Antônio Carlos de Medeiros *
As manifestações que varrem o Brasil podem afetar o Zeitgeist (espírito da época) no Brasil. O que significa, em suma, afetar a cultura e a cultura política. Neste sentido, elas têm e terão efeitos sociológicos pertinentes na sociedade e na política. No tempo de uma geração, o Brasil vivenciou um forte movimento histórico de estabilidade econômica e de inclusão social. Agora, esta (nova) sociedade está dizendo que quer mais cidadania política e social e que há uma crise de representação no sistema político brasileiro.
Demorou. Mas chegou. Eu mesmo, assim como vários outros observadores da cena política brasileira, temos chamado a atenção, há aproximadamente 20 anos, para o que denominamos do dilema político-institucional brasileiro: sociedade e economia que se modernizam “versus” sistema político arcaico e tradicional, portador (o sistema político) do vírus da ingovernabilidade.
A Constituição cidadã de 1988 ouviu as ruas e ampliou os direitos sociais. Mas manteve o tal do presidencialismo de coalizão, assentado num sistema e regime políticos e de governo híbridos e portadores de paradoxos que alimentam crises permanentes de representatividade e governabilidade. Um sistema eleitoral arcaico, dito proporcional, mas que não produz proporcionalidade na representação política. Um sistema partidário oligárquico, difuso e fragmentado. E assim por diante. Um dia, estava escrito nas estrelas, a casa ia cair. Pois é. Caiu.
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E agora? As manifestações são contra “tudo que está aí” e contra “todos”. O desgaste maior já é para a presidente da República, uma espécie de símbolo em cujo colo são depositadas, inevitavelmente, as responsabilidades pelas mazelas do país. A sua popularidade despencou. Sua aprovação caiu de 57% para 30% em apenas 3 semanas, segundo o Datafolha. Diz a Folha de S. Paulo: “é a maior queda de aprovação de um presidente aferida pelo Datafolha desde Fernando Collor em 1990” (29/06/2013).
Entretanto, o desgaste é e será para todos os políticos, de todos os partidos. E agora vai “descer” para o colo de governadores e prefeitos, pois as pautas das manifestações, difusas pela própria natureza, contém críticas e reivindicações que se situam nas esferas de responsabilidades de governadores e prefeitos. Isto é inexorável. Não adianta este ou aquele político se aproveitar da ocasião, talvez movido(s) pela síndrome da natureza do escorpião. Vai para o colo de todos eles. E de todas as instituições em geral dos três poderes: executivo, legislativo, judiciário. Repercutindo, é claro, nos cenários da sucessão presidencial, das sucessões estaduais e das eleições gerais de 2014. Zerou o jogo?
Todos nós ainda estamos tentando compreender a natureza da avalanche. Já existem avaliações e análises para todos os gostos e todos os ângulos. O fundamental é compreender os grafos sociais e as redes sociais. A miríade de “nós” e de ligações que conectam os nós. O que leva à “horizontalização” da política e da participação política. É um equívoco querer procurar “quem é O LÍDER”. Melhor procurar os “nós”, os “hubs”, as comunidades. Tem os Anonymous, da inspiração de Guy Fawkes. Tem os violentos. Tem os lúdicos. Tem os saudosistas. Tem os que se movem à margem dos partidos/aparelhos da esquerda oficial (Psol, PSTU, PCdoB, UNE, sindicatos). Mas tem, sobretudo, uma grande inquietação, difusa e crescente, misturada com indignação.
Movimentações pré-políticas (ainda) que desmoralizam a ÁGORA (praça principal da constituição da PÓLIS, a cidade-estado na Grécia da Antiguidade Clássica) e que rejeitam os partidos e se mostram fartas do governo e da oposição, da corrupção e da impunidade, da baixa qualidade dos serviços públicos, do fantasma da carestia.
A maioria é de jovens. Que forjam identidade pelas redes sociais. Dispensam mediação política. A maior parte é de jovens brasileiros entre 18 e 30 anos. Estima-se que 23 milhões destes jovens (55%) pertencem à chamada classe C, com renda mensal entre R$ 219 e R$ 1.019. De cada R$ 100 que recebem, destinam R$ 70 para ajudar nas despesas de casa. Essa geração tem o dobro da escolaridade dos pais, acessam internet, são formadores de opinião na família, são menos conservadores que seus pais. Entre 2002 e 2010 os universitários da classe C saltaram de 6 milhões para 9 milhões. Serão 11 milhões no ano que vem. É público do Prouni. Ocupam 67% das vagas nas universidades federais.
Segundo Maria Cristina Fernandes, “não parece haver dúvidas de que é uma geração que usufrui de mais oportunidades que seus pais, mas há crescente dificuldade no cotidiano para usufruí-las. De tão lotado, o metrô de São Paulo, por exemplo, transporta, por quilômetro quadrado, quatro vezes mais passageiros dos que o de Nova York. Os jovens têm celulares e laptop. Empregados, alcançam um plano de saúde, mas frequentemente o atendimento concorre em precariedade com o dos hospitais públicos. Mais da metade dos universitários do país usa transporte público… usufruem de descontos… pedem tarifa zero…” (“Os estudantes entre o molotov e a utopia”, Valor, 14-16/06/2013).
No início, todos os governantes e políticos ficaram atônitos. Quase com certeza porque a grande maioria deles (ainda) não compreendeu bem que a internet e as redes sociais são o Quinto Poder. E que a “horizontalização” da política veio para ficar. E que, principalmente, é preciso dialogar pela rede com os internautas. Não basta “postar”. É preciso dialogar. A presidente Dilma demorou, mas finalmente se rendeu à necessidade de dialogar pela internet. Mas a maioria dos governadores e prefeitos, por exemplo, ainda não compreendeu esse fenômeno. Por isso, as manifestações reais e virtuais vão continuar…
As reivindicações são difusas, mas algumas pautas já ganharam institucionalidade. PEC 37. Reforma política. Royalties para educação e saúde. Outras ainda vão ter que ganhar institucionalidade: segurança e pacto federativo, por exemplo. É uma construção em andamento ainda.
Tudo isso vai ter efeito na economia. Tudo isso vai ter efeito fiscal. Demandas geram despesas públicas. A pressão (legítima) por “agora quero mais” vai certamente sobrecarregar os orçamentos dos três níveis de governo. Como dizem os americanos: “Não há almoço grátis”.
E aí reside um problema. O movimento das ruas e as pressões do mercado geraram uma crise de confiança e uma quebra e reversão das expectativas no Brasil. Tudo resultando em pressões inflacionárias e em overshooting nos preços do câmbio e dos juros. Agora, há uma forte pressão e necessidade de promoção de forte ajuste fiscal. O mercado quer ortodoxia fiscal. E as ruas querem melhores serviços públicos ( é a chamada revolta dos centavos).
Como alerta Cláudia Safatle, em 1999 Fernando Henrique Cardoso reinventou o seu governo e em 2005, na crise do “mensalão”, Lula também reinventou o seu governo. Agora, Dilma, pressionada, “pode ser levada a se reinventar. Se o problema é de confiança, só ela pode resolver” (“Só Dilma salva Dilma”, Valor, 21-23/06/2013).
A única coisa que todos nós temos que torcer para que não ocorra é um surto de autoengano nos governantes e nas elites políticas, sociais e empresariais. A transformação do Zeitgeist está em movimento…
* Pós-Doutor e PhD em Ciência Política pela London School of Economics and Political Science. Consultor, é autor do livro Dilemas do Brasil Contemporâneo (Ed. Capital Cultural, RJ, 2010).