A decisão de entregar toda a coordenação política – no Congresso e no governo – a políticos conservadores, e de partidos de posições políticas sociais-liberais, não é uma atitude neutra, voltada apenas para a maior eficiência operacional do governo, nem desprovida de implicações políticas. Pelo contrário, ela tem duplo significado: o de reafirmar a coalizão de governo e o de dar maior flexibilidade aos princípios anteriormente sustentados pelo governo.
Reafirmar o compromisso com a coalizão é uma forma simbólica de valorizar a palavra e reiterar o desejo do presidente de compartilhar a gestão do governo com seus aliados. É elogiável do ponto de vista do método, de fazer e cumprir acordos. Mas, do ponto de vista do mérito, é inquietante e preocupante, porque os interlocutores têm projetos e visões diferentes das apresentadas pelo presidente na eleição.
O presidente Lula, especialmente no segundo turno da eleição, apresentou um discurso que sinalizava para a retomada de uma agenda mais em sintonia com os movimentos sociais, com a crítica às privatizações e à reforma da Previdência Social, além da ênfase no crescimento econômico, na geração de emprego e na distribuição de renda. A operacionalização desses temas deveria ser entregue a pessoas e partidos com pensamento semelhante ao do presidente da República, sob pena de mudança e desvirtuamento da vontade manifestada nas urnas.
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Será que com o líder do governo na Câmara, deputado José Múcio Monteiro (PTB-PE), com o líder do governo no Senado, senador Romero Jucá (PMDB-RR), com a líder do governo no Congresso, senadora Roseana Sarney (PMDB-MA) e com o novo ministro das Relações Institucionais, o empresário Walfrido dos Mares Guia (PTB-MG), respondendo pela interlocução do governo com o Congresso, com os partidos e com os entes federativos os compromissos de campanha se sustentam?
Mesmo supondo que as privatizações e a reforma da Previdência não se concretizem, já que as principais estatais estão sob controle de ministérios comandados pelo PT e a Previdência deve ficar mesmo com o PDT, quem garante que outras reformas mais nefastas não serão consumadas, como a trabalhista?
É natural que num governo de coalizão os partidos que o integram disputem o conteúdo das políticas públicas. Mas o afastamento da coordenação política e o esvaziamento a que foram submetidos os partidos com vinculação programática aos postulados da eleição é preocupante. O PT reduziu sua participação e perdeu complemente a interlocução política/institucional no governo. O PDT terá participação limitada pelos problemas naturais da sua pasta, a Previdência Social. O PSB e o PCdoB perderam um ministério cada.
Portanto, o temor de retrocesso em temas centrais, como os direitos trabalhistas, não é de todo infundado. Alguns fatores combinados indicam uma tendência nessa direção. O primeiro foi a matéria da revista Exame de fevereiro, edição 887, com a chamada "O Congresso quer as reformas", que traz o resultado de uma pesquisa feita com 533 dos 594 parlamentares (513 deputados e 81 senadores) sobre a necessidade das reformas trabalhista, que revela a opinião favorável de 79% dos congressistas – clique aqui para ver texto sobre o tema no portal do Diap na internet.
O segundo fator está relacionado com a entrega da liderança do governo na Câmara a um parlamentar com compromisso histórico com a “modernização” da CLT, que, inclusive, foi relator da proposta de flexibilização da legislação trabalhista do governo FHC.
O terceiro tem sido a resistência de partidos da base para efetivação da leitura da Mensagem Presidencial nº 389, enviada em agosto de 2003, para a retirada do Projeto de Lei nº 4.302/98, que cuida da prestação de serviços e da terceirização, extremamente nocivo aos interesses dos trabalhadores.
O quarto fator foi a pressão havida para flexibilizar direitos trabalhistas na Lei Geral da Micro e Pequena Empresa, além da recente aprovação, por de mais de 300 votos, da emenda nº 3 da Super-Receita, que aniquilaria a fiscalização do trabalho, possibilitando a contratação de mão-de-obra assalariada por meio de pessoas jurídicas, as famosas PJs, negando a tais trabalhadores direitos históricos, como 13º, férias e outros. A emenda foi vetada pelo presidente da República, mas os empresários, em geral, e os donos dos veículos de comunicação, em particular, estão articulando a derrubada do veto, inclusive com apoio de líderes do governo.
Nesse cenário marcado, de um lado, pela completa saída do PT, do PSB e do PCdoB da coordenação política, e, de outro, pelo fortalecimento das forças liberais, a conseqüência natural será o aumento da importância e do desafio político do presidente da Câmara, deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP). Além das funções de chefe de poder, ele também terá a tarefa de reaglutinar as forças de esquerda para a defesa da agenda política, econômica e social dos trabalhadores nas reuniões, espaços e instâncias decisórias do governo e do Parlamento.
* Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, analista político e diretor de Documentação do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap).