Sylvio Costa
Embora tenha 58 anos de existência, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) só na presente década projetou-se nacionalmente pela defesa de bandeiras que vão além dos interesses corporativos dos mais de 13 mil juízes – estaduais, federais, trabalhistas e militares – filiados à entidade.
Nos últimos anos, a AMB lançou várias campanhas públicas pela ética na política. Combateu o nepotismo no Judiciário. Criou uma interessante cartilha para traduzir de modo didático o que está em jogo no debate sobre a reforma política. Recorreu aos quadrinhos (saiba mais) para difundir entre estudantes noções básicas relativas aos direitos dos cidadãos e ao funcionamento da Justiça. Declarou guerra ao juridiquês, isto é, a linguagem empolada e hermética usada nos tribunais. E, atuando com desenvoltura no Congresso, engajou-se na batalha para aprovar medidas legais que possibilitem ao Judiciário trabalhar com mais rapidez e eficiência.
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Para o juiz catarinense Rodrigo Collaço, 44, que em dezembro se despedirá de um mandato de três anos à frente da entidade, a AMB apenas encarna “o novo papel do juiz”. Um papel que incluiria o esforço para ampliar a cidadania, garantindo a todos os brasileiros seus direitos fundamentais, e participação na definição de políticas públicas. “Temos hoje uma visão da magistratura muito mais voltada para o consumidor do serviço judiciário, que é o cidadão, do que para si mesmo”, afirma.
Declarando-se otimista, o presidente da AMB comemora a consolidação da democracia brasileira, que, no seu entender, “desnuda os poderes”: “Não há mais possibilidade de exercer o poder se escondendo atrás de mitos, de campanhas publicitárias”.
Mesmo assim, diz que a crise de legitimidade que atinge os políticos, sobretudo aqueles alojados no Legislativo, tende a se agravar: “A parcela de parlamentares que tem noção da crise de legitimidade não é majoritária. Imagino que ainda há, por incrível que pareça, ainda mais o que descer até chegar ao fundo do poço”. Somente depois de mais uma dolorosa descida, prevê, o Brasil assistirá à melhora da “representação legislativa” e das “práticas do Executivo”.
Rodrigo Collaço acrescenta que o Prêmio Congresso em Foco, que tem o apoio explícito da AMB, possui a “virtude incalculável” de “dar visibilidade aos parlamentares que têm consciência da crise e propostas de mudança”. Ele prossegue: “Imagino que, num momento mais grave, essas pessoas vão ter condições de expressar esse grande sentimento da população, que é o desejo de uma mudança radical nos costumes políticos no Brasil e de uma melhor legitimação do mandato popular”.
Veja a entrevista:
Congresso em Foco – Para começar, gostaria que o senhor fizesse uma síntese das iniciativas que a AMB tomou nos últimos anos com o objetivo de contribuir para desenvolver a cidadania ou aprimorar nosso sistema político.
O que a AMB procurou fazer na nossa gestão foi dar visibilidade a um trabalho que a magistratura vem fazendo desde a Constituição de 1988 que tem a ver com a participação ativa dos juízes na definição de políticas públicas brasileiras. A Constituição de 88 fez uma série de promessas ao cidadão. Prometeu saúde, prometeu educação, prometeu democracia, e boa parte dessas conquistas se deslocou de eixo e veio para o Judiciário. Então, o que nós procuramos fazer foi demonstrar para a sociedade que esse novo papel do juiz, que é cumprir a função social de ampliação da cidadania, é feito de forma silenciosa pelos juízes, que, por exemplo, procuram minorar as dificuldades das crianças que vivem em abrigo, tema de uma das campanhas da AMB. Lançamos uma campanha pela simplificação da linguagem jurídica para tornar o poder mais transparente, nos envolvemos diretamente na questão das eleições limpas, na busca de ética nas eleições, na reforma política… temas que são centrais e importantes para a sociedade e que têm a ver com o trabalho que é desempenhado pelos juízes em todo o país.
Que resposta essas iniciativas tiveram por parte da população ou mesmo dos integrantes do Poder Judiciário?
Acho que a resposta é muito positiva. Primeiro, porque o Poder Judiciário, a partir do instante em que se tornou responsável pela definição de políticas públicas e importante no país, passou a ser mais percebido pelo cidadão. Há 20 anos, ninguém chegava ao Judiciário, ninguém tinha curiosidade sobre o Judiciário. Hoje é diferente. As pessoas discutem até o critério de nomeação do ministro do Supremo, contestam decisões judiciais, aplaudem decisões judiciais. Isso é importante para nós porque revela as qualidades e os defeitos do Poder Judiciário. O que nós procuramos foi exatamente isto: interagir com a sociedade, para que essa vontade que o cidadão brasileiro tem de ter um Poder Judiciário mais efetivo, mais atuante fosse uma alavanca positiva em relação à reforma do Judiciário. O que nós procuramos foi captar essa energia da sociedade, que quer um Judiciário melhor, para transformar internamente o poder.
