Por 340 votos a 72, com uma abstenção, o plenário da Câmara aprovou há pouco o decreto presidencial que pôs em vigência a intervenção federal no Rio de Janeiro, transferindo do governo do estado para as Forças Armadas a gestão da segurança pública. Depois de mais de sete horas de debates e duelos regimentais, o relatório aprovado, elaborado pela deputada Laura Carneiro (MDB-RJ), segue agora para votação no Senado já nesta terça-feira (20), pautado como primeiro item do dia.
O decreto só terá validade confirmada caso os senadores confirmem a aprovação dos deputados. Só então as tropas militares, já a postos no Rio de Janeiro, podem de fato entrar em ação sob o general Walter Braga Netto, chefe do Comando Militar do Leste. Em caso de rejeição pelos senadores, suspende-se – e, quando possível, reverte-se – os efeitos da medida, procedendo-se em ato contínuo o devido comunicado de recusa à Presidência da República, hipótese pouco provável.
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Em pouco mais de meia hora de leitura, Laura Carneiro não só encaminhou a aprovação da matéria, mas também sugeriu ao governo, como ontem (domingo, 18) disse a este site que o faria, uma previsão orçamentária para a execução das ações militares no combate ao crime organizado. Para a deputada, que diz descartar hipótese de golpe militar, a intervenção tem que assegurar o rigoroso respeito ao estado democrático de direito.
Ainda segundo a parlamentar fluminense, a medida extrema, “remédio amargo necessário”, impunha-se devido ao recrudescimento da violência e do crescimento do crime organizado no Rio. “Extrema é a condição à qual foi levada a população do Rio de Janeiro”, sintetizou, emocionada ao final do discurso e agradecendo ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), pela designação para relatar a matéria.
PT, PCdoB e Psol estiveram em obstrução durante toda a sessão plenária, lançando mão dos instrumentos regimentais para retardar a votação. Obstruindo-se os trabalhos, excluiu-se, para cálculo do número mínimo de deputados exigido para promover votações, os 57 nomes do PT, os 11 do PCdoB e os seis do Psol. Nesse sentido, um leque de requerimentos, questões de ordem, discursos, encaminhamentos de bancada e outros direitos das minorias foi posto em campo por horas, levando a sessão madrugada adentro.
A 20 minutos da 1h desta terça-feira (20), a maioria governista aprovou um requerimento de encerramento das discussões, abrindo caminho para a rejeição de outros dois requerimentos de adiamento de votação, um por duas e outro por apenas uma sessão plenária deliberativa. A barreira das duas horas da manhã já havia sido rompida quando o relatório sobre o decreto foi aprovado, depois de muita troca de ofensas, alguma gritaria e das já tradicionais vaias mútuas.
Prós e contras
Depois do discurso de Laura Carneiro, seguiu-se o rito regimental para a etapa de discussão, em que três deputados a favor da intervenção e três contra falaram por três minutos, cada um, da tribuna do plenário. De um lado, a oposição dizia que a medida tem intenção multifacetada e serve a interesses escusos do governo Temer, como a mudança do foco das denúncias de corrupção e o mascaramento da insuficiência de votos governistas para aprovar a reforma da Previdência; de outro, membros da base defendiam a pertinência do decreto, face ao descontrole da segurança pública do Rio, e acusavam oposicionistas de se posicionar ao lado da criminalidade e contra os anseios da população.
Favorável ao decreto, Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ) afirmou que essa é uma “noite histórica” e aproveitou para criticar o PT, afirmando que as razões da crise de segurança no Rio têm nomes e siglas partidárias. “Gostaria de dizer claramente ao povo do RJ para ficar atento ao que acontece aqui hoje. Crise no RJ tem nomes e siglas partidárias. MDB teve, ao longo das décadas, PT e PCdoB como sócios e responsáveis pela desgraça da segurança do Rio”, discursou o deputado. “Intervenção federal já, é o que o Rio de Janeiro precisa.”
