Edson Luiz Spenthof*
Senhores ministros:
O Fórum Nacional de Professores de Jornalismo (FNPJ), entidade que congrega professores de jornalismo de todo o Brasil, vem manifestar perante essa Corte a sua preocupação com a possível eliminação da obrigatoriedade da formação superior específica e prévia em jornalismo para o exercício da profissão de jornalista no Brasil, no julgamento do STF que se avizinha.
A entidade que representamos, senhores ministros, está convicta de que a medida pleiteada pelo Ministério Público terá efeito exatamente inverso ao pretendido, no seu principal aspecto. O fim da obrigatoriedade dessa formação prévia significará séria restrição a dois direitos fundamentais dos cidadãos e das cidadãs brasileiras, garantidos na Constituição Federal e inspirados na Declaração Universal dos Direitos Humanos: os direitos-irmãos de manifestação do pensamento e de acesso à informação.
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Também representará um grave revés no acesso democrático à profissão de jornalista, cujas normas são vigentes desde que o Decreto-Lei 972/69 (que ora se pretende modificar) entrou em vigor.
No primeiro caso, isso ocorre por uma simples questão sobre a natureza do que está em debate. A assim chamada obrigatoriedade do diploma é um requisito legal para o exercício de determinada profissão, e não para o exercício do direito de expressão. E não faz diferença se essa profissão é a do jornalista ou do médico, advogado, engenheiro. Isso porque o jornalista não é um opinador público ou o portador de um uma espécie de registro que supostamente lhe daria o mandato, exclusivo, para opinar. Ao contrário, por dever ético e eficácia técnica, o jornalista não manifesta seu pensamento no exercício profissional.
Entretanto, inversamente, o médico, o advogado e o engenheiro, assim como todo e qualquer profissional não-jornalista ou todo e qualquer cidadão, não estão impedidos, por nenhum mecanismo legal ou profissional, do jornalista ou de suas próprias profissões, de manifestar seu pensamento por intermédio do trabalho profissional do jornalista. Ao contrário, é dever do jornalista assegurar a todos o máximo de acesso aos espaços de opinião da sociedade representados pela mídia.
Em outras palavras, as notícias e reportagens – o produto do trabalho profissional do jornalista, pelo qual é remunerado ao final do mês – não contêm, e não devem conter, por norma profissional, as suas opiniões pessoais. Como profissional, o jornalista é um produtor de conhecimentos específicos sobre a dinâmica viva e imediata da realidade social e um mediador dos conhecimentos e opiniões que disputam o acesso à esfera pública social. É a melhor ferramenta de equilíbrio das diversas correntes de opinião em disputa por visibilidade pública.
Embora saibamos que a postura ética dependa de diversas condicionantes pessoais e sociais, podemos atestar, como professores de jornalismo, que a preparação dos futuros profissionais para o mundo do trabalho se dá com base na profunda problematização dos procedimentos éticos aplicados à profissão e no treinamento para o exercício dessa função de mediador da realidade social, e não para o exercício de “opinador”.
Toda a preparação acadêmica para o exercício do jornalismo está fundamentada na preocupação de que, aproveitar-se do acesso aos meios de comunicação para emitir a própria opinião, ou a do proprietário do veículo, constituiria privilégio inaceitável do ponto de vista ético.
E é exatamente a radicalização de privilégios inaceitáveis o que vai ocorrer caso seja aprovado o fim da obrigatoriedade do diploma, principalmente se essa medida vier embasada na compreensão, equivocada, de que o exercício do jornalismo é o exercício da opinião. O jornalismo opinativo – que, a rigor, nem poderia ser conceituado tecnicamente como jornalismo – faz parte de uma fase embrionária da imprensa, cuja essência é preservada nos espaços editoriais e de opinião dos veículos.
