Pedro Estevam Serrano*
Neste domingo (5), quando são comemorados os 20 anos de criação da Constituição Federal, fazemos um exercício de análise da trajetória percorrida por esta Carta que, em minha opinião, se configura como uma das mais avançadas e melhor elaboradas de todo o mundo. O texto original, aprovado em 1988, em sessão comandada pelo então presidente da Assembléia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães, não chegou a ser aplicado em sua íntegra, o que se mostrou uma grande perda para todo o país, pois a série de reformas aprovadas ao longo dos anos contribuiu para recuar os avanços sociais e aferiu a certos particulares a responsabilidade de executar determinados serviços públicos em condições favoráveis somente a eles. Dessa forma, valores inerentes ao Estado Democrático e Republicano de Direito foram prejudicados.
Todavia, antes de elencarmos os problemas que nossa República tem enfrentado desde o início da Constituição Federal, considero por bem localizarmos os significativos avanços. Acima de tudo, a existência da Carta se mostra soberana em termos de garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros. O que chamo de verdadeiras conquistas civilizatórias tiveram lugar neste meio-tempo, protegidas de alterações motivadas por ambições desmedidas do capital. Valores humanos preciosos ainda são os pilares fundamentais de nossa Carta.
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Partindo desta análise, afirmo que o maior obstáculo enfrentando pela Constituição está justamente em seus aplicadores, e não em sua natureza. Aqueles que a manuseiam insistem em se munir de pretextos para não aplicá-la corretamente, privando a população da integridade na interpretação do texto e, conseqüentemente, de suas benesses. Um exemplo recente desta conduta está em uma série de decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), que traduziu em ações suas direitos fundamentais da Carta, em termos jurídicos de notória evidência, mas que até então restavam inaplicados de maneira adequada pelos demais órgãos de aplicação do direito.
Uma das questões mais difíceis com a qual lidamos hoje no Brasil, senão a mais complexa, a desigualdade social, contudo, permanece gritante. Inexiste a universalização dos direitos garantidos pela Constituição a todos os brasileiros, pois a garantia dessas normas jurídicas só é estendida àqueles que possuem renda pessoal elevada e, com isso, milhões de outros menos favorecidos sobrevivem num Estado violento e vilipendiador de sua condição jurídica como seres humanos. Os ricos são contemplados com avanços no que tange à incidência da lei penal, enquanto os desfavorecidos penam por não terem qualquer garantia do sistema vigente.
Quando nos focamos no setor público, acredito, é onde nos salta aos olhos os maiores retrocessos. Digo isso porque, desde a vigência da Carta Constitucional, concessões de rádio e televisão, conferidas a particulares, se constituíram em uma esdrúxula fórmula de serviço, caracterizadas por serem verdadeiras capitanias hereditárias, e não concessões em sua essência. O interesse público, neste caso, foi completamente esquecido no decorrer dos anos, o que provocou perdas não só relacionadas à Nação, mas principalmente a todos aqueles que usufruem da comunicação como eficaz modo de relacionamento entre os cidadãos.
Em outro território da prestação de serviços públicos, ambientes voltados para decisões institucionais democráticas foram substituídos por agências de caráter essencialmente tecnocrático e dominados pelo capital e seus interesses. Ressalto que não me oponho à desejável participação privada na execução de serviços públicos, contudo, é preciso fazer oposição quando interesses individuais são postos acima dos interesses públicos. Seguindo neste mesmo raciocínio, aponto a urgência de necessários avanços em tópicos como os direitos de minorias, como os relativos ao reconhecimento e à proteção jurídica das relações homoafetivas e à indevida criminalização de condutas como o aborto e o uso de substâncias entorpecentes. Igualmente, percebo a necessidade de avanços civilizatórios em prol das liberdades e do convívio plural de diferentes.
No entanto, apesar de todas as suas imperfeições, nossa Constituição Federal permanece sendo a melhor carta que produzimos até hoje. Acima de tudo, devemos celebrar sua existência e de seus mais de 300 artigos e velar por sua integral e universal aplicação.
* Pedro Estevam Serrano é advogado e professor de Direito Constitucional da PUC de São Paulo.
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