Segundo Ato
Sofá da Hebe. Agora os personagens estão de frente para a platéia. Sentadinhos no sofá branco da Hebe. Entra Hebe.
Hebe (fala pra platéia): Boa Noite Brasilzãaaaaaaaaaaaaaao! Lindos! Fofos! Ai, gente… vocês não estão cansados? Essa violência, sequestros relâmpagos (sequestraram minha empregada,vocês acreditam?) Ai,gente! Tô cansada de fila nos aeroportos, cansada dos políticos corruptos, que desaforo, gente! Nós que pagamos impostos, e que geramos empregos, agora somos reféns dentro das nossas próprias casas, e sem empregada! Que País é este? E os nossos sonhos? O que fizeram dos nossos sonhos…. gente? Aiii, Cansei! Vocês não cansaram? E vocês, gracinhas? Cansaram? (olha pro sofá….) Lindos! (aperta a bochecha de um por um. E faz a apresentação): Minha platéia maravilhoooooosa, gente fofaaaa. Amo vocês! Hoje à noite temos quatro artistas brasileiríssimos de primeira grandeza… gente que vale a pena viver, gente linda de viver! Dois são poetas, rapers,e escritores. Essas gracinhas! Eles não são uma gracinha,gente? (ouvem-se assobios da platéia, gritinhos,suspiros… Hebe aperta a bochecha deles novamente). Esse aqui nem preciso apresentar… lindo! Nosso legítimo representante do Capão Redondo, nosso Capão! ÊEEE Brasilzão! Um beijo Capão, vocês são lindos e fofos! Beijos Jardim Ângela! Com vocês: Ferraz! (gritinhos na Platéia)… lindoooooooooooo!!!!!!!!!!!!!!!!
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Bunda 1 (ou Ferraz ,que faz um gesto com os punhos cerrados): E aí,Hebe,firmeza?
Hebe: Lindooooooooooo!!! E essa gracinha que você trouxe no programa, Ferraz? Quem é? Apresenta pro Brasil!
Bunda 1: Esse é o MC Asshole… poeta, rapper, e agitador do movimento lá no Capão.
PublicidadeHebe: Fala alguma coisa pra gente,lindinho!
Bunda 2 (ou MC. Asshole): Tento e invento/ o meu sentimento é só o momento/
Hebe e Platéia vão ao delírio. Em seguida Hebe apresenta os outros dois Bundas.
Hebe: Aiiiiiii, gente, quanta emoção! Quanto talento! Esse aqui é um momento (ih, to rimando, geeeente! Fiz um rap!) histórico da televisão brasileira. Do lado desses dois artistas genuinamente brasileiríssimos, coisa nossa (lindos!) temos os antropólogos Hermano Viena, e…
Bunda 4 corta Hebe: Euzinha, Shirlei Lounge!!
Hebe: Gracinha!
Bunda 3 (ou Hermano Viena): Boa noite,Hebe. É um prazer estar aqui no seu programa. O que eu poderia dizer mais? Ferraz e Mc Asshole são coisa nossa, né? (brincando com Hebe).
Hebe: Gracinhas!
Bunda 3: Não só gracinhas, Hebe. São geniais! Muito mais! Não tenho dúvida nenhuma: a novidade mais importante da cultura brasileira na última década foi o aparecimento da voz direta da periferia falando alto em todos os lugares do país.
Bunda 2: Tento e Invento/ meu sentimento/ Uhhhuuu/ o movimento
(assobios,gritinhos histéricos da platéia)
Bunda 3: (irritado): A periferia,Hebe, se cansou de esperar a oportunidade que nunca chegava, e que viria de fora, do centro.
Hebe: Noooooooosssa!!! Também Cansei! Viram como ele é inteligente! Fofo!!!
Bunda 3: A periferia não precisa mais de intermediários para estabelecer conexões com o resto do Brasil, e com o resto do mundo. Antes, os políticos diziam: “vamos levar cultura para a favela.” Agora é diferente, Hebe: a favela responde: “Qualé, mané! O que não falta aqui é cultura! Olha só o que o mundo tem a aprender com a gente!”
Bunda 2: Tento e invento/ o meu sentimento é o momento UhhuuUUU
(platéia vai ao delírio)
Hebe: Num é gênio? Aiiii, pode minha geente?
