Sara Resende
As curvas de Paolla Oliveira ofuscaram os traços sinuosos de Oscar Niemeyer. Diante dos contornos e da sensualidade da atriz que encarnou a prostituta de luxo Danny Bond, os eixos de Brasília podem até ter ficado em segundo plano na minissérie “Felizes para sempre?”, da TV Globo, encerrada sexta-feira (6). Mas não passaram despercebidos. Para quem mora na capital federal, mais do que um cenário, a cidade foi uma das protagonistas da trama escrita por Euclydes Marinho e dirigida pelo cineasta Fernando Meirelles.
Debaixo dos pilotis dos prédios das superquadras, sobre a pista da Ponte JK, pelas águas do Lago Paranoá ou pelas salas de aula da Universidade de Brasília (UnB), a capital se viu na TV muito além das tradicionais imagens da Esplanada dos Ministérios e do Congresso Nacional. As cenas, todas gravadas fora de estúdio, atiçaram a curiosidade dos próprios brasilienses, que buscavam detalhes para reconhecer cada ponto utilizado como locação.
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Com cenas rodadas em residências e prédios locais, Brasília deu vida a um enredo embalado por corrupção, sexo, mentiras e traições. Ingredientes universais que parecem ainda mais reais na capital federal, dada a imagem estereotipada que a persegue: uma cidade de pessoas frias, vazia, marcada pela mentira, pela corrupção, pelo jogo de interesses e por intrigas. Uma visão que incomoda os brasilienses, de modo geral, e que foi reforçada pela série em alguns aspectos, na opinião de pessoas ouvidas pelo Congresso em Foco.
A cena em que Danny Bond aparece de costas, seminua, na sacada de um hotel de luxo rendeu a Paolla Oliveira a liderança nos assuntos mais quentes do Twitter em 28 de janeiro e cerca de 150 mil buscas por seu nome no Google naquele mesmo dia. Mas alguns internautas observaram outros detalhes. Nas redes sociais, Fernando Meirelles, indicado ao Oscar e ao Globo de Ouro como melhor diretor de cinema, foi elogiado por valorizar as paisagens e os monumentos arquitetônicos que renderam a Brasília o título de Patrimônio Cultural da Humanidade e de cidade com a maior área tombada do mundo.
Veja comentários do Twitter sobre a Brasília retratada pela minissérie
Linda, mas…
“É muito legal ver a gente sendo representado. Fico tentando reconhecer a quadra que está passando na TV”, conta Déborah Nogueira, fundadora do Projeto Pilotis, nascido na UnB para tentar retirar do brasiliense o estereótipo de frio e indiferente. A designer acredita que a produção pecou ao deixar de lado a rotina da capital federal. “A cidade está linda na série, mas aparece como uma maquete: 18 horas sem trânsito não combina com nossa rotina.”
Para Déborah, as ruas vazias mostradas na obra de ficção, que contrastam com o trânsito cada dia mais caótico da realidade, reforçam a ideia de que Brasília é uma “ilha”, uma cidade pouco receptiva e calorosa. Ex-estudante da UnB, a jovem de 26 anos lembra que ainda é proibido circular de bicicleta pelos corredores da universidade, regra constantemente ignorada na trama pelo professor Guilherme, interpretado pelo ator Antônio Sabóia.
A designer, porém, elogia a iniciativa de se filmarem os conjuntos habitacionais do Plano Piloto, com suas estruturas características como os cobogós – elementos vazados que completam paredes e muros para possibilitar maior ventilação e luminosidade no interior de um imóvel, característicos de edifícios mais antigos da cidade. “Isso mostra que Brasília é muito mais que o funcionalismo público”, observa.
Cineasta e professor da UnB, Mauro Giuntini afirma que “Felizes para sempre?” seguiu uma tendência do cinema nacional de dispensar estúdios e rodar as cenas em locações. Giuntini diz que Fernando Meirelles teve uma sensibilidade apurada para fotografar a arquitetura de Brasília. “O ponto de vista aéreo da cidade, captado por meio de drones, foi a grande inovação da série. Os drones voando entre as colunas do Congresso Nacional proporcionaram imagens incríveis”, avalia. Cenas que, segundo ele, têm tudo a ver com o fio condutor da trama. “Hoje não se fala mais de política sem considerar a corrupção”, pontua.
