Pablo Bezerra Luciano e Heráclio Mendes de Camargo Neto *
Tramita na Câmara dos Deputados importante proposição legislativa que a um só turno visa resgatar a competência do Poder Legislativo em matéria de servidor público, usurpada pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG), de modo a garantir especificamente às servidoras públicas que a fruição do direito à licença à gestante não seja objeto de quaisquer ônus ou consequências funcionais desfavoráveis e a reafirmar o protagonismo do Supremo Tribunal Federal (STF) no controle de constitucionalidade das leis.
Trata-se do Projeto de Decreto Legislativo 1.488, de 2014 (PDC 1488/2014), de autoria do deputado federal Paulo Rubem Santiago (PDT-PE), que tem por objetivo sustar os efeitos da Nota Técnica 30/2012 da Cgnor/Dnop/ Segep/MP. A referida orientação normativa, de cunho vinculante para a administração pública federal, baixada no âmbito do MPOG, determina que se considere suspenso o estágio probatório em todas as hipóteses de afastamento do servidor público, ainda que tidas pela lei como de efetivo exercício.
A norma infralegal impugnada pelo PDC 1.488/2014 baseia-se em manifestação jurídica do consultor-geral da União, aprovada pelo advogado-geral da União. Essa manifestação entende que, nos termos do artigo 41 da Constituição [1], o estágio probatório é um período de efetivo exercício em que o servidor fica submetido a uma avaliação de desempenho. Assim, concluiu a Advocacia-Geral da União (AGU): se não há como avaliar o servidor em razão de qualquer afastamento de suas funções, deve o estágio probatório ser considerado suspenso, sob pena de se frustrar o escopo da norma constitucional (processo 00400.014671/2009-91).
Conquanto a Lei 8.112, de 11 de dezembro de 1990, que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos federais, disponha em seu artigo 20, § 5º, que o estágio probatório só se suspende nos casos de (1) licença por motivo de doença em pessoa da família, (2) licença por motivo de afastamento do cônjuge, (3) licença para atividade política, (4) afastamento para servir em organismo internacional de que o Brasil participe, (5) participação em curso de formação, a AGU entendeu que referido rol é aberto para abranger, por exemplo, os períodos de afastamento por licença-maternidade e de licença para tratamento da própria saúde, pois o que importa seria não frustrar o escopo da norma do artigo 41 da Constituição.
Para a AGU, a circunstância de a lei não prever a suspensão do estágio probatório em todo e qualquer afastamento do servidor não seria um empecilho a embaraçar o trabalho do aplicador do direito, que estaria, a seu juízo, obrigado a encontrar em todo o ordenamento jurídico uma norma adequada para o caso.
Em suma, a partir de uma particular concepção do instituto previsto no artigo 41 da Constituição e de apelos a uma interpretação “sistemática”, a AGU entendeu que a obra legislativa precisava ser melhorada, de modo a se entender como suspenso o estágio probatório não apenas naquelas situações previstas no § 5o do artigo 20 da Lei 8.112, de 1990, mas em todo caso de afastamento que impossibilite uma avaliação concreta do servidor. Em outras palavras: a AGU, em sede de atividade de consultoria jurídica à administração, exerceu indevidamente controle de constitucionalidade por omissão.
Reconheça-se que, em si, o raciocínio do consultivo da AGU não deixa de ser coerente e sedutor. Porém, visto o problema sob uma perspectiva bem mais ampla e para além de uma limitada glosa dos dizeres do artigo 41 da Constituição, perceber-se-á que, além de propor uma leitura sectária e equivocada da Lei Maior, num ordenamento constitucional que agasalha o princípio da legalidade da administração (artigo 37), anda muito mal a AGU quando se propôs a controlar a constitucionalidade das leis.
Por primeiro, equivocou-se profundamente a AGU ao não considerar que o sistema constitucional no qual está inserida a norma do estágio probatório também protege especialmente a maternidade, conforme se deflui do caput do artigo 6o da Constituição. Passou-se ao largo da consideração de que a proteção à maternidade é um dos direitos sociais, o que demanda do Estado a tomada de posturas tendentes a seu resguardo e promoção.
Sequer se cogitou de se considerar que a licença maternidade não é um direito previsto apenas na legislação ordinária (artigo 207 da Lei 8.112/1990), mas um direito constitucionalmente reconhecido à generalidade das trabalhadoras da iniciativa privada (artigo 7o, XVIII) e do serviço público (artigo 39, § 5o), o que seria suficiente para, no mínimo, interpretar-se a norma do artigo 41 da Constituição cum grano salis.
