Pressionado de um lado pela carência de pessoal e do outro por graves dificuldades financeiras, alguns estados brasileiros começaram a terceirizar a fiscalização agropecuária. Trata-se de “um caminho perigoso”, alerta o engenheiro agrônomo Maurício Porto, que no último dia 25 foi reeleito presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais Federais Agropecuários (Anffa Sindical).
Formado pela Universidade Federal de Goiás e funcionário do Ministério da Agricultura há 37 anos, ele explica, na entrevista a seguir, por que a experiência internacional desaconselha tal saída.
Leia também
Maurício Porto critica também a falta de sensibilidade do governo federal, sobretudo do Ministério do Planejamento, para atender as necessidades de contratação de auditores fiscais federais agropecuários (Affas). O número de profissionais da carreira é hoje ligeiramente inferior ao de 15 anos atrás, embora desde então a produção agropecuária nacional tenha mais do que triplicado.
Por que o Anffa Sindical decidiu encomendar esse estudo à FGV?
O Ministério da Agricultura tem 157 anos de existência e, ao longo desse período todo, exerceu e exerce ainda um papel importantíssimo no desenvolvimento do país. A defesa agropecuária é um dos aspectos fundamentais da ação do ministério. No Anffa Sindical, sempre discutimos a necessidade de medir o impacto desse trabalho no PIB agropecuário, mas nunca tinha sido feito um estudo aprofundado para detectar isso. Esse trabalho encomendado à Fundação Getúlio Vargas trouxe dados bastante significativos sobre a importância do nosso trabalho. Sem os auditores fiscais federais agropecuários, o Brasil teria um prejuízo anual estimado em R$ 76,2 bilhões, considerando apenas o controle da febre aftosa, da influenza aviária e a introdução de novas pragas. Ou seja, o estudo mostra que as despesas com os auditores fiscais federais agropecuários não são gasto, mas sim um investimento absolutamente essencial. E isso tanto para a economia quanto para a segurança alimentar, ambiental e social, já que a ausência desse trabalho acarretaria sérios prejuízos ao meio ambiente, à geração de emprego e renda e à qualidade dos alimentos produzidos e consumidos.
PublicidadeConsiderando esses dados, como o senhor analisa o presente debate sobre a terceirização da inspeção agropecuária?
O país está vivendo um momento de mudanças e de discussão de novos conceitos em todas as áreas, inclusive quanto à forma que o governo pretende conduzir as questões trabalhistas e as políticas para o setor agropecuário. Nesse contexto, surgem propostas de terceirização e, em algumas situações, até de privatização de algumas atividades. Esse é um caminho perigoso. Certas atividades são próprias do Estado e devem ser exercidas exclusivamente por agente de governo concursado, que tenha poder de polícia e isenção para desempenhar o seu trabalho. Deve ser dessa forma não só porque a lei determina, mas também porque assim exigem a saúde pública, a segurança alimentar e o próprio mercado internacional. A Inglaterra tentou terceirizar a inspeção agropecuária e foi um desastre. O resultado, como todo mundo viu, foi a disseminação da doença da vaca louca [nos anos 1990 e no início da década seguinte]. A Inglaterra teve um prejuízo tremendo, perdeu mercado e voltou atrás, abandonando o plano de terceirizar essa atividade. Os países estão cada vez mais vigilantes em relação à fiscalização agropecuária. Vimos isso na Operação Carne Fraca, quando o Brasil chegou a perder mercado num primeiro momento em razão da rápida reação das nações importadoras, que não querem correr riscos nessa área. Por isso, inclusive, praticamente todos os grandes países importadores exigem que a fiscalização agropecuária seja feita por agentes de governo.
Quais as chances de se promover a terceirização da inspeção agropecuária no Brasil?
Há algumas propostas no Congresso Nacional que temos combatido. Não somos contra por sermos contra. Somos contra e oferecemos sempre opções para resolver o problema que cada uma dessas propostas pretende enfrentar. O Ministério da Agricultura está tentando fazer agora uma reestruturação da Secretaria de Defesa Agropecuária, SDA, que é a de maior volume de trabalho dentro do Ministério da Agricultura, e estamos vigilantes porque há algumas nuances que podem representar abrir mão de atribuições nossas que são exclusivas de Estado. Essas atribuições estão na Lei 10.883/2014 e em vários outros atos legais e uma de nossas intenções é incluí-las na própria Constituição Federal. Isso permitiria transformar a carreira do auditor fiscal federal agropecuário, que hoje é uma carreira de governo, em uma carreira de Estado, prevista na Constituição. Entregar a fiscalização agropecuária a uma empresa privada, que vai fiscalizar outras empresas privadas, configura uma ilegalidade e um contrassenso. É evidente que há um choque de interesses.
