Fábio Góis
A chamada “Constituição Cidadã”, de 1988, um dos marcos da democracia no país, é clara em relação aos objetivos fundamentais da República. Em seu artigo 3º, inciso IV, diz que um deles é “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
Passadas algumas linhas de seu celebrado texto, o artigo 20º, que define quais são os “bens da União”, diz no inciso XI que “as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios” estão entre tais posses. Ainda a respeito das populações indígenas, chegamos ao artigo 129º, que determina as funções institucionais do Ministério Público – entre elas, “defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas” (inciso V).
A introdução acima, que não é meramente ilustrativa, é para efeito de reflexão: as populações indígenas, nos dias de hoje, teriam seu “bem-estar” assegurado e respeitado (na prática, para além de “constitucionalmente”)? Suas terras – que não são propriamente suas, como mostra o supracitado artigo 20 – teriam a proteção necessária para a manutenção da cultura e do estilo de vida dos índios nativos? E, quanto à segurança jurídica, como reza o artigo 129, os índios estariam bem assistidos?
Não é o que parece, de acordo com levantamento preliminar realizado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) sobre registros de violência contra índios no ano passado, e pelo estudo sobre suicídio entre índios realizado pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa).
Segundo o estudo do Cimi – organismo missionário vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), criado em 1972 – foram 81 assassinatos Brasil afora, um dos mais altos números registrados em quase 20 anos de levantamento (o primeiro foi em 1988). E um dado intrigante: desse total, 48 assassinatos – mais de 50% – foram praticados em apenas um estado, Mato Grosso do Sul. Entre as principais causas da matança estão os conflitos decorrentes da escassez de terras destinadas às populações indígenas. Ou seja, há algo errado com as políticas de proteção e promoção do bem-estar dos índios.
“Nunca, desde que o Cimi iniciou esses levantamentos, ocorreram tantas agressões contra a vida dos indígenas. Até agora registramos 81 assassinatos ocorridos em diversas regiões do Brasil”, afirmou ao Congresso em Foco o vice-presidente nacional do Cimi, Roberto Liebgott. Para ele, o órgão responsável pelas políticas de assistência aos povos indígenas, a Fundação Nacional do Índio (Funai), ainda está longe de alcançar um padrão ideal de eficiência.
“Na nossa avaliação, a Funai é falha não somente no que se refere à segurança para os índios. Por ser órgão federal vinculado ao Ministério da Justiça e responsável pela execução da política indigenista no país, deveria estar mais bem estruturada fisicamente, com pessoal capacitado e orçamento compatível com as necessidades das populações indígenas em todo o Brasil”, declarou Roberto.
Segundo Roberto, a política fundiária no país é deficitária em relação aos índios, em que pesem o aumento populacional dos próprios indígenas – o que levaria à insuficiência das terras historicamente demarcadas para tais povos – e a intensificação de atividades agropecuárias por parte dos produtores rurais.
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A combinação desses e outros fatores traria, invariavelmente, malefícios de toda sorte aos povos indígenas. “Quem tem a responsabilidade de demarcar as terras indígenas é o governo federal, através de seu órgão indigenista, mas o que temos presenciado é a omissão e a negligência oficiais diante dessa dramática realidade”, denuncia Roberto (leia a íntegra da entrevista).
O número de assassinatos de indígenas contrasta com o valor total dos repasses federais para organizações não-governamentais (ONGs) ligadas à causa. Conforme mostrou com exclusividade o Congresso em Foco, entre janeiro de 1999 e 26 de outubro de 2007, essas ONGs receberam R$ 744 milhões, cifra superior à execução direta da Funasa, no mesmo período, em saúde indígena, que foi de R$ 618 milhões. O alto volume de recursos repassados a essas entidades despertou a atenção da CPI das ONGs no Senado (leia mais).
Suicídio
Algumas informações levantadas pelo Cimi são particularmente curiosas, como a que revela ser a maior parte dos assassinatos o resultado de conflitos entre os próprios índios. Entretanto, nenhuma intriga mais, inclusive ao meio acadêmico, do que um dado revelado por outro estudo, este realizado pela Funasa: o número de suicídios.
Só em 2007, foram 14 casos, todos eles – novamente – em Mato Grosso do Sul, estado que parece ter uma triste sina em relação ao assunto. A tribo Kaiowá é a responsável pela provável totalidade dos suicídios. Os estudos da Funasa não identificaram casos de suicídio em outras etnias. “Temos várias etnias em Mato Grosso do Sul onde não ocorreu nenhum registro de suicídio”, declarou à reportagem o diretor do Departamento de Saúde Indígena da Funasa, Wanderley Guenka.
O motivo do número relativamente alto de suicídios de índios ainda é um mistério, apesar dos avanços nas pesquisas por parte de instituições como Funasa e Cimi. “Em torno dos suicídios existem vários estudos, mas ainda não chegaram ao que determina essa causa”, revelou Wanderley. Para ele, a situação continua praticamente a mesma desde que a fundação começou a observar com mais profundidade o “fenômeno” dos suicídios.
O dirigente do Cimi reforça a informação de Wanderley. “O suicídio entre os Kaiowá é motivo de inúmeras discussões, debates e estudos acadêmicos. Reflete uma realidade complexa e parece estar vinculada, entre outros fatores, à falta de perspectiva de futuro”, acred