Por Jéssica Mota, da Agência Pública
Verônica Bolina cresceu em Mococa, uma cidade de aproximadamente 69 mil habitantes no interior de São Paulo, na divisa com Minas Gerais. Sua mãe, Marli Alves, percebeu que a filha era diferente quando tinha ainda 6 anos. Aos 14, Verônica decidiu se assumir completamente. O pai não aceitava. A mãe foi chamada diversas vezes na escola. Não a queriam com as roupas e o jeito de mulher. “Eu não tinha como falar não. Ela queria ser uma grande mulher”, lembra Marli, por telefone, em tom melancólico. O preconceito perseguiria Verônica pela cidade. “Teve uma vez que saí de mão dada com ela, na rua, e eu falava: ‘Filha, não olha pra trás, olha pra frente. Preconceito você vai ter pra sempre, mas não olha pra trás. Deixa os outros rirem de você. Você tem a mim’.”
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Verônica queria ser cabeleireira, mas em Mococa só a aceitavam como cabeleireiro, sem as roupas de mulher. Aos 18 anos, saiu de lá e ganhou o Brasil. Começou a se prostituir, participou de concursos de modelo e fez bicos como cabeleireira. Sustentava a si e enviava dinheiro para a mãe, porteira de uma escola pública da Prefeitura de Mococa. Marli se sentia apreensiva com a distância. O último presente que recebeu da filha foram os três bombons de chocolate que Verônica enviara para ela, para o pai e para o sobrinho na última Páscoa. No domingo seguinte, Marli soube que Verônica estava presa.
É difícil saber o que desencadeou os eventos do dia 10 de abril de 2015 que levaram o rosto da transexual a estampar o caderno policial dos jornais. Marli não entende. Verônica agrediu três vizinhas do prédio em que morava na rua Frei Caneca, no centro de São Paulo, cidade onde vivia havia um ano. Uma delas, uma senhora idosa, ficou bastante machucada. Em seguida Verônica foi levada ao 2º Distrito Policial, no Bom Retiro. “Eu fiquei sem acreditar direito”, lembra Marli. “Ela tinha dado bombom pro prédio inteiro. A única coisa que falavam da minha filha era bem. Eu fui lá no flat dela, eu vi! Mas nesse domingo à noite – eu estava meio abobalhada ainda – foi que eu vi no Facebook a minha filha daquele jeito.”
A imagem de Verônica, sob tutela policial, com o rosto desfigurado, careca, as mãos para trás e seios à mostra, sentada no pátio da delegacia, tomara conta das redes e chegara até Marli. “Me deu um choque, perdi as pernas.”
Iara Guimarães, assistente jurídica e advogada do Centro de Cidadania LGBT, da Prefeitura de São Paulo, conversou com Verônica naquela mesma delegacia, três dias depois de sua prisão. A defensora pública Vanessa Vieira a acompanhou. “Ela estava muito machucada, com um discurso bem enrolado, bem complicado”, lembra Iara. O delegado queria colher o depoimento de Verônica naquele mesmo dia. Algumas horas depois de ter deixado a delegacia, Iara recebeu no celular o áudio em que Verônica afirmava ter sido possuída e ter provocado a ação, negando ter sido torturada pelos policiais. “Ela não tinha condições de ter um discurso tão claro depois de duas, três horas”, questiona a advogada.
PublicidadeO áudio foi gravado na delegacia onde ocorreu a tortura e compartilhado pela então coordenadora estadual de políticas para a diversidade sexual, Heloísa Alves, em um grupo de WhatsApp de membros do Conselho Estadual LGBT. A seguir a ex-coordenadora pediu que divulgassem o relato gravado. “Restaurem a verdade, por favor. Está muito claro agora que não houve tortura”, afirmou.
Não foi o que apurou a defensora Vanessa Vieira. “Ficou evidente, até mesmo por conta das fotos, que foram cometidos abusos, que realmente houve a prática de tortura naquele caso, entendendo que tortura são agressões físicas, mas também violência psicológica”, explica. “A própria questão da fotografia ter sido divulgada daquela forma, com os seios expostos. Ingressar assim na intimidade de alguém também é tortura.”