Bunda 3: Na maioria das periferias onde chego, Hebe, em todas as cidades brasileiras, mesmo bem longe das capitais, encontro grupos muitíssimo bem organizados, com propostas de ação cultural cada vez mais supreendentes…
Hebe: Sabe que é verdade,lindo? Netinho de Paula também faz um trabalho maravilhoooooooso lá na Cohab de Itaquaquecetuba. Ele veio aqui e deu uma entrevista fantástica. Que talento!
Bunda 3: Não é só aqui. E não é só em I-ta-que-ra que o Netinho atua, Hebe. Por exemplo: a Fundação Casa Grande, de Nova Olinda (região do Cariri, interior do Ceará), com suas equipes de rádio e TV formadas por crianças e adolescentes; a ONG Altofalante, do Alto José do Pinho, Recife, com suas lições de rádio e hip hop; o Instituto Oyá, de Salvador; a Companhia Balé de Rua, de Uberlândia… Há muito mais, Hebe!
Bunda 2: O meu sentimento/ eu mesmo invento UhuuUUU
(A platéia quase enlouquece)
Bunda 3: Do outro lado, Hebe, assistimos ao nascimento de indústrias de entretenimento popular que já produzem os maiores sucessos musicais das ruas de todo o país sem depender de grandes gravadoras, e sem depender das grandes mídias para construir sua rede de difusão nacional. É o caso do funk carioca, do forró eletrônico cearense, do tecnobrega paraense, do arrocha baiano, do lambadão cuiabano, da tchê music gaúcha. Todas essas músicas são produzidas na periferia para a periferia, sem passar pelo centro.
Hebe : Aiii,geente!! O tecnobrega paraense é tudo de bom! E você,Ferraz… tão caladinho? Fala com esse Brazilzãaaaoo maravilhoso que te adoooora!!
Bunda 1. Ferraz: Nóis na fita, Hebe. Que viemos dos gueto da realidade, e que somos diferente das estrelinha que destroem a cultura se vendendo pra mídia,tá ligado? São Eminem, Akon, Snoop Dogg (antigamente não era), Ne-Yo, Chris Bown, 50Cent, JaRule e Keli Keee. Esses artistas não levam conteúdo nas letras…
Bunda 2: Tento e invento/UuHHuUUU a minha existência num só momento
Bunda 4: Não levem nenhum conteúdo, Hebe. Quem tem conteúuuudo (se insinua, manda um beijo pro mano) é o Ferraz! Quer dizer, concordo com ele!
Hebe: É verdade que vocês discriminam os homossexuais, Ferraz?
Bunda 4: Mentira,Hebe! Eles tem conteúuuuudo! São o máximo! ( Mano Ferraz faz um muchocho, olha pro outro lado)
Bunda 3: O ideal da cultura Hip Hop não é sexo, droga e violência. E´ o grito dos desfavorecidos (olha pro lado e vê – com alívio – que o Bunda 2 está distraído – é a voz do povo, é aquilo que você escuta e representa com fins de melhorar … de melhorar … estamos falando de um caráter revolucionário,Hebe!
Bunda 1: Firmeza,Mano.
Bunda 3: O centro apenas reclama da sua falta de qualidade musical, mas não pode mais dizer que o povo está sendo enganado por uma indústria cultural. Sabe por quê, Hebe?
Bunda 2: O meu sentimento/ é o momento/ UhhuUU / a poesia e o movimento (acrescenta uma rebolada à coreografia acompanhado do Bunda 4) – a partir de agora toda vez que o Bunda 2 falar seus versos, Bunda 4 o acompanhará na coreografia
Bunda 1: Se liga,Hebe! Porque eles não fazem idéia do que está rolando na periferia. Mc Asshole é a prova da nossa resistência, tá ligada?
Platéia: Lindoooooooooooooooooooooo!!!!!!!
Bunda 3: O tecnobrega paraense, por exemplo, desenvolveu um novo modelo de negócios fonográficos que não precisa mais de gravadoras para se desenvolver. As músicas saem direto dos computadores dos estúdios periféricos e vão parar nos camelôs… e no circuito das festas de aparelhagem (que animam as noites de fim de semana dos subúrbios de Belém, com suas toneladas de equipamento de som e luz). De repente o palco vira um inferno de barulho tecnobrega e luzes desconexas … até que – aos poucos – voltamos ao discurso do antropólogo, Bunda 3.