O jornalismo moderno, porém, é o jornalismo informativo, e seu produto por excelência é a notícia, mais complexa ética e tecnicamente de ser trabalhada. As notícias de qualidade, obra de profissionais capacitados, são essenciais para a vida democrática, pois contribuem para, entre tantas outras coisas, a própria formação da opinião fundamentada.
Vincular o direito de manifestação do pensamento, não por acaso inscrito entre as cláusulas pétreas da nossa Carta Magna, ao exercício profissional do jornalista, significa ferir drasticamente ambos: o direito à manifestação de pensamento estaria reservado de forma privilegiada, no âmbito dos meios de comunicação, a uma categoria profissional; o exercício do jornalismo seria reduzido à expressão de opiniões.
Se dependesse da inscrição de todos os cidadãos na atividade jornalística, e se esta o permitisse, o direito humano de manifestação do pensamento estaria restrito aos poucos que poderiam fazê-lo como atividade exclusiva ou semi-exclusiva (exigência feita a um profissional) e que estariam dispostos a se submeter a outras leis e outros constrangimentos que regem o mundo do trabalho.
Além de ser inócuo e, ao contrário, uma forma de inibição do direito à manifestação do pensamento, o fim da obrigatoriedade do diploma significaria um duro golpe em outro direito fundamental dos cidadãos: o direito à informação de qualidade, inclusive como direito-meio para o exercício de outros direitos, especialmente o de terem direitos. Isso porque o exercício da cidadania, inclusive a manifestação pública do pensamento, depende cada vez mais de uma informação jornalística de qualidade, equilibrada, e que reflita a pluralidade social.
A revogação dessa exigência legal da qual tratamos aqui significaria quebrar o único mecanismo que, num Brasil sem marco e sem órgãos regulatórios claros e ativos na área da comunicação social, estabelece um contraponto ao poder dos dirigentes de órgãos jornalísticos, sejam eles públicos ou privados, de definir soberanamente os conteúdos veiculados. Estamos falando de uma corporação profissional que se constitui não segundo o perfil determinado pelo empregador, mas a partir de normas e conhecimento prévio adquirido em instituição superior de ensino, que essa categoria tende a defender permanentemente.
Por último, lembramos que obrigatoriedade do diploma não significa impedir o acesso democrático ao trabalho. No caso, ao trabalho jornalístico. A nossa lei maior é clara ao dizer que é livre o exercício de qualquer profissão, respeitadas as condições estabelecidas em lei. E quis a lei que todos os cidadãos que desejarem ser jornalistas continuassem tendo esse direito assegurado. Contudo, e em sintonia com a nova Constituição, apesar de ter sido editada antes e em plena vigência do regime autoritário, estabeleceu uma condição de caráter indubitavelmente democrático: tirou das mãos do proprietário de mídia o poder de determinar o acesso à profissão e o transferiu para as instituições superiores de ensino de jornalismo. Trata-se de legítimas instituições da sociedade, uma vez que exercem atividade de natureza pública, mesmo quando se organizam sob regime jurídico privado.
Segundo a lei em vigor, e que precisa ser mantida e aperfeiçoada, é desse corpo profissional formado em instituições superiores de ensino, que cada dirigente de organização jornalística poderá escolher aqueles que exercerão, em seu veículo específico, de forma profissional e remunerada, a atividade técnico-intelectual e pública do jornalismo. Profissional preparado para o trabalho, segundo normas e técnicas profissionais que visam à informação de qualidade, produzida e publicada em respeito às regras democráticas. E um constante guardião destas, como membro do “quarto poder”, expressão cunhada pela tradição democrática não apenas para conferir legitimidade à profissão, mas também e principalmente para exigir dos jornalistas responsabilidade e competência à altura da sua missão de informar à sociedade.
* Edson Luiz Spenthof, 46 anos, é presidente do Fórum Nacional de Professores de Jornalismo (FNPJ), professor da Universidade Federal de Goiás (UFG) e doutorando pela Universidade de Brasília (UnB).