensos defeitos. Era uma pessoa que pensava muito em si próprio. Era muito egoísta. Eu cobri a campanha de 1989. Ele poderia ter ajudado o Brasil a ter um desfecho diferente, evitando o governo Collor. Foi proposto a ele apoiar algum outro candidato em determinado momento da campanha, porque ele não tinha mais do que 3% ou 4%. Ele se recusou. Enfim, essas figuras que são idolatradas hoje não eram, na realidade, os pais fundadores da pátria que eu gostaria que o Brasil tivesse. Eles não foram tudo isso.
Mesmo no início da democracia, na passagem da ditadura para a democracia, o Congresso que conviveu com o presidente José Sarney [hoje senador pelo PMDB-AP] foi o que deu cinco anos de mandato para o Sarney, quando deveria ter dado quatro. Foi o Congresso que produziu uma Constituição que, se é maravilhosa na definição de direitos para a população, é um lixo do ponto de vista da modernidade, porque é confusa, é longa e extensa demais. Foi um Congresso que permitiu que o governo Sarney distribuísse cerca de 600 emissoras de rádios e TV na base da fisiologia. Foi um processo fisiológico, brutal, que levou a tudo aquilo que a gente conhece. Então, não acho que aquele Congresso seja melhor do que o atual. Acho que ele era muito pior do que o atual. E foi pior do que os outros que o foram sucedendo. No início dos anos 90, tivemos uma grande CPI que culminou na maior cassação em série de deputados, que foi a do Orçamento. Nunca havia acontecido isso antes no Brasil. Depois outras CPIs acabaram acontecendo e estamos num processo de depuração do Congresso. O Congresso está ficando, não existe essa expressão, mas é assim que eu vejo, menos pior. E isso eu acho bom.
Qual a principal diferença entre os governos Lula e FHC?
Acho que os dois presidentes eleitos pelo voto direto que o Brasil teve depois da ditadura militar mais importantes foram Fernando Henrique e Lula. São complementares. São políticos de formação diferente. Fernando Henrique teve educação formal, padrão europeu ocidental. Lula não teve, mas é talvez o maior líder sindical e político da história recente do país, com uma comunicação inigualável. Fernando Henrique fala pra outro público. Mas ambos conseguiram, cada um do seu jeito, produzir um modelo que deu ao país a possibilidade de ter alguma estabilidade no campo da democracia formal. Isso é muito importante. São complementares. Um não existiria sem o outro.
Setores do PT dizem que a mídia é golpista e burguesa. Qual sua opinião?
São uns débeis mentais que falam isso. Todo partido tem gente despreparada. No PSDB, no PT, no PFL, que agora chama Democratas, na mais desastrada operação de marketing da história recente do país, quando um partido quer mudar de nome, que foi essa de mudar para Democratas. É igual alguém que é amarelo querer ser chamado de vermeho. Uma coisa assim inacreditável! Então, todos os partidos têm essa gente ignorante, com mania de perseguição. Eles encarnam o Ubaldo, o paranóico, personagem do Henfil. Eles são só isso mesmo: pessoas paranóicas que estão despregadas da realidade. E não têm muita noção clara do que seja mídia livre e, sobretudo, do valor da liberdade de imprensa, da liberdade de expressão. Claro que não estou estendendo minha crítica a todos os petistas, mas só a alguns deles que são débeis mentais, e em todos os partidos há alguns débeis mentais. Aliás, sem prejuízo para os débeis mentais, porque também não quero passar por politicamente incorreto. Estou falando do ponto de vista político. Débeis mentais políticos.
Mas Fernando Henrique não foi poupado pela mídia nos escândalos anteriores?
Vou dizer por mim. Sou um jornalista que está na estrada faz tempo. No governo Fernando Henrique, fiz uma série de reportagens críticas no meu jornal. O meu jornal sempre teve abertura total para fazer a boa reportagem, praticar o bom jornalismo. Durante aquele governo, houve duas reportagens que vocês estão vendo penduradas na parede, que acho que foram muito incômodas para o Fernando Henrique e saíram na Folha. Uma sobre a compra de votos na emenda que permitiu a reeleição e outra, a transcrição completa das fitas do BNDES. Isso porque as fitas do BNDES foram divulgadas de maneira incompleta, numa primeira versão, de maneira a proteger a figura do presidente da República. Eu fico pensando: as pessoas me acusam de tucano. [Pega uma cópia da capa do jornal com a reportagem, de 1997]. Mas o que aconteceria se eu publicasse uma reportagem dessas sobre o Lula? É o presidente da República conversando com o presidente do BNDES, o Lara Resende, perguntando: “Se precisarmos de uma certa pressão para forçar a Previ?". FHC responde: "Não tenha dúvida”. Quer dizer: mais crítico do que isso, com esse destaque? Acho difícil existir mais crítica do que a crítica correta, ouvindo todos os lados que eu e o meu jornal produzimos no período do governo Fernando Henrique. Eu acho que tem que ser assim com qualquer governo. Agora, o governo é presidido por Luiz Inácio Lula da Silva. Então, chegou a hora de a gente fazer reportagens sobre o governo Luiz Inácio Lula da Silva.