No dia 17 de abril, em audiência fechada no Ministério Público Estadual, Verônica sustentou a palavra de mulher, de que sofreu agressões no percurso até a delegacia e, depois, dentro do 2º Distrito Policial. Disse que foi agredida por “policiais de preto” e carcereiros. Teve um cabo de vassoura introduzido no ânus. E defendeu-se mordendo e arrancando um pedaço da orelha de um deles. Os policiais mantiveram também suas palavras de homens da lei. Segundo eles, a trans causou o embate e eles tiveram de usar força para contê-la. Verônica teria sido agredida por outros presos.
Marli conseguiu ver a filha quatro dias depois de sua prisão. “Não teve lugar que eles não machucaram”, lembra. Não tiveram como conversar muito. Marli ainda hoje permanece sem explicação. Uma vez por mês, se corresponde com a filha, por carta. A investigação contra os policiais e carcereiros pelas agressões corre em sigilo, conduzida pelo Grupo de Atuação Especial de Controle Externo da Atividade Policial do Ministério Público de São Paulo.
Hoje Verônica está presa no Centro de Detenção Provisória 3, em Pinheiros. Responde por dois processos de crimes contra a vida, com nomes diferentes. Em um deles, no qual a vítima é sua vizinha, é uma mulher acusada de tentativa de homicídio. No outro, cujas vítimas são os carcereiros, responde por lesão corporal grave através do nome masculino que abandonou em Mococa.
A menina Laura
Os policiais militares e o médico que acompanhavam Laura Vermont nos seus últimos momentos de vida não viam naquele corpo estendido a menina que Laura sempre foi. A todo momento chamavam Laura de “ele”. Foram Jackson Araújo e a esposa, Zilda Laurentino, pais de Laura, que a encontraram estendida no chão a duas quadras de sua casa, na Vila Curuçá, zona leste de São Paulo. A família mora ali há 30 anos e foi nesse mesmo bairro que Laura nasceu e cresceu. Ao seu lado estavam os policiais que hoje são investigados pelo homicídio da jovem. Era dia 20 de junho de 2015, 4h50 da manhã.
Muito machucada no rosto e nas pernas, Laura sangrava. Ainda estava viva, e a mãe pôde distinguir uma palavra de sua boca: polícia. Havia um tiro em seu braço esquerdo e de sua cabeça jorrava o sangue. “Meu carro até hoje tem marca de sangue. Ninguém quis colocar a mão para ajudar, nem para ajudar a colocá-la no carro”, lembra Zilda com indignação. “Os policiais falaram que não iam colocar a mão porque [Laura] podia estar contaminada pelo HIV. Inclusive pediram pra eu levar os exames pra eles verem. Porque eu falei que a minha filha não tem nenhuma doença e que eu tinha a prova disso, eu tenho os exames.”
O casal colocou Laura no carro. Aturdidos e em choque, os dois seguiram pelo caminho indicado pela viatura policial. Dirigiram por cerca de vinte minutos até o Hospital Municipal Prof. Dr. Waldomiro de Paula, em Itaquera. “Quando ela foi lá pra dentro, eu saí, olhei pelo vidrinho, e vi o médico conversando com o polícia, mas ele nem foi lá pôr a mão nela”, se ressente Jackson. “O outro policial falou: é pura droga, pura droga. Eu falei um palavrão. Fui obrigada”, diz a mãe. “E se fosse drogada, se tivesse HIV? É um ser humano igual todo mundo é! Jamais poderiam se referir assim, ainda mais sendo um pessoal da lei, que é para nos proteger.” Laura morreu em consequência de um traumatismo craniano, sem tentativas de ressuscitação. No dia 21 de novembro, completaria 19 anos.
A morte de Laura, porém, começou muito antes de ela chegar ao hospital. Os pais contam que ela havia saído para a balada, como sempre fazia, e voltava a pé quando foi agredida por cinco rapazes. Levou socos e pauladas. Caminhando, chegou a um posto de gasolina. Foi um funcionário desse posto que filmou Laura ensanguentada com seu celular e avisou Jackson.