Capital da corrupção
Mas a associação entre a capital e a corrupção incomoda estudiosos e amantes da cidade. “A minissérie reforça o estereótipo de que Brasília se resume à desonestidade e à corrupção”, explica o sociólogo Brasilmar Ferreira. Especialista em cidade, o professor diz que a maior parte do Brasil vê os moradores da capital como o ambicioso e corrupto empreiteiro Cláudio Drummond (Enrique Díaz), ou seja, alguém individualista e inescrupuloso. “O poder corrompe a visão da sociedade sobre o outro”, afirma o sociólogo.
“Isso aqui é Brasília. Não confie em ninguém, idiota”, ensina a personagem da atriz Silvia Lourenço, uma black-bloc, ao adolescente Júnior, interpretado por Matheus Fagundes. No capítulo final, o garoto se desilude com a ativista depois de flagrá-la recebendo dinheiro para participar das manifestações. “Brasília é assim”, diz ela, ao tentar se explicar para o adolescente. “O imaginário brasileiro tem uma noção equivocada sobre Brasília. Os corruptos não são daqui. A Operação Lava Jato, por exemplo, flagrou criminosos de outros estados”, ressalta Brasilmar. Apesar da crítica, o sociólogo vê como positivo a exibição de uma minissérie que rompe com o eixo Rio-São Paulo, tradicional cenário das tramas da Globo.
Um obcecado confesso da cidade, o poeta Nicolas Behr lamenta que os brasileiros associem a capital às crises políticas e à má administração de alguns gestores. Criador da frase “sou de Brasília, mas juro que sou inocente”, Nicolas prefere celebrar a cidade pulsante, rebelde e criativa em que vive. “O poder não merece Brasília”, sentencia. O poeta, nascido em Mato Grosso e radicado no Distrito Federal desde os 16 anos de idade, diz sonhar com o dia em que a cidade não será mais a sede política do país. Algo que só acontecerá, segundo ele, daqui a 200 anos, devido ao histórico do Brasil de troca de capital de dois em dois séculos – casos de Salvador e Rio de Janeiro.
Arte que imita a vida
As semelhanças entre a trama e os escândalos políticos chamam a atenção. “Parece que a narrativa da série saiu dos noticiários”, observa Brasilmar Ferreira. Na minissérie, Cláudio Drummond é advogado e fundador da empreiteira que leva o nome da família. Financia partidos políticos para obter benefícios em licitações. Acaba investigado pela Polícia Federal (PF). A vida imita a arte?
Na primeira semana da série, Cláudio convoca uma reunião em que todos os convidados são revistados antes de entrar na sala de negócios. O objetivo é claro: direcionar uma milionária licitação. “A ideia é sairmos daqui hoje com todas as alterações necessárias para ganhar a concorrência. A costura com o ministro nos dará a melhor obra que já fizemos”, avisa. A equipe do empresário cria cláusulas no documento para impossibilitar a participação de outras empresas de engenharia na disputa pelas obras. Esse tipo de prática, comum aos cartéis, parece ter saído dos autos da Operação Lava Jato.
Produzida em parceria pela O2 Produções, de Fernando Meirelles, e pela TV Globo, a obra expôs a história de quatro casais que vivem o dilema da traição. O roteirista Euclydes Marinho reinventou um de seus trabalhos de 1982, a minissérie “Quem ama não mata”, ambientada em Niterói (RJ).
Na capital federal, Cláudio Drummond é quem centraliza o enredo ao influenciar a maioria dos personagens. O empreiteiro realiza contratos ilícitos com o governo, mantém um caso explosivo com a prostituta Danny Bond, que também se envolve com a esposa do empresário, Marília (interpretada pro Maria Fernanda Cândido). Cláudio trata de forma fria e calculista a mulher e faz de gato e sapato os seus irmãos Hugo (João Miguel) e Joel (João Baldasserini). Além de tudo, é o pai daquele que seria seu sobrinho, Júnior, resultado de um caso que teve em segredo com a cunhada Tânia (Adriana Esteves), esposa de Hugo. Com todo esse enredo, é fácil imaginar o porquê do ponto de interrogação incluído no título da minissérie – “Felizes para sempre?”.