Aqui compartilharei verbetes do livro BRASILIA-Z – Cidade-palavra, em que misturo impressões da minha vivência na capital, desde 1974, com a própria história da cidade. Muito mais que um simples roteiro sentimental da cidade que eu amo. Lugares, personagens, lendas e paisagens me são caras.
Boa leitura!
Alma “Brasília nunca terá alma”, escreveu Simone de Beauvoir, em 1960. E completou: “Estou em Brasília, a mais demente elucubração que o cérebro humano jamais concebeu, no caso, o de Juscelino Kubitschek, com quem estive na manhã de hoje. Notáveis arquitetos o seguiram, alguns deles conseguiram imaginar criações de primeira ordem, insólitas e harmoniosas, mas que loucura erguer uma cidade tão artificial no meio de um deserto! Atravessamos mais de mil km através de uma região mortalmente desértica para chegar a esse lugar. Mas vou deixar Brasília com o maior prazer – a cidade nunca terá alma, coração ou sangue”. A praga que Madame de Beauvoir rogou contra Brasília não vingou. Errou feio.
Alpiste Diz a lenda (e isso me parece ser uma lenda mesma, das boas) que alguns dias antes da inauguração de Brasília funcionários da NOVACAP semearam alpiste sobre o solo úmido da Esplanada dos Ministérios. E, ainda segundo a lenda, funcionou muito bem. Os fotógrafos e visitantes nem desconfiaram, pois parecia mesmo grama.
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Altiplano Antes do começo, / era o sertão só e ríspido. / Vegetais cheios de ódio fitando os céus impossíveis / e apontando a terra sáfara. / Dedos retorcidos de séculos. / Bênçãos dissimuladas sob a raiva. / Natureza virgem à espera da posse (…). (Anderson Braga Horta, no livro Altiplano e outros poemas, 1971).
Alvorada Por que Palácio da Alvorada, presidente? E JK, na bucha: “Porque Brasília é a alvorada de um novo Brasil”. Não é lenda: JK pediu, sim, a Oscar Niemeyer, um segundo projeto para o Palácio da Alvorada, insatisfeito com o desenho do primeiro, que ninguém nunca viu. A impressão que se tem de longe é a mesma que se tem de dentro: o palácio é pequeno, discreto, belíssimo. Gostoso mesmo é passar por lá a altas horas da noite, e ficar ali, sentado. Admirando. Já fiz isso várias vezes. Beleza que não cansa.
Amarelo Aposto como você pensou nas flores do ipê. Há também muito amarelo nas copas floridas dos guapuruvus, árvore de maior porte, mas de flores menores. Aquelas são flores de sibipirunas ou de cambuí? Deixem que nos confundam, porque a dúvida realça a cor. Sem esquecer o amarelo nutritivo dos frutos do pequi e do buriti, as maiores fontes de betacaroteno no cerrado. Brilho nas alturas, brilho no chão. No chão?! É ouro! É ouro! E o bandeirante atravessa o Distrito Federal. A Estrada Real do Sertão corta a cidade imaginária.
Ana dos Santos Veja que bela história de amor. Um escritor chega numa cidade estranha, sem falar a língua, vai a um órgão do governo e se apaixona pela mocinha que o atendeu. Isso aconteceu em Brasília com o norte-americano Alex Shoumatoff. Escrevia um livro sobre a capital e acabou casando-se com Ana dos Santos, funcionária da Funai. Precisava de uma autorização para visitar uma tribo na Amazônia para um freelance e assim encontrou seu grande amor. O nome do livro é The Capital of Hope – Brasília and its people, de 1980, sem tradução para o português. E, depois deste, nenhum outro foi publicado em inglês sobre a cidade. A primeira parte é bem previsível, fala da transferência da capital, dos candangos e tudo o mais. O livro começa a ficar realmente interessante quando Alex conhece a futura esposa e interage com sua família, que mora em Sobradinho e no Gama. Autor de vários livros, Alex Shoumatoff estudou em Harvard, trabalhou como jornalista no The Washington Post e escreveu para Rolling Stone, Village People e The New Yorker, entre outros. Alex foi viver com Ana nos Estados Unidos e tiveram um filho chamado Nicolas. A mãe de Ana, dona Iracy, disse ao Alex na despedida: “Você está levando a rosa mais bonita do meu jardim”.
Anahir Costa Ribeiro Existe uma foto do início de Brasília que é emblemática. Uma professora dá aula ao ar livre, à sombra de uma árvore do cerrado, com as crianças sentadas sobre caixotes. O nome dela não pode ser esquecido: Anahir Costa Ribeiro.
Arco do Triunfo Quando Brasília for demolida, daqui a centenas de anos, a única obra arquitetônica que será poupada é aquele monumento ao mau gosto na entrada do Pontão, no Lago Sul. Quem não viver não verá.
Aruc O mais autêntico reduto carnavalesco em Brasília. Formada, no início dos anos 1960, por funcionários públicos vindos do Rio de Janeiro, a Associação Recreativa Unidos do Cruzeiro é a única escola de samba brasileira que foi campeã oito vezes seguidas.
Asfalto Foi no dia 5 de agosto de 1958 – quando nasci – que colocaram a primeira capa de asfalto no Plano Piloto, entre o Palácio do Planalto e o Alvorada. Agora sei de onde vinha aquele forte cheiro de piche que flutuava sobre o meu berço.
Ausência Por que Cândido Portinari, um dos mais importantes artistas brasileiros do século XX, não está representado em Brasília com suas obras? Quem disse que não está presente? Presente na ausência.
Azeitonas Em tempos idos (tempos por mim não vividos), os pastéis da Rodoviária tinham entre seus ingredientes inocentes azeitonas. Inocentes até que suas sementes, duríssimas, chegassem às escadas rolantes, emperrando, dentes contra dentes, as engrenagens. Ninguém sobe aos céus, ninguém desce aos infernos. Não pelas escadas rolantes da Rodoviária. Expulsas do paraíso dos pastéis e das empadas, as azeitonas protestam. Querem voltar às bocas das massas, fazer parte do recheio que alimenta as classes populares.
Azul A luz combinou com o céu e o azul concordou que ali o guardassem. Azul tão azul que fere os olhos. A cor mais agradável te espera no Santuário Dom Bosco. Se queres paz, entre. Se não queres, siga em frente.
Azulejos e cubos A cidade que chegava pedia uma segunda pele, uma camada protetora. Era preciso, com urgência, humanizar a maquete. E aí entra em cena o maior artista plástico de Brasília com seus azulejos, cubos, esculturas, recortes, desenhos. Pioneiro, foi o único dos fundadores que aqui ficou até o fim, como que para defendê-la.
Athos Bulcão faleceu aos noventa anos, em 2008, e seu enterro foi simples. Simples como ele sempre foi. É de cubos brancos o painel mais visível e célebre (e o seu favorito), no Teatro Nacional Claudio Santoro. Contei. São 1.693 do lado sul e 1.698 do lado norte. Total de 3.391 cubos.
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