Também não pararam para ponderar os responsáveis pela norma infralegal impugnada pelo PDC 1488/2014 que não se protege a maternidade ameaçando as mulheres de sofrerem, quando do retorno à atividade, alguma sanção, ônus ou prejuízo. Não lhes ocorreu, em nenhum momento, que suspender o estágio probatório e adiar a aquisição da estabilidade para as mulheres que vierem a dar a luz significaria contrariar os termos do artigo 6o da Constituição. E não lhes ocorreu também que suspender o estágio probatório durante a licença à gestante significaria inaceitável tratamento discriminatório às mulheres (artigo 5o) e intromissão indevida no planejamento familiar (§ 7o do artigo 226). Nem lhes passou pelas cabeças, enfim, que a proposta de seu parecer equivalia a uma insinuação a que as mulheres se esterilizem durante o estágio probatório. E isso em nome de uma interpretação sedizente sistemática do ordenamento jurídico que, em verdade, não passa, como se disse, de uma singela glosa dos termos do artigo 41 da Constituição.
Em segundo lugar, ainda que haja alguma doutrina moderna que proponha a superação do princípio da legalidade, que estaria compreendido num princípio mais amplo, o da “juridicidade”, o qual rende prevalência da Constituição, a sugerir que o administrador público possa praticar atos contrários à lei, se considerá-la inconstitucional, é certo que tal doutrina, nesse aspecto, não encontra amparo no ordenamento constitucional brasileiro.
Isso porque enquanto constar do inciso IV do artigo 84 da Constituição que compete ao presidente da República expedir decretos e regulamentos para a fiel execução da lei, não cabe ao Executivo nada além de um atuar infralegal, escravo e subserviente à lei.
Isso porque enquanto o Brasil almejar ser um estado democrático de direito, a atividade normativa primária, isto é, aquela que envolve a definição de direitos, deveres, restrições e obrigações, jamais poderá ser feita em gabinetes de burocratas, mas em debates públicos travados em casas legislativas abertas à sociedade.
Isso porque, se o Executivo porventura considera uma lei inadequada, omissa ou inconveniente, o ordenamento jurídico constitucional abre-lhe ampla via para encaminhamento ao Congresso Nacional do competente projeto de lei (CRFB, artigo 84, III). E se acaso considera a lei inconstitucional, a Lei Maior abre-lhe a via da ação direta de inconstitucionalidade (CRFB, artigo 103, I).
Em outras palavras: de pequena utilidade seria o Supremo Tribunal Federal se pudesse o Executivo exercer controle de constitucionalidade de leis por ação ou omissão pela via do poder regulamentar, ainda que secundado por parecer jurídico dos órgãos da advocacia pública.
Last but not least, é preciso fazer de conta que o Congresso Nacional não tem competência para sustar os atos normativos do poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar (CRFB, artigo 49, V), para acreditar que a advocacia pública, em nome do chamado “princípio da juridicidade” possa sugerir, no consultivo jurídico, a prática de controle de constitucionalidade das leis pela administração.
Enfim, a introjeção no direito administrativo brasileiro do “princípio da juridicidade” já vem ocasionando seus primeiros danos e vítimas, a exemplo do que consta da Nota Técnica 30/2012 da Cgnor/Denop/Segep/MP e seu altíssimo grau de ofensividade às mulheres servidoras públicas.
Banalizando o princípio constitucional da legalidade, propõe-se, em verdade, a consagração do arbítrio da burocracia, em detrimento das escolhas políticas legitimamente feitas pelas casas legislativas. Da razoável compreensão de que no nosso ordenamento jurídico não há apenas um, mas vários intérpretes da ordem jurídico-constitucional, passa-se, em um verdadeiro non sequitur, à conclusão de que todo e qualquer órgão administrativo poderia exercer poder político, definindo direitos, deveres e obrigações, a partir de sua particular compreensão da Constituição, atropelando, inclusive, o Legislativo, como se exercício de poder e interpretação pudessem se confundir.
Esquece-se que, no Brasil, é o Supremo Tribunal Federal o guardião da Constituição, e não todo e qualquer órgão administrativo. Desconsidera-se, enfim, que deixar de aplicar uma lei por inconstitucionalidade envolve atividade revestida da mais alta gravidade e de responsabilidade política, a qual, para ser minimamente legítima, pressupõe um ambiente do mais irrestrito contraditório.
[1] Artigo 41. São estáveis após três anos de efetivo exercício os servidores nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público. § 1º O servidor público estável só perderá o cargo: I – em virtude de sentença judicial transitada em julgado; II – mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa; III – mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar, assegurada ampla defesa. § 2º Invalidada por sentença judicial a demissão do servidor estável, será ele reintegrado, e o eventual ocupante da vaga, se estável, reconduzido ao cargo de origem, sem direito a indenização, aproveitado em outro cargo ou posto em disponibilidade com remuneração proporcional ao tempo de serviço. § 3º Extinto o cargo ou declarada a sua desnecessidade, o servidor estável ficará em disponibilidade, com remuneração proporcional ao tempo de serviço, até seu adequado aproveitamento em outro cargo. § 4º Como condição para a aquisição da estabilidade, é obrigatória a avaliação especial de desempenho por comissão instituída para essa finalidade.
* Pablo é diretor de Comunicação do Fórum Nacional da Advocacia Pública Federal e presidente da Associação Nacional dos Procuradores do Banco Central do Brasil (APBC). Heráclio preside o Fórum Nacional da Advocacia Pública Federal e o Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional (Sinprofaz).
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