Bunda 3: Laptops gravam tudo o que estiver tocando e os dançarinos podem comprar o CD – com tudo que acabaram de dançar – na saída da festa. O aparecimento de usos locais para as novas tecnologias é cada vez mais veloz.
Hebe: O tecnobrega paraense é tuuuuuuuuuuudo de bom!!! Novamente toca um Tecnobrega paraense,dessa vez Shirley Lounge (ou Guii, bunda 4) dá um show acompanhado de Mc Asshole que se limita a fazer a mesma coisa de sempre…
Bunda 4 (Shirley Lounge): Sabe, Hebe…. (imediatamente é cortado por seu dono, a Bunda 3): Por favor,Shirley.
Bunda 3 (continua): Humm, como eu dizia, o pano de fundo para essa grande transformação das periferias não é apenas brasileiro, mas reflete uma tendência global. A população urbana do mundo hoje é maior que toda a população do planeta em 1960.
Hebe (interrompe): Os pontos de ônibus estão cada vez mais cheios, néeee gente?
Bunda 3: O número de habitantes das grandes cidades cresceu vertiginosamente num período em que a economia da maioria desses centros urbanos estava (e continua a estar) estagnada, sem gerar novos empregos. Mesmo assim, a migração para as cidades não parou, e hoje – pela primeira vez na história da humanidade – há mais gente vivendo em cidades do que no campo.
Bunda 1, 2, 4, Hebe e platéia: Oóóóóóóóóóóóóoóóóóóóóóó!
Bunda 3: Calcula-se que mais de um bilhão de pessoas vivam atualmente em favelas de todos os países .Os “chawls” da Índia, os “iskwaters” das Filipinas, os “baladis” do Cairo, as “colônias populares” do México, as “vilas” de Porto Alegre, os “aglomerados” de Belo Horizonte, e assim por diante, Hebe.
Hebe: Nooooooooosssa! Pra mim é tudo pobre, favelado.
Bunda 3: Cerca de metade dessa população favelada tem menos de vinte anos. Quase todo mundo com trabalho informal.
Hebe: Vai virar tudo bandido, que horrooooooooor.
Bunda 3: É muita gente jovem. Governos e grande mídia não sabem o que fazer diante dessa situação. Muitas vezes não sabem nem se comunicar com essa “outra” população…
Bunda 2: Tento e invento/ a minha existência é só momento/ é o sentimento
Bunda 3: O mais grave, Hebe: eles passam a ser invisíveis para as estatísticas oficiais. Essa gente vai fazer o que com toda sua energia? Produzir a catástrofe anunciada? É só isso que lhe resta fazer? Sumir do mapa para não causar mais problemas para os ricos?
Hebe: Boa idéia, eles podiam sumir do mapa!
Bunda 3: Também acho, Hebe. Se corrige, pigarreia,e continua: Isto é, em vez de sumir, as periferias resistem – e falam cada vez mais alto, produzindo mundos culturais paralelos… para o espanto daqueles que esperavam que dali só surgisse mais miséria sem futuro, Hebe.
Hebe: Aquela infeliz da minha empregada foi sequestrada, e por causa dela, atrasei na manicure. Pode?
Bunda 3: A própria idéia de inclusão cultural, Hebe, tem que ser repensada – ou descartada – diante dessa situação. Quando falamos de inclusão, partimos geralmente da suposição de que o centro tem aquilo que falta à periferia. Como se a periferia não tivesse cultura.
Bunda 2: Tento e invento/ O meu sentimentoUUUhhUU / é o momento do sentimento
Bunda 4 (Shirley Lounge): Posso falar?
Bundas 1, 2, 3 e Hebe, e Platéia em Uníssono: Cala a boca, bichinha!
Bunda 3: É como se a periferia fosse um dia ter (ou como se a periferia almejasse ter, ou seria melhor que tivesse) aquilo que o centro já tem . É como se as novidades culturais chegassem exclusivamente pelo centro, ou fossem criadas no centro, e lentamente se espalhassem – à custa de muito esforço civilizador – em direção à periferia.