Primeiro a encaminhar voto contra, o líder do Psol, Ivan Valente (SP), classificou o decreto como improviso do governo. “Esse decreto não tem justificativa. É um improviso total, é o campeão do improviso”. Citando casos de corrupção envolvendo Temer e muitos de seus aliados, o deputado também criticou fala do ministro da Defesa, Raul Jungmann, sobre mandados coletivos de busca e apreensão cogitados pelo governo, com a ameaça de que casas de trabalhadores poderão ser invadidas. “É desviar o foco da crise para a segurança pública”, declarou Ivan, advertindo para a sinalização de uma agenda de “Estado penal” em vez de um Estado de bem estar social.
Por sua vez, o vice-líder do governo na Câmara Darcísio Perondi (MDB-RS) escolheu a tática do confronto com a oposição. “Vocês defendem a Venezuela! Defendem Cuba! Defendem a Coreia do Norte! Que moral vocês têm? Ouvi aqui excrescências sem precedentes. Por exemplo, que a intervenção vai representar a violência contra as crianças do Rio de Janeiro”, reclamou o emedebista. “Povo do Rio de Janeiro, olhe para os deputados e deputadas da oposição não só do Rio de Janeiro, mas de todo o Brasil. Olhem o que estão fazendo com vocês. Famílias enlutadas, que choram, que perderam trabalhadores!”
Já Chico Alencar (Psol-RJ), que falou contra a intervenção, aludiu à fala do ministro da Justiça, Torquato Jardim, em novembro passado, sobre a ligação de autoridades com o crime organizado no Rio. “Não há crime organizado sem a conivência e a participação do Estado, das forças governamentais, do Legislativo”, declarou Chico, para quem a verdadeira e mais perigosa quadrilha é a capitaneada por Temer, com o poder da caneta presidencial – na descrição do Ministério Público Federal, em denúncias já apresentadas, o “quadrilhão do PMDB”.
Criminosos
Antes do início das discussões, Rodrigo Maia divulgou para a imprensa um discurso e o leu diante dos pares. “Forças Armadas, Força Nacional, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal estão sendo convocadas pelo presidente da República, que é o comandante delas, para uma missão fundamental na defesa da democracia: combater, e vencer!, o crime organizado”, declamou Maia, fiador da gestão Temer e ele mesmo investigado pelo crime de caixa dois e até “caixa três” de campanha.
“Esta Casa acompanhará, avaliará e fiscalizará todos os atos dessa intervenção que, seguramente, não encontrará limites – nem orçamentários, nem burocráticos, ou de qualquer ordem –, para assegurar a vitória do Estado e da sociedade sobre a bandidagem,sobre os criminosos, que a todos ameaçam. O crime não pode vencer. Os criminosos têm de ser derrotados!”, acrescentou o deputado. Apelidado de “Botafogo” nas famigeradas planilhas de pagamento de propina da Odebrecht, Maia teve um repasse suspeito de R$ 200 mil detectado em sua prestação de contas relativa ao pleito de 2014, que o reconduziu à Câmara para o quinto mandato consecutivo.
Em um lance que se encaixa na votação deste início de semana, com protagonismo de Maia, o presidente do Senado, Eunício Oliveira (PMDB-CE), mais cedo anunciou sua decisão de suspender a votação de propostas de emenda à Constituição (PECs) enquanto o decreto estiver em vigência. O governo, embora não admita publicamente, sabe das muito escassas chances de aprovação da reforma da Previdência, considerada impopular. Sabe também que PECs, caso da reforma, não podem ser promulgadas enquanto perdurar intervenção da União em quaisquer dos entes federativos, nos termos da própria Carta Magna.
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Nesse sentido, poderia ser barrado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) o “jeitinho” encontrado pelo Palácio do Planalto para manter as aparências de não desistência da proposta: Temer disse ter acertado com o governador do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Pezão (MDB), que suspenderia a intervenção caso conseguisse os 308 votos necessários para aprovar a PEC. Com a condição, prontamente aceita por Pezão, de que não seria desfeita a estrutura organizacional montada para que as Forças Armadas entrem em ação.
Em outro flanco, Maia consultaria o Supremo para saber se, enquanto a intervenção estiver em curso, o Parlamento pode ao menos discutir e votar a reforma da Previdência, deixando para promulgá-la ao fim do decreto. Assim, a observância à lei estaria resguardada e nada mais haveria no caminho das mudanças pretendidas por Temer. A estratégia já havia encontrado amparo em entendimentos já manifestados por consultores do Congresso e juristas.
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