Mas, no caso da compra de votos para aprovar a emenda da reeleição, a mídia repercutiu a reportagem de maneira ligeira e o assunto rapidamente saiu do noticiário, ao passo que os escândalos da era Lula tiveram cobertura intensa da imprensa toda. Não há uma diferença de tratamento?
Não quero ser o ombusdman da mídia brasileira. Tem muita gente que já assumiu esse papel. Estou com uma senha aqui, talvez um dia chegue a minha vez. Então, não vou eu criticar a mídia. Acho que isso que você falou acontece em termos. A memória da gente vai passando. A reportagem é de 13 de maio de 1997. Já passa de 10 anos. Naquele momento, o caso foi tratado de outra forma pelo presidente Fernando Henrique, diversamente de como o presidente Lula tratou outros escândalos no qual esteve envolvido. Eu explico. O caso durou com repercussão na mídia cerca de 45 dias. As transcrições e a voz nas fitas em que deputados confessavam ter vendido votos por R$ 200 mil para mudar a Constituição brasileira apareceu no Jornal Nacional e outros telejornais. Mas o que fez o presidente Fernando Henrique? Rapidamente, entregou ao PMDB, que na época já era do governo, o Ministério da Justiça, do qual tirou Nelson Jobim para colocar no Supremo Tribunal Federal, e indicou um jurista mundialmente conhecido chamado Íris Rezende [ex-senador pelo PMDB-GO e atual prefeito de Goiânia], conhecido por sua capacidade jurídica no mundo todo. O Ministério dos Transportes foi entregue a outro especialista na área de transportes, imediatamente após o escândalo, chamado deputado Eliseu Padilha [PMDB-RS]. O PMDB tomou o governo Fernando Henrique de assalto naquele momento. Uma frase do deputado Delfim Netto à época do escândalo define bem o que aconteceu sobre os deputados que receberam R$ 200 mil: “Nunca vi ganhar um boi para entrar e uma boiada para sair”. Então, a concessão de favores políticos, chame isso de fisiologia ou do que bem entender, no governo Fernando Henrique, foi brutal. Foi um caminho que ele escolheu. Em 60 dias, 90 dias, o caso estava completamente abafado. Não houve CPI. Deputados retiraram os nomes das listas das CPIs. Não houve investigação. Não houve nenhuma punição. Os deputados renunciaram ao mandato, imediatamente após o escândalo, numa confissão pública e universal de crime. Porém, não houve CPI, não houve punição. O PMDB tomou conta do governo. Escândalo do mensalão: houve CPI. O presidente Lula estava em viagem para a Coréia e Japão. Eu tinha sido designado para cobrir a viagem dele ao Japão. Lembro-me que havia aquela coleta de assinaturas para a CPI, mas o governo não conseguiu, ou não quis, ou foi incompetente. O fato é que o governo não conseguiu usar os mesmos métodos, que eu acredito que desejava usar, para conter a CPI dos Correios e outras que vieram no encalço. E quando tem uma CPI, a repercussão fica mais perene. Porque a CPI já dura logo três, quatro meses. Então, essa é que foi a diferença básica.
Faltou ao governo Lula habilidade ou ele não tentou cooptar pela via do fisiologismo?
Acho que ele tentou. Os operadores do governo Lula tentaram fazer. Se eles tivessem obtido êxito na distribuição de cargos, para impedir a realização de todas aquelas CPIs, quanto tempo teria durado o escândalo? Por exemplo: o publicitário Duda Mendonça teria ido à CPI em agosto de 2005 dizer que recebeu cerca de R$ 10 milhões numa conta fora do país de maneira ilegal ou irregular, como queiram? Não teria tido CPI e ele não teria ido falar. Essa história da imprensa agora repercutir mais ou menos depende. Tem muitos fatores. É igual a acidente de avião. Não dá para dizer que foi uma causa só, há sempre várias.
