Temos no Brasil inúmeros e enormes desafios para tornar nossas cidades mais inclusivas, seguras, resilientes e sustentáveis e implementar conforme está estabelecido no ODS 11, que trata das cidades e assentamentos humanos sustentáveis. Isso não é novidade para muita gente. Déficits habitacionais, de saneamento, problemas de drenagem, tratamento de resíduos sólidos, pouco acesso a água potável, trânsito crescente, falta de áreas verdes, poluição sonora, visual e do ar. Tudo isso num ambiente de quase falência orçamentária de milhares de municípios brasileiros que se veem incapazes de prestar serviços essenciais básicos.
Enquanto isso a maioria dos deputados federais, todavia, deu demonstrações inequívocas de que não está nem um pouco (pre)ocupada em encontrar soluções, muito ao contrário.
A Câmara aprovou nu último dia 26 de agosto, há apenas dois meses da COP do Clima em Glasgow, sem nenhum debate público e sem considerar o alerta de centenas de especialistas, o PL 2.510 de 2019, do deputado Peninha Mendonça do MDB de Santa Catarina, que libera para as 5.570 Câmaras de Vereadores proporem anistia às ocupações ilegais em margens de rios, reservatórios de água e nascentes em áreas urbanas.
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Pior que isso, o texto, além de passar uma borracha em ocupações passadas e recentes, permite ainda que as faixas definidas de preservação de vegetação nativa no entorno dos rios, nascentes e reservatórios pelo Código Florestal para todo País sejam revistas, uma a uma, para cada rio, reservatório ou nascente, inclusive para novos desmatamentos e ocupações futuras.
A aprovação do PL 2.510/19 contraria frontalmente parecer assinado por mais de cem especialistas de renome nacional e internacional de diferentes áreas do conhecimento técnico e científico*. Portanto, aprovaram não foi por falta de alerta.
Há sim aperfeiçoamentos possíveis e necessários na legislação ambiental para áreas urbanas sobretudo considerando-se os mecanismos previstos no Estatuto das Cidades, como o zoneamento ambiental, por exemplo. Ou ainda no caso da Lei da Mata Atlântica, os Planos Municipais da Mata Atlântica que vem sendo articulados com planos municipais de enfrentamento e adaptação às Mudanças Climáticas, que podem ser aplicados para todos os biomas. Mas a abertura para que cada município defina, de forma independente e sem diretrizes regionais básicas, seus parâmetros para áreas de preservação permanente hídricas é difícil de sustentar com base em argumentos técnicos ou mesmo jurídicos. Não se trata de um assunto de interesse preponderantemente local, como bem lembra a Consultora Sênior de Política Pública do Observatório do Clima, e ex-presidente do Ibama, a advogada e urbanista Suely Araújo.
PublicidadeRios que cruzam inúmeras cidades e estados terão suas áreas de preservação permanente absolutamente fragmentadas e descontinuas, definidas sem qualquer padrão comum ou lógica técnica ou científica. No caso de rios que fazem a divisa entre municipios, cada margem do rio poderá ter uma metragem diferente de proteção, o que também não se justifica, inclusive em rios federais. O que deve definir a metragem de proteção dos rios e reservatórios não é o fato da área ser urbana ou rural, ou fatores político-administrativo. A sensibilidade e vulnerabilidade ecológica, características geomorfológicas e hídricas da região, que na grande maioria das vezes não tem correlação com limites administrativo-político de municipios é que devem ser consideradas. E isso não é assunto de natureza política, a ser definido por vereadores, sem fundamentação técnico-científica.