Ainda atormentado, o pai relembra os muitos “ses” que poderiam ter salvado a filha. Se o motorista de um ônibus que passou tivesse aberto a porta quando Laura correu em sua direção. Se o funcionário do posto de gasolina que a filmou tivesse ligado antes. Se os motoqueiros que ficam no mesmo posto tivessem intervido contra os agressores. “Tô com uma raiva que você nem imagina. Todo mundo aqui conhecia minha filha.”
Na primeira versão que deram, quando registraram o boletim de ocorrência, os policiais que atenderam Laura não revelaram terem sido autores de agressões e do tiro que atingiu o braço da menina. Eles instruíram um rapaz para que corroborasse suas versões dos fatos. Mas não demorou muito para que a delegada Ivna Schelble, do 63º Distrito Policial, descobrisse a farsa. Segundo os policiais, o tiro foi motivado pela resistência de Laura. Mas o laudo necroscópico aponta que o tiro partiu de baixo para cima, o que indica a possibilidade de Laura já estar rendida no momento da agressão. A polícia civil ainda investiga os acontecimentos daquela madrugada. Os policiais militares foram presos no mesmo dia do ocorrido, mas soltos quatro dias depois por ordem judicial. Os cinco rapazes acusados de espancar Laura confessaram o crime e hoje respondem em liberdade.
Laura teve seu caminho interrompido antes mesmo dos eventos que levaram a sua morte. Ela também não conseguiu completar os estudos. Tentou estudar em três escolas diferentes, uma delas particular. “Quando ela ia, o pessoal fazia piada”, conta Jackson. “A pessoa quer estudar e o pessoal fica julgando, falando, aí não consegue! Eu fui numa escola que quase brigo com um monte de gente lá”, lembra o pai. A solução temporária foi tirá-la da escola. A família planejava montar um salão de beleza para que Zilda e Laura trabalhassem juntas.
Jackson perceberia os olhares de preconceito ainda depois da morte da filha. “Até no Fórum [Criminal da Barra Funda], a gente foi fazer uma manifestaçãozinha lá do lado, pôs camiseta, tudo, e os policiais do Fórum queriam pôr nós pra fora. Falavam: ‘É a travesti’. E aí viravam a cara”, relata. “E muita gente que tava indo pro Fórum perguntava quem é, ‘era travesti, minha filha’. ‘Ah tá!’, e viravam a cara.”
Desde a morte de Laura, Jackson abandonou a padaria que sustentava a família. Deprimidos, ele e a esposa esperam pela justiça. Hoje a Defensoria Pública do Estado de São Paulo planeja entrar com um pedido de indenização contra o Estado pelo homicídio da jovem.
A violência naturalizada
Para Symmy Larrat, coordenadora-geral de Promoção dos Direitos LGBT da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, a morte de Laura impressiona, mas não é um fato isolado. “Se fosse um crime envolvendo um homem cisgênero heterossexual, seria diferente. Assim como se fosse uma mulher cisgênera”, diz, referindo-se àqueles que se identificam com o gênero designado ao nascer. “Mas, por tratar-se de uma trans, o que acontece? A gente é vista por muitas pessoas como culpadas pela violência que acontece conosco, por sermos quem somos.”
Pessoas trans são aquelas que não se identificam com o gênero que lhes foi designado ao nascerem. Homens trans são pessoas que tiveram o gênero feminino atribuído a elas quando crianças, mas que se veem como homens e reivindicam esse reconhecimento, social e legalmente. Da mesma maneira, mulheres trans tiveram o gênero masculino atribuído na infância, mas se reconhecem com o gênero feminino.
O Brasil hoje é o país onde mais se assassinam pessoas trans no mundo, segundo a organização Transgender Europe, que reuniu dados de janeiro de 2008 a dezembro de 2014. De acordo com o levantamento, 51% dos assassinatos de pessoas trans na América Central e do Sul aconteceram no Brasil – foram 689 mortes contabilizadas no país. A maior parte é de jovens. Entre os casos brasileiros levantados pela organização, chamam atenção cinco mortes de crianças e adolescentes com menos de 15 anos.
