Bajonas de Brito Júnior *
Os jornalistas e analistas políticos das mídias tradicionais se esforçam para acertar, no chute, a origem do fenômeno. Uns dizem que foi o sistema de “mobilidade urbana” (a expressão virou moda, depois de servir às empreiteiras para moverem muito dinheiro dos cofres públicos), porque o maior problema são as passagens no país inteiro. Outros afirmam que foram as obras da Copa, fala-se também da situação da saúde e da educação e há quem jure que a causa de tudo foi a corrupção (foi o que disse anteontem ao vivo Jorge Pontual, na Globonews, direto de New York como sempre, insistindo que tudo – passagens, obras da Copa, saúde, etc. – está como está por causa dos corruptos).
A esse rosário juntam-se ainda a PEC 37, o Marco Feliciano no Congresso (que aprovou a Cura Gay em meio à onda de protestos no país, tão petulante está o fundamentalismo evangélico), a inflação e o tomate, as repressões contra os índios, como vimos recentemente no Museu do Índio no Rio, e o assassinato de um índio em desocupação comandada pela Polícia Federal. Na verdade, o que é mais fácil do que apontar causas para a revolta popular no Brasil hoje? Não é uma ou outra barbaridade, é quase tudo que está submerso no caos.
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De uma coisa, porém, a grande mídia tem se esquecido de mencionar: a própria mídia brasileira e suas manipulações grosseiras. Mas isso já seria pedir demais, não? O fato é que até a quinta-feira 13, as maiores redes repetiam em uníssono que as cidades não podiam ficar reféns de uns poucos vândalos e baderneiros radicais. Mas, de repente, dois fatos novos vieram espalhar o pânico nas edições: as tentativas fracassadas do Datena, ao vivo, de manipular a opinião contra os manifestantes e a pesquisa do Datafolha mostrando a maioria da população favorável aos manifestantes. Esses dois acontecimentos tiveram lugar na noite do dia 13.
Até aquele momento, o horror aos vândalos era o sentimento comum que unia o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, o prefeito da cidade de São Paulo, Fernando Haddad, e, para além deles, toda a classe política do país e a mídia. O comentarista de Globo News em São Paulo, no início da noite do dia 13, repetia sem cessar “o Brasil é um país da paz, e é muito preocupante assistir aos atos de violência dos manifestantes”. No mesmo momento, o ministro da Justiça, o quase sempre invisível Cardozo, havia acabado de dar declarações raivosas sobre a necessidade do combate ao vandalismo. Mas aí veio a hecatombe: a maioria da população estava a favor dos manifestantes, mostrava o Datafolha.
E pior: açulada pelos discursos sanguinários de Cadozo, Alckmin e Haddad, e o silêncio omisso de Dilma, a PM de São Paulo foi para cima com métodos para lá de fascistas: atirando balas de borracha no rosto dos que insistiam em filmar (Só a Folha de S. Paulo teve dois jornalistas feridos desse modo), distribuindo golpes de cassetetes a torto e a direito, lançando bombas de gás lacrimogêneo a granel, espancando expectadores, ciclistas, moradores, adolescentes, mulheres e prendendo manifestantes ou quem estivesse mais à mão. Mas o tiro saiu pela culatra: no dia seguinte ficou evidente que a população rejeitava os métodos policiais e se compadecia com as agressões sofridas pelos estudantes. O efeito moral das bombas lançadas pela PM de São Paulo foi o de desmoralizá-la.
PublicidadeCom isso, três centros de domínio tradicionais no Brasil, a polícia, a mídia e a política, se viram de repente privados do seu poder mágico de conduzir a boiada. E essa privação foi profunda. Os políticos não conseguiram refazer os seus discursos porque, como o samba de uma nota só, todos eles se apoiavam numa única premissa: alguns partidos políticos (leia-se Psol e PSTU) estariam por trás dos panos conduzindo os protestos. Mas logo ficou claro que isso não era possível, uma vez que as pesquisas mostraram que a maior parte dos manifestantes não tinha partido, foi mobilizada pela internet, e trazia para as ruas bandeiras sociais próprias. Perplexos da quinta-feira 13 até o domingo 16, começaram a refazer o discurso com declarações, nada convincentes, sobre a importância de ouvir a voz das ruas, o direito democrático de manifestação, a importância de os jovens participarem em um movimento democráticos, etc. Uma fraseologia feia e antiquada, ainda pior (piu cafona, como dizem os italianos) do que o jargão tradicional. Dilma falou, para elogiar, entredentes, o movimento e o direito à manifestação.
A polícia ficou alarmada com o apoio da população aos estudantes e, por isso, inteiramente impotente enquanto instituição, com a nova identidade com que foi carimbada de uma vez por todas pela opinião pública: violenta e brutal. Sua repetição clara das práticas da ditadura militar foi apontada e unanimemente repudiada. Não foi mais através da televisão e de seus âncoras escolados que a população buscou informação sobre a violência policial, mas nos vídeos do Youtube e do Facebook. A polícia então — freada pelos políticos e desprezada pela população e, pior, intimidada com a disposição dos manifestantes que, ao invés de se acovardarem com o terror policial, foram às ruas ainda em maior número e com mais fúria — se viu paralisada.
