“Técnico, quando perde, é uma besta. Quando ganha, é bestial”, já dizia Oto Glória, que foi técnico de vários clubes brasileiros e portugueses entre as décadas de 1950 e 1980. Foi ele que levou Portugal ao terceiro lugar da Copa do Mundo de 1966, depois de derrotar até mesmo o Brasil, bicampeão mundial quatro anos antes. Em nosso contexto atual, essa frase bem-humorada contém uma lição que serve tanto para o nosso técnico, Felipão, como para os brasileiros de modo geral. Afinal, assim como de médico e louco, de técnico de futebol todo mundo tem um pouco.
A máxima de Oto Glória me ocorreu logo depois dos 7 a 1 que o Brasil sofreu da Alemanha, responsáveis pela interrupção de nossa caminhada rumo ao sonhado hexacampeonato mundial, numa partida que entra para a história como a pior derrota do futebol brasileiro de todos os tempos. É o que seguidamente lembram os meios de comunicação, numa autoflagelação do orgulho nacional que começou ainda durante a partida, quando o placar já era de 5 a 0 para os alemães antes mesmo dos 30 minutos do primeiro tempo.
Tivesse o Brasil vencido por 7 a 1 e não o contrário, como ocorreu, Felipão seria hoje o mais bestial técnico de futebol do mundo, segundo a filosofia de Oto Glória. Mas perdeu e, por isso, Scolari não passa, agora, de uma besta, na opinião de dez entre dez jornalistas esportivos brasileiros. Agora todos concordam com isso, até mesmo aqueles que, antes do fatídico jogo, defendiam que a seleção brasileira adotasse postura ofensiva contra a alemã, alegando que o passado do futebol pentacampeão do mundo não admitia que o técnico armasse uma retranca para segurar os alemães. Tanto é que a escalação de Bernard para a vaga do craque Neymar, fora do jogo por ter sofrido uma contusão, foi aplaudida pelos mesmos jornalistas que, depois da catástrofe, passaram a cair de pau no técnico brasileiro, omitindo a própria opinião.
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Antes do jogo de Belo Horizonte, eu havia decidido escrever sobre outro tema, igualmente inspirado pela Copa do Mundo e que caía como uma luva para os candidatos a concurso público: o medo da vitória, que acaba levando à derrota. Também vou falar um pouco sobre isso, pois acho importante a associação entre o esporte – no caso, o futebol – e a disputa por um cargo no serviço público.
Concurso público pode ser facilmente comparado a uma copa do mundo intelectual. O tempo de duração da prova de conhecimentos gerais e específicos, por exemplo, é de pelo menos o dobro do tempo de bola rolando no gramado entre duas seleções que se enfrentam num Mundial. Há outras semelhanças entre as duas disputas: a quantidade e qualidade dos conhecimentos que o concurseiro precisa acumular, o treinamento intensivo a que se submete e o esforço físico que faz durante a preparação e no dia da prova, tudo é comparável ao que enfrenta um jogador profissional de futebol.
Os dois contextos se assemelham tanto que o esportista e o concurseiro têm até um adversário em comum: o medo da vitória. Vimos na Copa várias situações que ilustram isso, sobretudo nos confrontos entre grandes equipes e seleções mais fracas. Por exemplo, na partida entre Brasil e Chile, os chilenos acabaram eliminados nos pênaltis, mesmo tendo jogado melhor, porque ficaram com medo de atacar o Brasil e acabaram se conformando com o empate no tempo regulamentar. Já a Costa Rica foi corajosa, empatou com a Holanda num jogo heróico, mas, na hora dos pênaltis, dois de seus jogadores tremeram e erraram as cobranças. O medo também foi responsável pela eliminação do México, de Gana e da Argélia, em partidas marcantes que essas seleções só perderam por não terem tido coragem de vencer.