Em 2014, uma menina trans de 8 anos foi espancada no Rio de Janeiro até a morte pelo pai, que queria ensiná-la a se comportar como homem. No mesmo ano, uma garota de 14 anos foi encontrada estrangulada em uma casa na cidade de Angélica, Mato Grosso do Sul. Em 2013, duas adolescentes foram estranguladas em Macaíba, Rio Grande do Norte, e na zona rural de Ibiporã, no Paraná. Outra jovem foi morta a tiros por estranhos que a atacaram na rua em Maceió, Alagoas. Os casos foram reunidos pela internet em cooperação com organizações e ativistas trans no Brasil e no mundo todo. “Na maioria dos países, dados sobre a população trans assassinada não são produzidos sistematicamente, e é impossível estimar o número de casos não reportados”, ressalta o relatório.
No Brasil, dados oficiais são escassos. “Todos os cadastros públicos levam em consideração o Censo, e não estamos incluídas no Censo. Isso dificulta muito”, explica Symmy. Como a política de segurança pública é de atribuição estadual, cada estado se organiza de uma forma. Geralmente os boletins de ocorrência não possuem campos que assinalam orientação sexual e identidade de gênero das vítimas, ou a possibilidade de os crimes cometidos terem uma motivação homofóbica ou transfóbica. “Acaba-se subnotificando pessoas trans nesse processo”, constata a coordenadora.
Em São Paulo, a Coordenação de Políticas para a Diversidade Sexual, órgão estadual, concluiu recentemente um grupo de trabalho que estabeleceu a inclusão do campo homofobia/transfobia nos boletins de ocorrência como possível causa de agressão. “Ter essa informação é fundamental para subsidiar políticas públicas – e para demonstrar o quanto é importante criminalizar a LGBTfobia, reconhecendo que esta é a motivação para muitos crimes contra a pessoa”, acrescenta a atual coordenadora, Soninha Francine. Não há informação de quando a norma passa a vigorar.
Os dados mais atualizados produzidos pelo governo federal estão no último balanço semestral do Disque Direitos Humanos, o Disque 100. De acordo com o balanço, as denúncias de discriminação, violência física e psicológica são as mais recorrentes entre a população LGBT e também entre a população trans.
Em 2011, travestis e transexuais representavam 10,11% do total de denúncias do universo LGBT, mas naquele ano 89,88% dos casos denunciados não tinham o perfil da vítima identificado. Em 2014 esse número caiu para 48,76%.
Em 2013, as denúncias de violências cometidas a travestis e transexuais somam 17,74% do total, atrás apenas daquelas que vitimaram gays (24,50% dos casos). Em 2014, os casos em que as vítimas eram trans representaram 19,88% do total de vítimas do universo LGBT, enquanto os gays totalizaram 20,05%. Em todos os anos, a maioria das vítimas é jovem, de 18 a 24 anos. Já no primeiro semestre de 2015, travestis e transexuais foram 20,58% das vítimas de violências comunicadas ao Disque 100, um quinto do total de denúncias entre vítimas bissexuais, gays, lésbicas e identidades não informadas.
A subnotificação da violência à população trans acontece também pelo medo de retaliação, já que muitas vezes ela parte dos próprios agentes públicos do Estado – como nos casos de Verônica e Laura. “E aí essas denúncias chegam para gente, por exemplo, de forma confidencial, através de conversas no Facebook… Todos os dias estou recebendo fatos novos de assassinatos de pessoas travestis e transexuais, fatos novos de denúncias de violência praticada de toda espécie”, relata Cris Stefanny, presidente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais, a Antra. “Recebemos respostas extremamente evasivas [das secretarias de Segurança Pública], apenas dizendo que a polícia recebe instruções para o respeito. Tudo bem, mas na prática isso não acontece. Quais são os mecanismos de controle e de que forma a Segurança Pública pode inibir esses índices de violência, inclusive praticados pelas forças de segurança? Isso que nós gostaríamos de receber como resposta.”
Leia a reportagem completa da Agência Pública