Quais são essas qualidades e defeitos do Judiciário? As principais, pelo menos…
Indiscutivelmente, em termos de defeito, o maior de todos, sem dúvida nenhuma, é a morosidade, as pessoas não têm condições de aguardar o tempo que as decisões judiciais demoram no país. Em todas as pesquisas que nós fizemos, a morosidade aparece em primeiro lugar como o maior problema do Judiciário. Falta de transparência também, sem dúvida, é um dado que tem de ser considerado. Do ponto de vista positivo, nós temos que ver o quanto o Judiciário avançou em pouco tempo. Nós fomos o primeiro poder a banir o nepotismo, fomos o primeiro poder a acabar com o voto secreto. Hoje, a promoção de juízes se dá por voto aberto, voto motivado. Nós somos o único poder da República que apresentou a remuneração de todos os seus integrantes para a análise do Conselho Nacional de Justiça. Hoje, a magistratura percebe o que o teto constitucional autoriza. Então, eu acho que nós avançamos em termos de transparência, temos uma mudança completa no posicionamento e no perfil dos juízes, que apresentaram vários projetos para tornar a Justiça mais ágil, e temos hoje o compromisso e uma visão da magistratura muito mais voltada para o consumidor do serviço judiciário, que é o cidadão, do que para si mesmo. Reduzimos muito o mau corporativismo e conseguimos avançar muito no bom corporativismo, que é o corporativismo voltado para o atendimento do cidadão.
Parece que hoje o grande problema em relação ao funcionamento dos poderes é a questão da legitimidade, tanto no que diz respeito ao Executivo quanto, principalmente, ao Legislativo. Muitas pesquisas, como uma recente feita pela AMB, demonstram a baixíssima credibilidade dos políticos, das pessoas que exercem cargos eletivos. Nesse campo, a situação tem mudado? Para pior ou melhor? Porque a percepção popular parece ser de que nunca foi tão ruim, né? Que nunca houve uma legislatura tão ruim, que as coisas estão piorando… Essa também é a sua percepção?
O que eu vejo é que a plenitude da democracia, que é o nós estamos vivendo, desnuda os poderes. O que a gente observa é que não há mais possibilidade de exercer o poder se escondendo atrás de mitos, de campanhas publicitárias. Acho que estamos numa hora da verdade, especialmente por causa do trabalho da imprensa. E isso atingiu tanto o Executivo quanto o Legislativo, principalmente no tocante a casos de corrupção. Foi uma agenda difícil, uma agenda muito dura, em que tanto o Executivo quanto o Legislativo foram expostos de forma muito negativa para a opinião pública. Agora, ao mesmo tempo em que isso é preocupante, na medida em que retira legitimidade dessas instituições, temos que comemorar a consolidação da democracia e o funcionamento das instituições durante a crise. Não consigo ser pessimista. Acho que o Brasil passa por momentos difíceis, por momentos sofridos, mas o balanço é positivo, pela consolidação da democracia e pelo amadurecimento das instituições, que deram provas muito importantes de que podem resistir a várias crises, inclusive crises graves, como as que nós vivenciamos. A tendência, na visão que eu tenho, é que nós cheguemos ao fundo do poço e depois tanto a representação legislativa quanto as práticas do Executivo melhorem.
Ainda não chegamos no fundo do poço? Vai piorar um pouquinho mais?!
Acredito que essa falta de legitimidade pode piorar um pouco mais. Nós que temos contato com o Congresso percebemos que a parcela de parlamentares que tem noção da crise de legitimidade não é majoritária. Imagino que ainda há, por incrível que pareça, ainda mais o que descer até chegar ao fundo do poço.
Isso o senhor diz em relação a aparecimento de casos de corrupção?
O que vejo é que, ao mesmo tempo que essa questão da corrupção colocou em xeque a representação do Legislativo, isso também foi uma oportunidade que o Legislativo teve para reagir. Se as CPIs tivessem tido conseqüências sérias, se nós tivéssemos visto a formação de uma nova agenda para o Parlamento e uma reação positiva do Legislativo, essa crise teria sido revertida de modo positivo. O que a gente vê dentro do Congresso é que há líderes e pessoas que têm respeitabilidade, têm consciência do momento político, mas que não conseguem organizar esse movimento de mudança porque esbarram em pessoas que conseguiram seu mandato independentemente do pensamento da população e que por isso não têm nenhum compromisso com a mudança para melhorar o perfil do Poder Legislativo.