É sabido ainda que a maioria das prefeituras estão falidas financeiramente dada absoluta concentração da arrecadação de recursos para União (+ de 70%) e Estados (+20%), sobrando menos de 7% para os cofres municipais. Prefeitos precisam tirar leite de pedra para aumentar sua arrecadação local e o IPTU (além do ISS) crescem sobretudo na medida da expansão de ocupações residenciais, comerciais ou industriais (mesmo que não regularizadas). Não é preciso ser corretor de imóveis urbanos para saber que as incorporadoras e loteadoras urbanas desenvolveram um apreço especial por vender seus condomínios e loteamentos “ecológicos” à beira rio, ou à margem de represas e nascentes. Mesmo nas áreas periféricas das cidades, não menos importantes no aspecto socioambiental, a dinâmica e a pressão por ocupação de várzeas, fundos de vale, margens de córregos, topos de morro, cujo preço do lote é mais acessível exatamente pelo caráter clandestino das ocupações é crescente.
O projeto de Lei aprovado na Câmara, e em vias de ser aprovado pelo Senado, flexibilizou o conceito de área urbana consolidada para viabilizar a regularização de áreas que a própria legislação de regularização fundiária urbana não permite hoje regularizar. O projeto dá um sinal trocado para sociedade de que tais áreas são pouco ou menos relevantes do ponto de vista ambiental e que sua ocupação passa a ser uma oportunidade de um bom negócio regularizável, por maioria simples de vereadores. Se a proposta entrar em vigor, tal qual foi aprovada pela Câmara e consta do relatório do Senador Eduardo Braga, certamente vai incentivar novas ocupações e expansão de ocupações irregulares, inclusive de áreas de preservação relevantes do ponto de vista ecológico e mesmo áreas de risco para a própria população no futuro, dadas as projeções de mudanças climáticas, os eventos extremos cada mais frequentes e seus impactos nos ciclos hidrológicos para as próximas décadas.
Os deputados e senadores conhecem bem a correlação de forças que domina grande maioria das câmaras de vereadores, sobretudo de municipios menores e os conselhos estaduais e municipais de meio ambiente. A oitiva desses importantes espaços de controle social local, prevista na nova norma, embora desejável e necessária, não será suficiente para conter a forte pressão especulativa favorável à ocupação máxima possível de tais áreas.
A previsão de observância das diretrizes do plano de recursos hídricos, do plano de bacia, do plano de drenagem ou do plano de saneamento básico, resolve pouco ou nada, pois na grande maioria dos municipios ou: (i) não há tais planos, ou (ii) quando há, pouco ou nada tratam da questão das áreas de preservação permanente, uma vez que estão até agora protegidas por lei, não lhes cabendo alterá-las ou flexibilizá-las.
A Câmara dos Deputados deu mais um passo na contramão da implementação dos ODS´s no Brasil, em particular o ODS 11 que trata das cidades e assentamentos humanos sustentáveis. E o Senado está prestes a consolidar esse retrocesso.
Abaixo deste artigo resumimos os principais argumentos técnico-científicos para a necessária revisão do PL no Senado (casa revisora).
Veja como seu deputado votou em relação ao PL 2.510/19 AQUI.
AQUI você pode acessar a íntegra da Nota Técnica assinada por mais de 100 especialistas de renome nacional e internacional sobre o PL citada neste artigo.
AQUI acesse Parecer do Senador Eduardo Braga para o Plenário do Senado
ABAIXO SEGUEM AS PRINCIPAIS CONCLUSÕES DO PARCER ASSINADO POR MAIS DE 100 ESPECIALISTAS
“Diante da realidade das mudanças climáticas, da crise hídrica e de tudo que foi exposto nesta Nota Técnica entendemos que:
a) Transferir para os municípios a responsabilidade pela definição dos limites das APPs urbanas, sabedores do poder econômico dos grupos de incorporadores imobiliários e loteadores, bem como, do seu poder de pressão sobre os políticos locais, compromete a defesa do interesse coletivo. Os municípios podem e devem estabelecer regulamentos adicionais para abarcar peculiaridades locais.