Bunda 1: Por isso que não saio do Capão, Hebe! Trouxe uns bonés para vender, tem camiseta, tênis… chaveiro…
Hebe: Olha só gente… Mano Ferraz tem uma grife que é um luxo! Quem vai querer (a platéia vai ao delírio.Ela joga bonés, e camisetas).
Bunda 1: Tem mais, Hebe: quem quiser me chamar pra shows e palestras é só ligar 98765433 ou ir direto no meu site wwwnoisnafita.com… No site, o mano vai encontrar meus livros, pensamentos iluminados, exemplos de vida pra molecada … Cds e as noticias da realidade, tá ligada? Porque os burguês não conhece a realidade. A realidade é nóis na fita! Também tem o lance das consultoria na área de segurança pública… e os workshops na Ong Bagulho Nosso – onde o Treta aprende a fazer cara feia e rimar ao mesmo tempo, tá ligada? Mostra o trampo pra Hebe aí, Mano!
Bunda 2: Tento e invento/ o sentimento/ UUUhhUU minha existência/ num só momento
(platéia enlouquecida)
Bunda 1: Se ligou,Hebe? O grito das quebrada. Também trampamo com roteiro de cinema e poesia concretista. Se os playba quiser me contratar pra discotecar na festa deles, é nóis na fita, tá ligada? Luciano Hulk é nosso sócio na Ong. Não tem mais pra ninguém da literatura, Hebe? Já leu meu novo livro? Os mano da USP se ligaram, tá ligada? … burguês é burguês. Nóis é nóis. Esse mês fizemos parceria com o Mano Evo, e se precisar entregamos o bagulho delivery. Tá ligada, Hebe?
Bunda 3 e Hebe vestem um boné da grife Ferraz
Hebe: O Ferraz não é um luxo,gente!
Bunda 3 (Ajeita o boné para trás,e prossegue a preleção ): Sabe,Hebe,quando viajo pelo Brasil, fora das zonas ricas e oficiais do eixo Rio-São Paulo, fico sempre com a seguinte impressão: o minúsculo país cultural oficial, mesmo o retratado nos programas mais “populares” da mídia de massa…
Bunda 1 (Ferraz): Agora é nóis na fita, Hebe! Na minha lojinha, além dos gorro e dos acessório pros mano,você encontra desde rolimã pra skate até um cabeleireiro afro pra dá um trato no visual da molecada , academia de ginástica … e os risólis que a dona Maria deixa lá na base da consignação. Agora vamos terceirizar com a Universal e todo sábado vai ter um pastor de plantão na loja, tudo isso pela comunidade, tá ligada? Em três vezes sem juros e parcelado no cartão, também aceito cheque e…
Bunda 3 (meio nervoso,cortando Mano Ferraz, pigarreia): Hãhãaa…. Como eu dizia, Hebe, esse país oficial parece uma pequena e claustrofóbica espaçonave, em rota de fuga através de buracos negros, cada vez mais afastado do país real, da economia real, da cultura da maioria. Da gente, Hebe!
Bunda 1 (Ferraz): Cheque pré-datado, e ticket-refeição. Aceitamos tudo, menos ficar do lado de fora! Deus é dez e a periferia é o centro. A gente não vamos mais ser fantoches do poder!
Bunda 3: As periferias das cidades inventaram novos circuitos culturais (dá uma ênfase especial à palavra “inventaram”) com uma velocidade impressionante, e novas soluções econômicas – por mais precárias ou informais que sejam – para dar sus-ten-ta-bi-li-da-de para essas invenções.
Hebe : O problema,lindo… ele não é lindo, platéia? Você é liiinndo,fofo! O problema é quando elas INVENTAM de ser sequestradas, ai que horror! Gente, Sequestraram minha empregada!
Bunda 2: Tento e Invento/ o sentimento/ a minha existência é o momento
Depois da dança com Mc Asshole (nessa dança Mc Asshole é encoxado pela bichinha)
Bunda 4: Vou falar! Seguinte,gente: As peruas da Daslu querem que a retirante nordestina ande com vestido de chita, e não com shortinho e top de lycra, como manda a cena fashion das periferias brasileiras… Atitude é tudo! Pronto,falei!
Hebe: Acabou,produção? Aiiii, que peninha…. No próximo bloco, teremos Ivete Sangalo e a ministra do Meio Ambiente? É isso, produção?
Black Out