No Rio e em São Paulo houve relatos de policiais encurralados e cercados, literalmente, emparedados pelo movimento. No prédio da Assembleia Legislativa do Rio, o palácio Tiradentes (que um especialista da COPPE-UFRJ, escalado para comentar na Globo News na quinta-feira 13, afirmou ser do século XVIII, quando na verdade foi inaugurado em 1926, no lugar em que antes havia o prédio da Cadeia Velha, essa sim do século XVIII), um grupo de policiais ficou cercado. Parece que de lá de dentro, na segunda-feira, partiram tiros com munição real que feriram um manifestante negro. Em outro parte da cidade, um grupo de PMs foi cercado e se refugiou nos fundos de uma agência bancária.
A mídia, desarmada com a atitude da população (ou seja, dos expectadores que “dão o Ibope”) de apoio aos manifestantes e de repulsa aos policiais, teve de se ajeitar ainda no ar. Datena, depois de duas tentativas de manipular a enquete feita ao vivo (cuja aberração chegava ao ponto de colocar o Não antes do Sim, e já atribuir um ponto ao primeiro antes de começar a pesquisa), lançou mão da reviravolta retórica mais repulsiva da história (já bem repulsiva) da mídia televisiva brasileira. Vale reproduzir:
“Fazia muito tempo que não via uma manifestação democrática e pacífica assim. É o povo. O povo está descontente. Eu falei que ninguém queria aumento. Entre bandido e polícia, prefiro a polícia. Entre povo e polícia, prefiro o povo”.
E a mídia foi obrigada a fazer o mesmo em todas as emissoras. O discurso passou a ser favorável aos manifestantes. Mas isso não se fez sem que fosse posta no ar uma reinterpretação dos protestos. Nessa, a tentativa mais constante é de atribuir as mobilizações à classe média irritada com a corrupção, ou seja, se trataria de recuperar o espectro da classe média de direita fazendo dela o agente principal das manifestações. Os jovens rebeldes se transformaram em bons filhos de família, bem comportados, que estariam tendo sua primeira lição de democracia, salutar e necessária. Mas isso passa longe da verdade.
Primeiro, a mídia não quer perceber que, de certa forma, a quinta-feira 13 marcou o seu enterro. A comunicação pública se cristalizou em torno do Facebook e do Youtube (a proibição dos dois pode ser o objeto da próxima PEC ou do próximo projeto de lei a ser aprovado na Comissão dos Direitos Humanos de Marco Feliciano, cuja falta de tato político chegou ao extremo com a aprovação da Cura Gay durante os protestos), dos sites e dos blogs. A TV, aberta ou por assinatura, se tornou supérflua no que diz respeito ao acompanhamento do movimento e todos os seus desdobramentos. Ainda que traga enormes limitações culturais e intelectuais (como a amizade administrada e as relações controladas no mundo virtual), o Facebook foi o meio (a mídia) sem a qual os protestos não teriam nunca alcançado as proporções que atingiu.
O ponto final é a questão que se liga aos pontos anteriores, da representação ou “personalidade jurídica” do movimento. Se fosse possível dizer, seríamos obrigados a falar em uma “personalidade jurídica anônima e dispersa”, cuja força está precisamente nisso. As forças políticas tradicionais (e os partidos que estão à frente delas, o PT e o PSDB) não têm por onde pegar o movimento, porque não encontram liderança que possam cooptar. Não há como fazer ofertas, prometer cargos, acenar com falsas promessas. É o mesmo problema da polícia: não há como prender lideranças em um movimento que tem muitas? E, talvez, uma das repulsas do movimento seja justamente à política das lideranças, aos políticos com influencia, àqueles que são as caras eleitas pelos ruralistas, banqueiros, empresários, empreiteiros, para tocarem seus interesses.
A inesgotável multiplicidade de eventos e relações permitidas pelo virtual, dentro do qual cresceu a maior parte da geração que hoje se manifesta, ensinou que a exclusividade que serve de auréola às lideranças tradicionais não mais seduz. Ao saírem da frente da tela para as ruas e praças, ou seja, ao entrarem em “contato presencial” com uma massa viva, isso já oferece uma satisfação libidinal que dispensa o desejo de ser liderança. Sequer faz sentido mais essa figura.
Essa nuvem de anônimos escapará de todas as tentativas da política tradicional, da mídia e da polícia de enquadrá-los. Ela é fluida demais para ser quebrada, cooptada, encarcerada, dividida ou conduzida. A não ser através do fechamento do Facebook e do Youtube (como se propôs na Turquia por esses dias). Mas, na direção inversa, a política tradicional, a mídia corporativa e a polícia truculenta não têm como escapar ao cerco da massa de anônimos.
* É doutor em Filosofia, autor dos livros Lógica do disparate, Método e delírio e Lógica dos fantasmas. É coordenador da revista eletrônica Revista Humanas e professor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).