A exemplo das grandes cidades brasileiras, Xian, a antiga capital chinesa convive com a pobreza e a invasão de grifes ocidentais luxuosas
Renata Camargo*
Purgatório da beleza e do caos. A cantora Fernanda Abreu poderia facilmente transportar os versos do seu hit Rio 40 Graus para o Oriente. Mas nada de Japão. Brasil e China têm mais em comum do que o fato de serem apontados como potências emergentes, ainda que os dragões chineses estejam milhares de quilômetros à nossa frente nessa corrida pelo crescimento econômico. Ambos ostentam contradições do tamanho de suas dimensões continentais.
Novo gigante da economia mundial, a China atrai agora olhares curiosos de todos, mesmo de quem jamais se interessou por sua história. País de 1,3 bilhão de habitantes, faz de sua capital Beijing (Pequim) palco da Olimpíada mais cara da história. Investimentos de US$ 40 bilhões numa nação onde um em cada oito habitantes vive em condições de pobreza.
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Uma mostra da grandiosidade chinesa ganhou o mundo na cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos, realizada com beleza e emoção ontem. Com precisão e arte, eles fizeram questão de frisar a invenção do papel, a ida do homem à lua, a descoberta da pólvora e da bússola. Os milenares chineses têm orgulho do que são e batem o pé: “a pólvora é nossa invenção, e não dos europeus”, como os livros de história ocidentais insistem em frisar.
Em meio a uma viagem de sete meses por 17 países dos cinco continentes, desembarquei na China no dia 24 de outubro de 2007. Por lá estive por quase um mês. Já naquela ocasião tudo o que se via por ali era “about olympics”. As fachadas, todas em reforma, as ruas, as construções, os mistérios em torno do estádio megalomaníaco – que na época era “surpresa” vedada a turista –, tudo o que se respirava na China cheirava a jogos olímpicos. Uma verdadeira revolução infra-estrutural e cultural, esperada desde o início dos anos 1990, quando o país tentou sem sucesso sediar os jogos de 2000.
As mudanças não se restringiram ao espaço físico. O governo chinês levou a sério as campanhas de “bom comportamento”. Não cuspa no chão. Não escarre. Não fure fila. Não empurre ao entrar no metrô. Não pergunte quanto o estrangeiro ganha, pois os ocidentais não gostam de falar sobre isso (às vezes, me questiono como seriam as políticas de “bom comportamento” para os brasileiros). Eis algumas das frases estampadas nos milhares de cartazes espalhados a ditar um peculiar código de boas maneiras.
O idioma, como esperado, revelou-se uma barreira. Poucos falam inglês na China. Ainda que poucos naquele país signifiquem muitos. Tudo isso tornava a leitura impossível, a comunicação verbal limitada e a expressão corporal um desafio constante. O que os ouvidos perdiam, no entanto, os olhos captavam e vice-versa.
Era um trabalho em equipe para conseguir traduzir aquela realidade. As percepções sobre Beijing, por exemplo, são as mais diversas. A cidade é deslumbrante do início ao fim, tomada, no entanto, por uma poluição incondicional e desumana e uma febre de consumo assustadora. A cidade das bicicletas e dos arranha-céus luxuosos revela a China moderna, em contradição com o interior, pobre, também poluído, mas distante da febre de consumo.
A maior mudança das últimas décadas no país é, sem dúvida, a recente adoção de filosofias de vida, hábitos de consumo e modos de produção completamente capitalistas diante de uma herança comunista da Revolução Cultural de Mao Tsé-Tung. A China hoje exala esse rito de passagem e isso pode ser visto no cotidiano. É a transição do regime comunista para o “consumista”, como bem traduziu minha irmã que me acompanhava na viagem.
Impossível passar incólume, por exemplo, pela parte central da cidade Xian (veja foto acima), antiga capital chinesa, e ver suntuosos shoppings para milionários próximos uns dos outros. Nas vitrines, as melhores grifes européias e americanas, como Prada, Gucci, Giorgio Armani, expostas de forma tão sedutora que nem a “popular” Nova Iorque ousaria: ao som de piano, tocado por uma bela jovem chinesa, que às 10h da manhã vestia um longo vestido preto.
Vazios, os shoppings estavam ali, lindos, assustadoramente lindos. Naquele contexto, a pergunta era simples: onde estão os endinheirados para manter aqueles gigantes? Seriam eles os mesmos que controlam os canais de comunicação estatais e que determinam a censura a 10% dos sites em Beijing?
A economia do país vai bem, com invejáveis taxas de crescimento de 10,8%, em contrapartida aos nossos singelos quatro por cento. Nas ruas das cidades grandes, o trânsito de pessoas nas calçadas de áreas comerciais nem se compara ao volume de gente enfurnada em centros de compras. Os prédios que trazem duas, três, quatro ou mais escadas rolantes abaixo do solo, todos em vãos abertos, dando acesso a andares que parecem feiras, são, no mínimo, intrigantes.
Enquanto isso no campo, o esvaziamento. A China é o país como a maior migração da zona rural para a cidade. A agricultura e os produtos manufaturados disputam as maiores fatias do mercado. Mas as condições de vida no campo fazem com que as pessoas busquem oportunidades na cidade.
As contradições chinesas, assim como as brasileiras, parecem não caber mais no tamanho de seus territórios. Na China estão seis mil anos de história. Ao mesmo tempo em que ainda há na cultura chinesa a influência de valores como família, moral e autodomínio, o individualismo ocidental avança em velocidade supersônica. O país é superlativo em todos os sentidos. Sobretudo em suas contradições, que, independentemente, de políticas de bom comportamento e reformas em fachadas, saltam aos olhos no momento em que todo o mundo se volta para o interior das Grandes Muralhas.
* Renata Camargo é jornalista, especializada em Desenvolvimento Sustentável e Direito Ambiental, e repórter do Congresso em Foco. Esteve na China em outubro de 2007, durante viagem de sete meses por 17 países.
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