Mas certos integrantes do PSDB não correspondem à figura de político ideal na cabeça de muitos donos dos meios de comunicação?
Como assim?
Não há uma afinidade entre eles, os donos de veículos, e também diretores de redação e muitos colunistas com uma figura como a do governador José Serra que vai além do campo ideológico ou dos interesses políticos e econômicos e chega até ao campo pessoal?
É uma hipótese possível, mas eu tenho dúvidas em relação a ela. Do que foi acusada a Folha e outros jornais mais abertos e liberais nos anos 80? Era acusada de ser petista. Isso é público e notório. As redações dos jornais da grande mídia nos anos 80 e grande parte dos anos 90 sempre foram acusadas de serem majoritariamente simpáticas ao PT. Não tenho dado científico para afirmar isso. Acho que a relação da mídia com o PT desde a sua criação, em 1980, sempre foi muito amistosa até a chegada do partido ao governo. E talvez o efeito de comparação é que prejudique a nossa análise nos dias de hoje. Um partido que sempre se deu tão bem com a mídia, que passou 20 anos tentando chegar ao poder, quando chega ao poder, começa a ser investigado pela mídia. As pessoas têm um estranhamento. “Pô, mas comigo? Você não me conhece desde 1980? Por que eu?”. Então, você agora é governo. É diferente. Isso daí leva alguns petistas ingênuos e desinformados a acharem que a mídia os persegue. Mas, coitados, eles são pessoas que não conseguem entender o que está se passando. Talvez entendam depois que eles saírem do governo, porque eles vão sair algum dia, não sei como… Mas a maior característica de uma democracia é a alternância no poder. Não é se é o voto distrital ou o voto proporcional. Se houver alternância de poder, algum dia, quando um desses petistas deixar o governo, vai olhar para trás e verá como a mídia vai tratar PFL, PDT, Democratas, PSDB… Tanto é que hoje, eu, que já escrevi tanta coisa sobre o PSDB, às vezes cruzo com pessoas que foram ministros do Fernando Henrique e, entre aspas, praticamente me odiavam naquela época. Agora, vêm me dizer assim: “Puxa vida, vocês estão indo bem agora. Agora que eu estou vendo como é que é”. Porque é assim que é a vida, o jornalismo.
Será que havia um despreparo do PT para lidar com essa situação?
Eu acho que havia um despreparo de todos nós, do Brasil inteiro. Somos despreparados para muita coisa. Porque nós chegamos tarde ao baile da democracia. A gente chegou no baile, já estava tocando "Máscara negra", todo mundo já indo meio embora. Então a gente correu: “Puxa, o que tocou antes? Será que eu tomo uma cuba libre?” Não, não é um bom exemplo. Não se toma mais cuba libre. O fato é que a gente chegou tarde nesse negócio. Então, a gente tem mil deficiências – inclusive, a mídia, os partidos, os políticos, toda a sociedade – de conviver com esse ambiente de democracia plena. A gente está aprendendo. Acho que o PT era despreparado, o PSDB era despreparado. A forma como os peessedebistas reagiam era forte também. Não pense você que, fazendo a cobertura boa que eu acho que a Folha fez durante o governo Fernando Henrique, crítica, apartidária e correta, que era fácil, que não havia pressões, que não ligavam para reclamar. Era difícil. Eles também tinham a pele fina.
Você fala que o governo Fernando Henrique tinha outra diferença do Lula: conseguia abafar os escândalos com manobras no Congresso…
Mas eu não estou dizendo que isso é bom ou ruim. Não tome isso como juízo de valor. Eu estou descrevendo o que se passou. Não estou dizendo que um governo era melhor e outro, pior. Um conseguiu, outro não.
Você citou exemplos, mas dá para dizer que o governo Lula não teve essa capacidade de articulação e, por isso, não abafou os escândalos?
