O agitado panorama político-jurídico das últimas semanas foi dominado por decisões judiciais com fortes impactos institucionais. “A 1a turma do STF decidiu que criminalizar aborto realizado no 1o trimestre da gestação viola diversos direitos fundamentais das mulheres. Segundo o voto conductore do ministro Barroso, a criminalização da conduta (aborto voluntário no primeiro trimestre) não teria sido recepcionada pela CF.” (Migalhas n. 3.998)
Na sequência, a Câmara dos Deputados resolveu instalar uma comissão para analisar o julgado e seus efeitos. Em decisão individual, no âmbito da ADPF n. 402, o Ministro Marco Aurélio, do STF, afastou cautelarmente o Senador Renan Calheiros da Presidência do Senado Federal. “O STF não referendou a liminar do ministro Marco Aurélio. A maioria acompanhou voto divergente do ministro Celso de Mello, que manteve o senador na presidência da Casa, impedindo-o, no entanto, de assumir a Presidência da República.” (Migalhas n. 4004)
Segundo várias fontes muito bem informadas, as “conversações” de bastidores caracterizaram essa última decisão como uma das mais deprimentes da história recente do Supremo. “O ministro Luiz Fux, do STF, determinou nesta quarta-feira, 14, que a Câmara dos Deputados analise novamente o projeto com 10 medidas de combate à corrupção. A decisão foi por meio de liminar deferida em MS impetrado no STF pelo deputado Eduardo Bolsonaro. Para o ministro, o Legislativo não pode desvirtuar com emendas o conteúdo do projeto de iniciativa popular.” (http://www.migalhas.com.br)
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Esses pronunciamentos recentes não destoam, sob certo ângulo de análise, de dezenas de manifestações adotadas nos últimos 15 (quinze) anos, pelo menos. Apenas para ilustrar, podem ser citadas: a) a licitude da interrupção da gravidez em caso de feto anencéfalo (ADPF n. 54); b) a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência (ADCs ns. 43 e 44); c) a nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal (Súmula Vinculante n. 13); d) a juridicidade do uso de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas para fins terapêuticos (ADIn n. 3.510); e) o exercício do cargo de Governador de Estado, por qualquer intervalo de tempo, não garante a percepção de pensão vitalícia, em valor mensal idêntico à retribuição paga, independentemente de denominação, ao Governador de Estado (ADIn n. 3853) e f) a impossibilidade do financiamento eleitoral por pessoas jurídicas/empresas (ADIn n. 4650).
Existe uma explicação fácil, corrente e equivocada para a atuação cada mais vez intensa do Poder Judiciário, notadamente do Supremo Tribunal Federal. Afirma-se que o Poder Judiciário ocupa, de forma indevida, um espaço deixado pela inércia do Poder Legislativo. Em outras palavras, na ausência de leis sobre determinadas matérias a regulamentação termina por ser construída no âmbito da atividade judicial.O raciocínio anterior está substancialmente equivocado. Um exemplo simples demonstra o erro. Inexistia lei acerca do casamento homoafetivo. O Supremo Tribunal Federal admitiu expressamente, no julgamento da ADPF n. 132, a validade jurídica da união homoafetiva. A adoção, no futuro, de lei proibindo expressamente o casamento homoafetivo não modificará o quadro atual. Com efeito, o resguardo jurídico de situações dessa natureza decorre da aplicação de valores e princípios constitucionais não afetados pela legislação infraconstitucional. Não houve, portanto, atuação do Judiciário diante de lacuna deixada pelo Legislativo.
Ocorreu, eis o cerne da questão, aplicação da normatividade superior de natureza constitucional. Nesse sentido, pode ser destacado o seguinte trecho da ementa resultante do julgamento da ADIn n. 2797: “3. Não pode a lei ordinária pretender impor, como seu objeto imediato, uma interpretação da Constituição: a questão é de inconstitucionalidade formal, ínsita a toda norma de gradação inferior que se proponha a ditar interpretação da norma de hierarquia superior. 4. Quando, ao vício de inconstitucionalidade formal, a lei interpretativa da Constituição acresça o de opor-se ao entendimento da jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal – guarda da Constituição -, às razões dogmáticas acentuadas se impõem ao Tribunal razões de alta política institucional para repelir a usurpação pelo legislador de sua missão de intérprete final da Lei Fundamental: admitir pudesse a lei ordinária inverter a leitura pelo Supremo Tribunal da Constituição seria dizer que a interpretação constitucional da Corte estaria sujeita ao referendo do legislador, ou seja, que a Constituição – como entendida pelo órgão que ela própria erigiu em guarda da sua supremacia -, só constituiria o correto entendimento da Lei Suprema na medida da inteligência que lhe desse outro órgão constituído, o legislador ordinário, ao contrário, submetido aos seus ditames”.