PublicidadeUm concurseiro pode ser derrotado pelo mesmo mal. O inimigo dá as caras quando o concurseiro faz tudo direito, até o momento em que começa a prova do concurso. Durante meses ou até anos, o candidato a uma vaga no serviço público se preparou para aquele momento. Enfrentou o curso preparatório, respondeu milhares de questões de testes, participou de simulados, estudou em casa e nas horas vagas do trabalho, participou de grupos de estudos, varou noites sobre apostilas e livros, e até se afastou da família para ter mais tempo de estudo. Enfim, estava bem preparado e sua aprovação era quase certa. Pelo menos, era o que ele pensava. No entanto, na hora agá, não consegue colocar na folha de respostas quase nada do que sabe. Torna-se mais uma vítima do famoso “branco”, apavora-se com questões que já havia resolvido nos testes com um pé nas costas, treme, sua, não se lembra de quase nada do conteúdo que tanto estudou. Na hora da redação, não consegue formular nenhuma ideia. E, então, o medo da vitória, que parecia certa, se transforma na realidade de uma derrota catastrófica. Por fim, a nota no concurso fica abaixo do mínimo necessário à classificação.
O medo é um fator que todo candidato tem de saber superar. É preciso ir para a prova com uma boa, mas nunca excessiva dose de autoconfiança. O pânico é o pior inimigo que se pode encontrar nesse momento. É como chutar um pênalti para fora na decisão pela vaga na final do campeonato. Um erro que pode custar a classificação, nos dois casos. Uma falha que não tem perdão. Superar esse momento difícil depende de uma grande força interior, em que a consciência da própria capacidade de realizar o que se propôs é fundamental. Se o candidato tiver esse domínio, tudo vai dar certo, e ele acabará marcando o gol mais importante da sua carreira.
Agora, quero voltar ao assunto do início do artigo: a derrota da seleção brasileira de 7 a 1 para a Alemanha. Hoje, Luís Felipe Scolari está sendo tratado como o grande vilão daquela partida. Mas poderia ter sido o herói, assim como foi o técnico da Holanda, Louis Van Gal, que trocou o goleiro titular antes da decisão por pênaltis com a Costa Rica e se deu bem, porque este defendeu duas cobranças e classificou o time para as semifinais. Episódios como esses encerram diversas lições, mas uma delas é que o Brasil não estava preparado para perder mais uma Copa em casa, como aconteceu em 1950.
Assim como 64 anos atrás, a Copa de 2014 foi organizada para que os brasileiros comemorassem a conquista do Mundial no Maracanã. Em 1950, ficou famosa a frase do prefeito do Rio de Janeiro, general Mendes de Morais, aos jogadores: “Eu lhes dei esse belo estádio. Agora vocês têm o dever de dar o título ao nosso povo”. Em 2014, faltou alguém do governo verbalizar esse pensamento, depois dos bilhões de reais gastos para promover a Copa. Além disso, faltou combinar com a seleção alemã.
A meu ver, o mal que causou a derrota brasileira nesta Copa é um defeito que aflora a cada mundial: o otimismo desvairado que assola o país e acaba desaguando na seleção, como aconteceu nos jogos contra os uruguaios, em 1950, e contra os alemães, em 2014. Durante mais de um mês, os brasileiros foram submetidos a verdadeira lavagem cerebral pela excessiva publicidade do governo e das empresas privadas para demonstrar que sempre fomos e continuaremos sendo os melhores do mundo no futebol. Antes mesmo de começar a Copa, nosso técnico já dizia que a seleção tinha a obrigação de vencê-la em casa. “Já estamos com a mão na taça”, dizia ele. A cada partida, mesmo não jogando bem, Scolari reforçava essa teoria. Até sofrer o primeiro gol da Alemanha. A partir daí, não saberia mais o que dizer nem que explicação técnica dar para a goleada, a não ser um suposto“apagão” de todo o time, depois do primeiro gol alemão, logo no início do jogo.
Esse mesmo mal pode trair os concurseiros. Num concurso público, é preciso evitar que a soberba domine o candidato bempreparado. Ele precisa entender que enfrentará concorrentes tão capazes quanto si próprio. Além disso, terá de encarar um outro adversário, muito mais perigoso: a banca examinadora. Ciente e consciente disso tudo, esse candidato fará uma boa prova e, então, não poderá ser considerado uma besta, como o técnico derrotado no futebol, mas um bestial vencedor dessa decisão e futuro detentor de um feliz cargo novo!
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