Celso Lungaretti *
“É uma história contada por um tolo,
cheia de som e fúria, significando nada”
(William Shakespeare, “Macbeth”)
Sou signatário do “Manifesto em defesa da justiça e da constitucionalidade das cotas raciais”. Mas não, certamente, o mais entusiasta.
Tal documento e o outro a que ele veio responder – o dos “Cidadãos anti-racistas contra as leis raciais” – visam pressionar os juízes do Supremo Tribunal Federal (STF) no sentido de que mantenham ou rejeitem a política de reservar-se determinado número de vagas para os negros nos estabelecimentos de ensino superior.
Meu pouco entusiasmo se deve, primeiramente, ao ranço elitista de tais manifestações. Uns e outros apostam, implicitamente, em que seu prestígio e/ou representatividade vá ser determinante junto à opinião pública e aos mais altos magistrados da nação.
Cidadãos como Caetano Veloso, Ferreira Gullar, João Ubaldo Ribeiro e José Goldemberg supõem que a simples menção de seus nomes seja capaz de mover céus e terras. Daí terem restringido seu abaixo-assinado anticotas a 113 personalidades e luminares, pois tico-ticos destoariam ao lado de tão fulgurantes pavões…
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O manifesto pró-cotas também tem lá seus notáveis, mas a porta foi deixada aberta para todos aqueles que quisessem entrar: numa primeira fase, a rede dos organizados; e, a partir da disponibilização on line, os internautas em geral.
Temos, portanto, duas amostragens de minorias articuladas pretendendo representar a maioria desinteressada, extenuada e desesperançada, que está a anos-luz de distância desse debate.
O saudoso jornalista Cláudio Abramo, há pelo menos duas décadas, escreveu um artigo assustador e profético, alertando que a real participação no jogo democrático ficaria cada vez mais limitada àqueles que integrassem o sistema como produtores e consumidores. Estes disporiam das informações, teriam as ferramentas e tomariam as decisões.
Aos desempregados, subempregados e miseráveis estaria reservado o papel de parias, só lembrados na hora das eleições para encherem urnas com votos de cabresto. E a democracia sofreria um esvaziamento real, na medida em que só existiria para alguns e estes falariam em nome de todos.
É, cada vez mais, o que se passa na era da internet, quando batalhas de Itararé (aquela que não houve, segundo o grande humorista Apparício Torelly) como essa dos manifestos são travadas apaixonadamente pelos bem-pensantes e passam quase despercebidas para o homem das ruas.
Muito barulho por nada? Quanto ao mérito da questão, há uma certeza e dois principais questionamentos. A certeza é de que os negros escravizados foram vítimas de práticas aberrantes, repulsivas e ignominiosas.
Os questionamentos são quanto à reparação proposta para essa injustiça histórica:
· Até que ponto o menor acesso dos negros atuais às faculdades se deve a ocorrências anteriores a 1888?
· Até que ponto tais políticas compensatórias sanarão ou atenuarão o problema?
Para não embarcarmos numa discussão interminável e que talvez nem sequer comporte uma conclusão inequívoca, vamos admitir que negros e pobres tenham suas oportunidades reduzidas em função da desigualdade e da desumanidade que caracterizam o capitalismo no Brasil; e que os negros enfrentem dificuldades maiores ainda que as dos outros pobres.
Então, para os seres humanos justos e solidários, pouco importa se os negros estão em desvantagem por causa da escravidão passada ou por encontrarem-se hoje sob o fogo cruzado do capitalismo e de um racismo dissimulado, mas não menos real. Merecem, sim, que os pratos da balança sejam reequilibrados em seu favor.
Quanto à eficácia das políticas compensatórias, ela só poderá ser realmente aferida depois de um período razoável de implementação. Por que, afinal, abortarmos essa tentativa no nascedouro?
Os 113 cruzados do “não” carregam nas tintas, adotando uma retórica cujo alarmismo beira o ridículo: “as cotas raciais (…) ocultam uma realidade trágica e desviam as atenções dos desafios imensos e das urgências, sociais e educacionais, com os quais se defronta a nação”, “leis raciais (…) passam uma fronteira brutal no meio da maioria absoluta dos brasileiros”, etc.
À primeira vista, parece muito barulho por nada. Será mesmo?
O fato é que, em meio às terríveis distorções que o ensino superior vem sofrendo em função de seu atrelamento aos interesses capitalistas – começando por sua ênfase na especialização castradora que forja meros profissionais, desprezando a formação crítica e universalizante que engendra verdadeiros cidadãos –, eles magnificaram um problema menor, em detrimento, exatamente, “dos desafios imensos” que dizem existir.
Por que, afinal, nunca demonstraram idêntico empenho em relação a esses desafios imensos? A carapuça de estarem desviando as atenções do fundamental não lhes caberia melhor do que aos seus adversários?
Um amigo, militante do movimento negro, garante que o inspirador desse manifesto foi Ali Kamel, diretor de Jornalismo da Rede Globo e autor de Não somos racistas, livro de cabeceira de alguns dos piores porta-vozes da direita golpista na mídia brasileira.
Aí estaria tudo explicado, pois esses mesmos propagandistas atacam da mesmíssima forma o programa federal de anistia às vítimas da ditadura militar, atribuindo uma relevância desmesurada ao que eles alegam ser um terrível desperdício do dinheiro do contribuinte, mas, na pior das hipóteses, não passaria de uma gota d’água no oceano de iniqüidades de Brasília. E, na verdade, trata-se apenas do fiel cumprimento das normas que a ONU prescreve para as nações saídas do totalitarismo.
Para finalizar, eis o segundo motivo para eu considerar a política das cotas raciais apenas um paliativo, não uma solução: ela ataca somente um dos elos da corrente da injustiça. Não garante que os negros cheguem às portas da faculdade, apenas as abre para os que as houverem conseguido alcançar por seus próprios esforços. E também não garante que tenham igualdade de oportunidades no mercado de trabalho.
Nem, muito menos, que seus talentos e conhecimentos sejam posteriormente utilizados para o seu perfazimento como seres humanos e em real benefício da sociedade, em vez de servirem à acumulação do capital.
Entre os partidários da competição insensível entre seres humanos movidos pela ganância e os cidadãos decentes que procuram minorar as mazelas do capitalismo, eu me alinharei sempre com estes últimos. Mas, sem ilusões: as injustiças só serão realmente erradicadas quando o bem comum prevalecer sobre os interesses individuais, numa nova forma de organização social.
Artigo publicado em 18/05/2008. Última atualização em 12/08/2008.
* Celso Lungaretti, 57 anos, é jornalista em São Paulo, com longa atuação em redações e na área de comunicação corporativa, e escritor. Escreveu Náufrago da utopia (Geração Editorial, 2005). Mais dele em http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/.