Não. O governo Lula conseguiu evitar CPIs também, não todas. Talvez, a taxa de abafa tenha sido menor. Não quero que seja confundido com o seguinte: o governo Lula é tão bom que não abafa CPIs. Não é isso. O governo Lula quer abafar CPIs também. Se pudesse, abafaria todas. É que as circunstâncias não permitiram. Talvez se fosse o Fernando Henrique hoje, ele não conseguiria abafar, porque a população vai melhorando seus padrões de exigência dos políticos. Quem sabe se o escândalo de 1997 ocorresse em 2007, com o mesmo presidente Fernando Henrique e ministros, para ele fosse difícil abafar. É uma hipótese. Você não pode comparar dois períodos diferentes da história do país como idênticos. Talvez hoje fosse mais difícil para um governo tucano conter a instalação de CPIs. O denominador comum final é que foram governos complementares, muito parecidos, que têm práticas semelhantes em relação a quase tudo, na política e na economia. Tanto é que o Lula hoje tem a maior aliança do Ocidente, como diria o Francelino Pereira [ex-presidente da Arena, ex-senador e ex-governador de MG]. O número de partidos que estão na coalizão governista hoje é muito maior do que o Fernando Henrique chegou a ter em determinado momento.
Lula vai conseguir aumentar essa taxa de abafa? Melhorar sua relação com os congressistas e obter mais vitórias políticas?
Na fisiologia? Acho que ele tem aperfeiçoado a capacidade de operar na área fisiológica, que vem sendo uma prática comum a todos os governos no Brasil há décadas. Não é uma crítica ao Lula. Isso faz tão parte da política como a seca no mês de agosto em Brasília.
Gerencialmente, o governo Lula é melhor ou pior que o FHC?
Acho que eles se equivalem. Eu sinto que, no governo Lula, há menos desejo de buscar determinadas saídas mais sofisticadas do ponto de vista gerencial. Isso é bom ou ruim? Depende. O Fernando Henrique buscou alguns modelos de organização do Estado realmente inovadores para o Brasil: as agências reguladoras e a privatização de determinadas áreas como a telefonia tiveram aspectos positivos. Porém, algumas agências reguladoras passaram a ser meras extensões das empresas que elas deveriam regular. Isso é ruim. Vão dizer: “Ah, é porque nomearam pessoas ruins para dirigi-las”. É verdade também. As agências reguladoras vão demorar algumas décadas para amadurecerem. Você cria uma agência reguladora hoje, são nomeados os melhores quadros do Brasil para aquela agência, imediatamente ela passa a funcionar como se fosse um relógio suíço? Isso não existe. Nem numa empresa privada muito eficiente. Você cria um organismo novo na empresa privada e isso vai ficar cheio de arestas em relação ao que tinha antes. Até ele se encaixar perfeitamente na engrenagem, naquele motor grande que existe em torno dele, demora. Mas aí eu acho que tem que valer a mesma regra que existe na democracia. Tem que persistir, perseverar, nomear pessoas mais qualificadas. Veja o caso da Anac. Na minha opinião, há alguns desqualificados ali, que não deveriam ser da Anac. Mas quem indicou? Quem criou a Anac? Foi o Lula. Quem nomeou as pessoas foi o Lula. Então, várias pessoas do governo estão reclamando da Anac, dizendo que tem que demitir pessoas. Mas foram eles que indicaram! E eles sabiam as regras. Eles que comandaram a base aliada no Congresso para aprovar a lei da Anac em setembro de 2005. Fizeram a lei da Anac. Eles, com a base aliada do Palácio do Planalto. Eles mandaram as mensagens com os nomes para o Senado aprovar. O Senado aprovou e agora eles reclamam de si próprios. É surreal, é quase kafkiano.
Tem aquela coisa da maldição do segundo mandato, pela qual quem faz um primeiro mandato bom ou razoável tende a se sair mal no segundo. Você acha que o Lula vai enfrentar essa maldição?
Acho que essa história da maldição do segundo mandato é uma lenda urbana.Você só pode fazer uma previsão se há um histórico para comparar. A gente só tem um exemplo, o do Fernando Henrique, cujo segundo mandato foi muito ruim. Os anteriores são tão antigos… Você pode comparar com o caso americano. O Reagan fez um excelente segundo mandato. Uma pessoa absolutamente improvável fez um excelente governo, na minha opinião, o país cresceu muito, fez um excelente segundo mandato e elegeu o vice dele, o George Bush sênior, o pai. Bush fez um governo bom, mas incapaz do ponto de vista de marketing, errou um monte de coisa e deu a vitória pros democratas. Bill Clinton fez um segundo governo bom apesar dos percalços na área moral. Do ponto de vista econômico, fez um bom governo, só que ele não conseguiu fazer um sucessor. Você vê que há exemplos dos dois lados…
… e George W. Bush, o filho, está fazendo um péssimo segundo mandato.