A verdadeira razão para a atuação mais intensa do Poder Judiciário nos últimos anos decorre de uma profunda mudança do paradigma de compreensão do funcionamento da ordem jurídica. No passado, até a primeira metade do século XX, quando dominantes os constitucionalismos liberal e social, admitia-se uma supremacia meramente formal da Constituição. Assim, os casos e problemas da vida em sociedade eram resolvidos pela aplicação direta das leis infraconstitucionais. As Constituições, seus valores e princípios fundantes, não experimentavam aplicação direta e funcionavam como meros vetores ou diretrizes a serem incorporados pelo Legislador na construção das regras legais. Esse panorama sofreu radical transformação a partir da segunda metade do século XX. As Constituições “ganharam” uma supremacia material ou axiológica antes inexistente. A principal consequência prática dessa transformação revolucionária no campo jurídico consiste justamente na possibilidade, e necessidade, de aplicação direta da Constituição, notadamente seus valores e princípios, independentemente de intermediação legislativa (de uma regra específica posta na legislação infraconstitucional).
O chamado “ativismo judicial”, compreendido no sentido da aplicação direta dos valores e princípios constitucionais pelo Judiciário sem a imprescindível intermediação do Legislativo, é um fenômeno necessário e essencialmente positivo. São concretizados, por essa via, direitos fundamentais importantíssimos realizadores da dignidade da pessoa humana. “O reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”, conforme define a Declaração
Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Trata-se de construção internacionalmente consagrada, inclusive como a base mais relevante do Estado Democrático de Direito no Brasil (art. 1o, caput e inciso III, da Constituição brasileira de 1988).
O aludido “ativismo judicial”, embora necessário, nos termos antes postos, está sujeito a excessos e desvios. Seus contornos e limites não possuem tratamento técnico-jurídico aprofundado e consistente. Provavelmente, jamais se atingirá tal patamar de construção jurídica por conta do manuseio de pautas axiológicas intrinsecamente subjetivas. Mesmo de forma incipiente, parece adequado apontar duas ordens de limitações ao “ativismo judicial”: a) o respeito ao espaço de conformação do legislador (para regular as multifacetadas hipóteses da rica realidade social) e b) a impropriedade, em regra, de sua utilização para além de definições (binárias) de compatibilidade, ou não, com os vetores constitucionais.
Outro campo sujeito ao exercício indevido do “ativismo judicial” consiste na adoção de decisões monocráticas que perturbam gravemente o cenário político-institucional quando: a) desconsideram (ou modificam) a jurisprudência reiterada do tribunal; b) interferem diretamente no processo legislativo em andamento ou c) introduzem no debate político um posicionamento particular do magistrado autor da manifestação (personagem com profundo deficit de legitimidade democrática, no sentido tradicional de representar votos que sustentam a atuação no cenário político).
Observa-se, portanto, a necessidade de aperfeiçoamentos no exercício da jurisdição, sobretudo do Supremo Tribunal Federal, na seara do “ativismo judicial”. Esses ajustes não podem, nem devem, buscar o enfraquecimento do Poder Judiciário, a volta aos paradigmas do passado (corretamente superados) ou mesmo afetar a independência dos magistrados. São adequações, normalmente procedimentais, privilegiando decisões colegiadas, voltadas para eliminar espaços para perturbações institucionais graves e atuações não republicanas.
Eis um esboço (entre inúmeros possíveis) de mudança constitucional no sentido antes referido. A eficácia de decisão monocrática, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, extensível aos Tribunais de Justiça, fica condicionada a confirmação pela maioria absoluta do tribunal quando: a) interfira no processo legislativo em curso; b) altere a composição ou funcionamento de órgão parlamentar; c) interfira no exercício de cargo ocupado por parlamentar em órgão do Legislativo e d) suspenda o exercício de mandato parlamentar.
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