Leonardo Ribeiro Dias*
Regras existem para serem cumpridas. No direito, as regras jurídicas delimitam comportamentos a serem seguidos e, em comparação com os princípios jurídicos, são mais rígidas e sua superação depende de razões fortes, fundamentos suficientes e em circunstâncias excepcionais. Contudo, quando se trata de empresas em recuperação judicial, essas premissas nem sempre são observadas.
O legislador excluiu desses processos determinados créditos, como aqueles garantidos por alienação fiduciária ou decorrentes de leasing. Ao fazê-lo, não foi considerada a recuperação judicial como algo impenetrável, porém levou em conta a dinâmica dos agentes econômicos antes, durante e depois do processo, pensando apenas em valores, como a segurança jurídica, o fomento ao mercado de crédito e o direito de propriedade com a exigência de se proporcionar meios efetivos de recuperação às empresas em crise.
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Neste contexto, adota-se uma “solução de equilíbrio” ao manter tais créditos fora do processo de recuperação, no entanto desautorizar a venda ou retirada dos “bens de capital essenciais” à atividade empresarial durante o período de suspensão de 180 dias, para que haja tempo hábil a elaboração e aprovação do plano de recuperação.
Esta é a lógica seguida pelas regras aplicáveis a recuperação judicial. Entretanto, essa lógica é frequentemente desrespeitada, sem a devida compreensão e cautela.
Em primeiro lugar, a lei diz que somente os bens de capital não podem ser retirados durante o prazo de 180 dias. Tal expressão foi inserida no Senado pela Emenda 107 ao Projeto de Lei 71/2003, que resultou na lei de recuperação de empresas em vigor. E sua justificativa foi exatamente para que fossem “excluídas as alienações fiduciárias de direitos creditórios e, assim, se reduz o custo do crédito”.
Não obstante, há uma excessiva flexibilização do significado dessa expressão que, ao invés de se restringir a máquinas e equipamentos utilizados no processo produtivo, é estendida a imóveis (inclusive de terceiros) e a direitos creditórios, sob a genérica justificativa de serem essenciais à preservação da empresa – uma afronta à lei.
A propósito, essencialidade é conceito amplo, cujo conteúdo deve necessariamente ser preenchido no caso concreto. Todavia, nem todo bem é essencial, seja ele de capital ou não. Um bem essencial é aquele que não é possível existir a atividade empresária. Logo, se a atividade puder ser desempenhada com outros bens, não existirá essencialidade.
Ainda, se a empresa está em crise, cogita-se se ela efetivamente utiliza todos os seus bens essenciais ou se alguns deles estariam inativos por conta da diminuição dos negócios e, portanto, sujeitos a deterioração.
Nesse sentido, a essencialidade deve ser suficientemente fundamentada e comprovada pelo interessado, mediante demonstração contábil evidenciando o impacto do uso do bem na receita da empresa, o efeito concreto de sua retirada para processo de recuperação judicial e a indisponibilidade de outros bens aptos a substituí-lo. Imprescindível também a opinião do administrador judicial, que poderá atestar, in loco, a efetiva utilização do bem pela recuperanda e sua essencialidade ao processo.
Ressalte-se que o ônus da prova da essencialidade é da empresa em recuperação, que tem todas as informações sobre seu negócio e deverá divulgá-las para justificar seu pedido. Não basta a mera alegação de que a recuperação poderia ser inviabilizada, pois, por se tratar de uma exceção a norma expressa, demanda justificativa, fundamentação e comprovação condizentes e suficientes.
Do contrário, o que salvará as empresas em crise, cuja viabilidade sequer foi atestada, estimula-se a tomada irresponsável de crédito, com impacto negativo aos demais devedores. Além disso, desprestigia-se o sistema de garantias e promove-se a insegurança jurídica e a imprevisibilidade nos negócios. Ainda, impõe-se ao credor situação perversa e inusitada, visto que ele não pode usar a garantia para satisfazer seu crédito, mas, por força da lei, está impedido de votar no plano de recuperação.
Aliás, se a empresa se encontra com todos os seus bens onerados, trata-se de severo indício de que a crise é irreversível e que o pedido de recuperação é tardio. Portanto, reconhecer de imediato a essencialidade desses bens implica violar regra expressa e desvirtuar o princípio da preservação da empresa em favor dos interesses de devedores oportunistas.
*Leonardo Ribeiro Dias é especialista em Direito de Recuperação Judicial e Recuperação de Crédito