Quer dizer, do lado de dentro do Congresso, as forças que são contrárias a mudanças positivas, no que diz respeito à representação política, são majoritárias. E do lado de fora do Congresso? Elas também são majoritárias?
O que há do lado de fora do Congresso é mais uma apatia e um certo conformismo com o que está havendo. Na pesquisa que a AMB fez, as pessoas defendem, quase na unanimidade, uma grande reforma política. O problema é que no Brasil os movimentos sociais não têm tido capacidade de unificar sua articulação. Há muitos segmentos fazendo praticamente a mesma coisa, mas de forma dispersa. Enquanto não houver unificação de forças, imagino que nós vamos continuar vivendo este cenário de dispersão, em que a grande maioria considera que são necessárias mudanças, mas a luta por isso é feita de forma dispersa e, portanto, sem condições de influenciar legitimamente o Congresso, como a opinião pública tem condições de fazer.
Como fazer essa unificação?
Não sei se essas coisas obedecem a uma fórmula ou se, em algum momento, elas acontecem. Acredito mais que, em algum momento, isso vai surgir naturalmente, sob a liderança de parlamentares que tenham ficado imunes a toda essa crise. Aí, inclusive a importância do Prêmio Congresso em Foco. É a importância de destacar e dar visibilidade a essas pessoas que estão no Parlamento, têm consciência da crise e têm propostas de mudança. Imagino que, num momento mais grave, essas pessoas vão ter condições de expressar esse grande sentimento da população, que é o desejo de uma mudança radical nos costumes políticos no Brasil e de uma melhor legitimação do mandato popular. Não acredito que seja possível estabelecer uma fórmula cronológica, pré-ordenada. Em algum momento acho que surge esse ambiente propício a uma mudança.
Na sua opinião, o Prêmio Congresso em Foco teria como principal qualidade esta, a de identificar aquele pedacinho do Congresso com o qual a sociedade pode contar para as coisas melhorarem na política, é isso?
Acho que é uma virtude incalculável. Porque eu converso com vários parlamentares, e hoje no Brasil é difícil até perseverar. O esforço para o cidadão ter compromisso, ter visão, ter vontade mudar diante de todas as dificuldades leva muitos a esmorecerem. Acho que o prêmio, além de identificar, dá visibilidade a esses segmentos do Parlamento que têm responsabilidade, têm idéias e têm condições de fazer a mudança, e, principalmente, serve como um alento, como um estímulo a essas pessoas para que não desistam, para que continuem lutando. Então eu considero a importância desse prêmio muito grande. Por isso, inclusive, a AMB decidiu apoiar e é entusiasta desse prêmio porque ele combate uma idéia, que é muito comum na sociedade, de que nenhum político presta e que todo político é igual. Isso não é verdade. Quem trabalha no Congresso sabe que isso não é verdade, e o prêmio, na verdade, acaba distinguindo o joio do trigo.
Tem se falado muito na judicialização da política em decorrência dessa situação atual em que o Congresso não consegue reunir consenso para tomar determinadas decisões e a definição final acaba sendo do Judiciário. O senhor acha que essa tal judicialização está ocorrendo no Brasil e até que ponto isso é um problema para a nossa ainda jovem e complicadíssima democracia?
Tenho certeza que isso tem acontecido, é um fato novo, e tudo indica que isso deve aumentar. Tomemos o caso recente do julgamento da greve no serviço público. Até então, o Supremo apenas declarava a omissão do Congresso.Quando o Supremo julgou agora o mandado de injunção, mudou completamente o perfil do mandado de injunção porque o que fez agora foi dizer que não só é uma omissão, mas definiu também como se deve dar a greve dentro do serviço público. Vejo que os impasses no Congresso são muitos. Primeiro, porque o nosso sistema partidário é muito fragmentado e é difícil formar uma maioria para aprovar uma lei. Diante disso, diante de um Congresso com esse perfil, muito fragmentado e com dificuldade para construir maioria, há uma tendência de transferir do campo legislativo para o campo judiciário as decisões sobre matérias que são polêmicas. Vejo que essa falta de funcionalidade do Congresso tende a aumentar ou permanecer pelo menos igual. Vejo o Judiciário com disposição para suprir essas lacunas, e isso está muito claro nas regulamentações relacionadas com a legislação eleitoral. O mandado de injunção vai ser um fato novo. Então imagino que o Judiciário vai continuar avançando no espaço de omissão que o Legislativo tem deixado.