Bráulio Santiago Cerqueira*
“Os principais defeitos da sociedade econômica em que vivemos são a sua incapacidade para proporcionar o pleno emprego e a sua arbitrária e desigual distribuição da riqueza e das rendas.” (Keynes, 1936, p. 253)
Em 1936, John Maynard Keynes, em meio à Grande Depressão dos anos 1930, publicava a “A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda”. Diferentemente da maior parte dos economistas da época (e de hoje), Keynes não preconizava, em contextos recessivos com alto desemprego, cortes de despesas públicas, que fragilizam ainda mais a demanda, ou elevações de juros, que ao invés de estimular a poupança aumentam o custo do capital.
Suas diretrizes gerais para a política macroeconômica incluíam: tributação progressiva sobre a riqueza e a renda, de modo a promover mais distribuição e mais mercados; taxas de juros baixas, próximas de zero, afim de baratear o custo do capital desincentivando o rentismo; e ativação do gasto público com planejamento e coordenação dos investimentos, que além de impulsionarem a produtividade colaboram na sustentação do emprego.
Nesta segunda década do século XXI, com a emergência de níveis sem precedentes de concentração global da renda e riqueza (Piketty, 2014) e com a lenta digestão dos efeitos da segunda maior crise financeira da história, a de 2007-08, renovam-se os alertas de Keynes relativos à importância da progressividade da tributação e à necessidade da “eutanásia do rentista” em prol do investimento produtivo, da renda e do emprego.
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No Brasil, país de extremos, de um lado temos, em 2016, cerca de um quarto da população vivendo em condições de pobreza (renda per capita inferior a US$ 5,50 por dia), ou 64% de pobreza entre as mulheres negras ou pardas sem cônjuge e com filho(s) (IBGE, 2017); enquanto isso, do outro lado, convivemos com os mais altos spreads e taxas de juros bancárias do mundo gerando lucros, em 2017, da ordem de R$ 64,9 bilhões para as quatro maiores instituições financeiras.
PublicidadeMais do que em qualquer outro lugar, sobressai por aqui o sentido de urgência de políticas redistributivas, seja do lado da tributação seja do gasto público, e de maior concorrência e regulação bancárias. Para ficar em dois exemplos anedóticos relacionados à tributação: nosso país, juntamente com a Estônia, é um dos poucos no mundo em que lucros e dividendos distribuídos a acionistas são completamente isentos de imposto de renda (Gobetti & Orair, 2016); atualmente também não há cobrança de impostos sobre a propriedade de jatinhos, iates e helicópteros. Oportunamente, Anfip e Fenafisco apresentaram no mês passado propostas para atacar estas e outras iniquidades de nosso sistema tributário.
A crise econômica brasileira e as políticas de austeridade implementadas desde fins de 2014 também trouxeram para o centro de nossos “defeitos” o alto desemprego. Depois de mais de três anos de “ajuste” os resultados são alarmantes. A compressão da despesa pública aliada ao aperto monetário (até outubro de 2016) e creditício não aliviaram a situação fiscal, pelo contrário, a queda de receitas e o elevado montante de juros pagos pelo setor público elevaram a dívida líquida de 32,6% do PIB em 2014 para 51,6% em 2017.
O mais grave, no entanto, é que a austeridade, ao fragilizar o mercado interno, estimulou a explosão do desemprego. Em relação aos empregados, a flexibilização de direitos imposta pela reforma trabalhista os vem atirando na informalidade.
A recuperação do emprego, bem como a melhoria das contas públicas, passa por políticas governamentais ativas de crescimento econômico, e não apenas em favor da “confiança” e do lucro dos bancos. Regras fiscais, por exemplo, devem combinar previsibilidade e flexibilidade em momentos de crise, do contrário constrangem a sustentação da atividade econômica, tal qual nossa regra de primário desajustada ao ciclo e agora o teto de gastos federais.
A política creditícia, por sua vez, precisa atuar na contramão da recessão, isto é, ao invés de racionamento (como hoje na habitação e no BNDES às voltas com devoluções de recursos ao Tesouro) e de spreads e taxas de juros mais altas, renegociação favorável das dívidas privadas, que deve abarcar famílias e não apenas empresas, e redução do custo do crédito para facilitar a desalavancagem na crise.
Outra macro linha de ação em favor do emprego diz respeito ao investimento público, que em 2017, infelizmente, alcançou o menor patamar em 50 anos. O problema, dentre outros, repousa na complementaridade entre investimento público e privado: ao recorde negativo do investimento público em 2017 correspondeu a mais baixa taxa de investimento do conjunto da economia desde o início da série de Contas Nacionais Trimestrais do IBGE, apenas 15,6% do PIB (IBGE, 2018).
A reversão disso passa, novamente, por regras fiscais mais adaptadas tanto ao ciclo como às especificidades das despesas plurianuais de capital, mas também pelo reconhecimento, no momento de crise institucional porque passamos, de que o combate à corrupção não pode se confundir com a criminalização de todo planejamento e do investimento, seja em infraestrutura, indústria, ou científico-tecnológico.
Antes da Grande Depressão dos anos 1930, da ascensão do fascismo e da II Guerra Mundial, Keynes, por meio de uma paródia da teoria neoclássica do bem-estar, chamou atenção para os riscos da desconsideração dos dissabores da “multidão” derrotada no dia a dia dos mercados livres e desregulados:
“Se levarmos a sério o bem-estar das girafas, não devemos menosprezar o sofrimento das de pescoço mais curtos, que morrem de fome, ou das folhas doces que caem no chão e são pisadas na luta, ou a superalimentação das de pescoços compridos, ou o mau-olhado de angústia ou cobiça agressiva que anuvia os semblantes suaves da multidão.” (Keynes, 1926, p. 118).
Antes que seja tarde, é hora de parar de menosprezar os sofrimentos de nossa população e atuar decidida e realmente no sentido de eliminá-los.
*Bráulio Santiago Cerqueira é mestre em Economia, auditor federal de Finanças e Controle e secretário executivo do Unacon Sindical.
Referências
GOBETTI, S.W. & ORAIR, R.O. “Tributação e distribuição de renda no Brasil: novas evidências a partir das declarações tributárias das pessoas físicas.” International Policy Centre for Inclusive Growth, Working Paper n. 136. Brasília: IPC, fev. 2016.
KEYNES, J.M. (1926) “O fim do laissez-faire”. In: SMERECSÁNYI, T. (org.) John Maynard Keynes, economia. 2a edição. São Paulo: Ática, 1984.
____. (1936) A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda. 2ª edição. São Paulo: Nova Cultural, 1985. (Os Economistas)
PIKETTY, T. O capital no s[éculo XXI. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2014.