b) Conclui-se que, em função da indivisibilidade dos bens ambientais protegidos e da importância estratégica de tais espaços especialmente protegidos (APPs), para a proteção da biodiversidade, regulação do clima, proteção dos recursos hídricos e do bem-estar das populações humanas, a existência de parâmetros métricos mínimos nacionais é necessária. Além disso, a norma geral de caráter nacional ao estabelecer parâmetros métricos preservou os aspectos técnico/científicos e deu a necessária segurança jurídica à norma, permitindo sua fácil compreensão e aplicação, tanto pelos operadores quanto pelos administrados.
c) É necessário também considerar que os riscos de desastres socioambientais já são um fato altamente relevante e preocupante para uma grande parcela das cidades brasileiras, e que estes são potencializados pela ocupação irregular das Áreas de Preservação Permanente. Estes desastres, cada vez mais frequentes, têm causado perdas de vidas humanas e prejuízos econômicos de grande monta aos cidadãos atingidos e aos cofres públicos, ou seja, afetam toda a sociedade.
d) As Áreas de Preservação Permanente, pela sua importância para a biodiversidade, para a manutenção do fluxo gênico da fauna e flora, para a proteção dos recursos hídricos (já escassos e seriamente comprometidos em diversas regiões urbanas e metropolitanas) para a proteção dos solos, para a estabilidade geológica (especialmente de encostas de morros e margens de cursos d’água), são espaços territoriais imprescindíveis para assegurar o bem-estar e a qualidade de vida das populações humanas nas zonas urbanas e rurais, não devendo e não podendo ser simplesmente entregues à especulação imobiliária, sob pena, do interesse meramente econômico privado sobrepor o interesse público.
e) Reafirma-se a existência de farta fundamentação técnico-científica para a manutenção das faixas de APP dispostas na legislação nacional, devendo-se, por força inclusive dos custos econômicos e sociais decorrentes, se avaliar com extrema cautela e restrição toda e qualquer proposta de regularização ou manutenção da ocupação/uso consolidado das APPs, observados os limites da legislação em vigor, com ênfase quanto às faixas de vegetação protetora de recursos hídricos (mata ciliar e nascentes).
f) Considerar uma determinada zona urbana nas margens de cursos d’água ou encostas com alta declividade como sendo de uso consolidado para fins de afastamento das normas protetoras não elimina os riscos de enchentes ou deslizamentos que essas áreas naturalmente apresentam. Ou seja, mesmo revogando as leis humanas, as leis da natureza continuarão irrevogáveis e ignorá-las custa vidas e dinheiro público e privado.
g) Portanto, é necessário frisar que o bem-estar das populações humanas somente estará assegurado se estas populações não estiverem sujeitas aos riscos de enchentes, desbarrancamentos, falta d’água, poluição, secas ou outros desequilíbrios ambientais, e puderem desfrutar de uma paisagem harmônica e equilibrada.
h) A Lei de Proteção da Vegetação Nativa e o Estatuto das Cidades precisam ser vistos como os principais instrumentos para o planejamento urbano, servindo de suporte a municípios e estados. São normas basilares para a formulação dos planos diretores e leis de uso do solo urbano, e assim precisam ser observadas pelos municípios. A flexibilização proposta nos PLs 2510/19 e 1869/21 mostra-se extemporânea, infundada e, se efetivada, tende a ampliar as consequências nefastas dos eventos climáticos extremos, gerando prejuízos ambientais, econômicos e sociais, inclusive colocando em risco a vida dos moradores dessas áreas, riscos estes que podem e devem ser evitados ou minimizados.
i) Cumpre à administração pública garantir a manutenção dos serviços ambientais essenciais à saúde, à segurança, ao bem-estar e à melhoria da qualidade de vida das populações rurais e urbanas e não as submeter, criminosa e irresponsavelmente, ao risco iminente. Sob vários aspectos, é a isso que remetem as propostas dos PLs 14 2510/19 e 1869/21, e, portanto, cumpre ressaltar seu caráter inoportuno e inconstitucional.”
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para redacao@congressoemfoco.com.br.