Já existe terceirização nessa área, no Brasil?
Só em nível de governos estaduais. Os estados de Mato Grosso, Paraná, Santa Catarina e, mais recentemente, Rio Grande do Sul aprovaram legislações permitindo que parte das atividades seja exercida por pessoal terceirizado. O Ministério da Agricultura tem consciência de que as atribuições típicas de governo devem ser exercidas por profissionais concursados. Isso vale não só para os auditores fiscais, mas também para os agentes de inspeção e os técnicos de laboratório, que integram as carreiras da defesa agropecuária e desempenham atividades complementares às nossas. Fala-se muito que o governo gostaria de terceirizar alguns serviços complementares, mas isso não está ainda muito claro. O ministério contratou uma consultoria para analisar a questão e apresentar uma proposta. A principal alegação é que não há recursos financeiros para atuar na fiscalização e na defesa agropecuária exclusivamente com agentes de governo concursados. Isso é perigoso porque pode-se abrir aí uma janela para a terceirização.
Exigir agente de governo, concursado e com autonomia de ação, não é corporativismo, e sim o único meio possível de garantir eficiência na defesa agropecuária. Isto é, assegurar que os interesses maiores da sociedade e dos consumidores finais sejam preservados. É importante lembrar que a Operação Carne Fraca, que revelou vários problemas em alguns frigoríficos brasileiros, só foi possível porque o sistema oficial existente detectou as irregularidades. Ela não teria sido possível se a inspeção fosse terceirizada.
Chama atenção o fato de o número de auditores fiscais em atividade ser o mesmo que o de 2002, isto é, de 15 anos atrás…
É até um pouquinho menor. Temos hoje pouco mais de 2,6 mil auditores em atividade, incluindo as cinco categorias que compõem a nossa carreira: médicos veterinários, farmacêuticos, engenheiros agrônomos, químicos e zootecnistas. Entre 53% e 54% desse quantitativo já preenche os requisitos de idade e tempo de serviço para a aposentadoria. Com o debate sobre a reforma da Previdência e a perspectiva de redução de direitos, muitos têm se aposentado e esse número de auditores na ativa vem caindo. É interessante lembrar que desde 2002 o parque industrial agropecuário, sujeito à fiscalização, cresceu mais de 200%. Segundo o próprio Ministério da Agricultura, em levantamento feito no último mês de junho, o deficit hoje é 1,6 mil auditores fiscais. Houve a autorização para contratar 300 médicos veterinários temporários e abriu-se concurso público para 300 médicos veterinários, que o governo pretende contratar até janeiro de 2018. Esses profissionais vão atuar na inspeção de produtos animais voltados para o mercado externo, em que existe uma defasagem grande. Mas isso envolve só uma parte do problema. Também precisamos contratar engenheiros agrônomos, químicos, farmacêuticos e zootecnistas e precisamos atentar para as demais áreas, como a inspeção de produtos de origem vegetal, os laboratórios, a fiscalização em portos, aeroportos e postos de fronteira… a gama de serviços é muito grande e apenas uma área foi contemplada. Há um pleito nosso para atender todas as áreas, nem que seja por meio de escalonamento, abrindo concurso ano a ano. Contrata 500 num ano, 500 no ano seguinte, e assim por diante, até suprir as necessidades. O Ministério da Agricultura até compreende isso e fez os encaminhamentos. O gargalo é o Ministério de Planejamento, que não aceita, sob o argumento de que faltam recursos. É uma alegação que não faz sentido porque contratar auditor fiscal agropecuário não é gasto, é investimento. Tem um levantamento que não é nosso, é da iniciativa privada, mostrando que para cada R$ 1 aplicado em defesa agropecuária, voltam R$ 64 para a economia.
Então temos um deficit de 1,6 mil, que pode quase dobrar com a aposentadoria dos auditores que já têm condições de se aposentar. Não há risco de um apagão na defesa agropecuária?
Temos alertado que daqui a pouco vamos ter uma greve branca, porque não vai ter quem realize o trabalho. O ministério sabe disso, mas o governo não tem se sensibilizado. Chegamos hoje ao absurdo de ter colegas que fiscalizam, sozinhos, 3, 4, 5 empresas. É impossível ele fazer um trabalho bem feito. Estamos falando de plantas frigoríficas que matam 3 mil bois por dia, e onde tem que ser feita a inspeção de cada carcaça. Isso já está prejudicando o próprio setor produtivo. Há empresários que fizeram investimento, aumentaram a produção e hoje têm prejuízos porque falta auditor fiscal para que ele possa comercializar seus produtos.
Conteúdo produzido pelo Departamento de Marketing e Novos Negócios do Congresso em Foco para o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais Federais Agropecuários (Anffa Sindical).