Pois é. Você tem exemplos dos dois lados. O Reagan fez um excelente segundo governo e fez o sucessor. O Clinton, para a população americana, tinha boa aprovação. Ele fez um excelente segundo governo e não fez o sucessor. No Brasil, o Fernando Henrique fez um péssimo segundo governo, cheio de percalços, também do ponto de vista externo, mas fez. Os tucanos reclamam muito do Lula: “Porque o Lula teve sorte”. Mas sorte também é um atributo da política. Uns têm, outros não. Fernando Henrique fez um segundo mandato ruim, não fez o sucessor. Lula, até o momento, do ponto de vista econômico, está fazendo um segundo governo melhor do que o primeiro. São dados concretos, números que demonstram isso. Os dados econômicos são muito importantes. Há um vaso comunicante em linha direta da economia com a política. A parte do corpo humano que mais dói no eleitor é o bolso. Lula está fazendo por enquanto um governo, do ponto de vista econômico, bom. Ele poderia ter um problema da ordem ética ou moral, para padrões brasileiros, como teve o Bill Clinton, no segundo mandato e, daí, arruinar sua capacidade de fazer um sucessor? Pode. Ele já teve? Tenho a impressão que não. O apagão aéreo, no meu caso, é terrível. Para nós, jornalistas, que viajamos, para a classe média… Mas esse apagão aéreo atinge uma parcela muito pequena da sociedade de maneira direta. Talvez atinja uma parcela grande indiretamente, mas aí as pessoas não sentem. Diferentemente do apagão elétrico do Fernando Henrique, que atingiu 100% da população. Então, sobre essa maldição do segundo mandato, a gente vai ter que esperar para chegar no final do mandato.
Para onde você está indo?
Eu me inscrevi e fui aceito numa seleção da Fundação Nieman, fundação de 60 anos de idade tipicamente americana. Uma família benemérita que, em 1937, doou uma fortuna para criar essa fundação dentro de Harvard, que fica em Cambridge, uma cidadezinha colada a Boston, no Massassuchets. O objetivo é receber 15 jornalistas estrangeiros em meio de carreira, com suas famílias, para passar um ano em Harvard estudando o que bem entenderem, não necessariamente jornalismo. Como fui aceito, estou indo com a família inteira. É um ano escolar, cerca de 11 meses.
Vai estudar o quê?
Olha, são quatro áreas de interesse principal. A primeira, mais óbvia, é na área política, teoria, sistemas políticos, eleitorais, partidários, que é uma área com que acabei me identificando na última década. Quero ver um pouco mais sobre isso, estudar muito sobre isso. Escrevi um livro no ano passado com um capítulo sobre isso [Políticos do Brasil]. Então, me interessa bastante e gostaria de aprender mais, sobretudo sobre a incapacidade crônica dos partidos do mundo inteiro de representarem os eleitores. É uma crise. Um divórcio entre a representação partidária e os eleitores. Isso é ruim para a democracia. É uma crítica que não existe só no Brasil. As novas formas de tecnologia de comunicação têm abreviado o contato entre o poder e o eleitor. Inclusive teve o primeiro debate preparatório para as eleições presidenciais nos EUA e as perguntas foram feitas pela internet. Os eleitores postaram as perguntas no You Tube. Um debate da CNN. Eu quero estudar muito, muito, o direito de acesso a informações públicas. Na Abraji, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, a gente montou um fórum com 18 entidades da sociedade civil – OAB, juízes, Transparência – para pressionar todos os órgãos do poder no país inteiro a terem mais transparência. Por isso, gostaria de estudar isso e como esse tipo de instrumento ajuda o país a ficar mais desenvolvido e mais consolidado no modelo democrático. Outra coisa que me interessa muito são novas formas de uso da plataforma mais moderna do mundo de comunicação, que é a internet, internet 2.0 e todas essas discussões sobre interação e convergência de meios. E, para completar, quase um hobby, um interesse pessoal, quero estudar literatura, literatura inglesa, ler muito, que é uma oportunidade que esse programa permite. Vai ser um ano bom, hein?
Se você chegou até aqui, uma pergunta: qual o único veículo brasileiro voltado exclusivamente para a cobertura do Parlamento? O primeiro a revelar quais eram os parlamentares acusados criminalmente, tema que jamais deixou de monitorar? Que nunca renunciou ao compromisso de defender a democracia? Sim, é o Congresso em Foco. Estamos há 20 anos de olho no poder, aqui em Brasília. Reconhecido por oito leões em Cannes (França) e por vários outros prêmios, nosso jornalismo é único, original e independente. Precisamos do seu apoio para prosseguir nessa missão. Mantenha o Congresso em Foco na frente!
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