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Essas foram algumas das acusações que embasaram a decisão do Conselho Superior do Ministério Público Federal de exonerar a procuradora da República Gisele Bleggi Cunha. Trata-se de fato raro. Em geral, uma vez aprovados em concurso público, os membros do Ministério Público Federal (MPF) atravessam olimpicamente o período de dois anos denominado estágio probatório. É a fase pela qual o servidor público concursado passa antes de começar a usufruir todos os direitos inerentes ao cargo, ou, como se costuma dizer, ser “efetivado”.
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No caso dos membros do Ministério Público, concluir o estágio probatório significa obter três garantias constitucionais. A irredutibilidade de vencimentos, que veda qualquer tentativa de diminuir uma remuneração cuja faixa inicial supera hoje R$ 20 mil por mês. A inamovibilidade, que impede a remoção que não seja por vontade própria. E a vitaliciedade, assegurando que o funcionário só perderá o cargo após a decisão de demiti-lo transitar em julgado, isto é, ser mantida até não restar mais nenhuma possibilidade de recurso.
Gisele, lotada em Tabatinga (AM), não conseguiu superar a barreira do estágio probatório. Por nove a um, o Conselho Superior do MPF decidiu no último dia 8 que ela não reúne as condições necessárias para integrar o Ministério Público e por isso deve ser afastada da função. A deliberação tomou por base inquérito administrativo que trouxe à luz a grande capacidade de Gisele Bleggi Cunha – que ainda está em estágio probatório – para praticar atos que os seus superiores consideraram irregulares.
No CSMPF, somente o conselheiro Alcides Martins deixou de acompanhar o voto do relator, o subprocurador-geral da República Rodrigo Janot, para quem Gisele deu provas de “total descaso e indiferença para com o serviço”.
Mas, nos debates dentro e fora da rede interna do MPF, muitos procuradores têm atacado a decisão do conselho. Para eles, Gisele Bleggi sofreu uma punição muito dura, desproporcional.
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“Em tese”, foi contrabando
A polêmica em torno do assunto começou antes mesmo de o CSMPF deliberar a respeito. Ela se acentuou após a divulgação do voto do subprocurador-geral Rodrigo Janot, que já foi candidato à vaga de procurador-geral da República e a partir de amanhã (23) disputa a recondução ao Conselho Superior do MPF.
Em seu voto, Janot faz referência a um “fato severo“ que para ele constitui “em tese” crime de contrabando: a compra de uma motocicleta, guardada com a autorização de Gisele em instalações do MPF.
De acordo com mensagem eletrônica do procurador André Bertuol, de Santa Catarina, Gisele Bleggi era servidora do Tribunal Regional Eleitoral catarinense. Passou no concurso do MPF e foi para Tabatinga, a 1.200 km de Manaus, na divisa com a Colômbia e o Peru. A cidade fica a três horas de avião da capital do Amazonas. Se o trajeto for feito de barco, são sete dias de viagem. Em 12 de abril, Bertuol distribuiu na chamada “Rede Membros” do MPF carta em que o marido da procuradora, Júlio, diz ter comprado a motocicleta.
Ele conta que pagou R$ 1,8 mil e tentou legalizar o veículo na Receita Federal, mas não conseguiu. Júlio disse que “não ficava bem” a uma procuradora ter um marido andando com uma moto sem documentos. “O que eu fiz foi botar a bendita moto num quarto dentro da Procuradoria junto com umas caixas”, afirma ele. Ele acrescenta que a moto foi vendida a uma servidora do Ministério Público com prejuízo, pela metade do preço, ou seja R$ 900. “Então isso é o contrabando (sic), o valor é tão irrisório, que é a coisa mais ridícula do mundo”, queixou-se Júlio.
Mas, em seu relatório, Janot endossou relatório de uma comissão de inquérito para apurar a conduta da procuradora, ao afirmar que Gisele Bleggi conversou com a servidora Ângela Carneiro para negociar a moto. “O que demonstra sua participação direta na venda de produto que sabia estar irregularmente em nosso país”, criticou. Janot lembrou que as autoridades do Brasil toleram a permanência de veículos colombianos irregulares nas ruas de Tabatinga. Mas isso “não exime a responsabilidade de todos cumprirem a lei, sendo essa exigência ainda maior quando se trata de um membro do Ministério Público”.
“Caiu a ficha”
Entre janeiro de 2010 e julho de 2011, a procuradora Gisele Bleggi teve quase 60 dias de faltas ao trabalho sem justificativa em datas alternadas, segundo Janot. O relator anotou que ela esteve fora de Tabatinga durante um período que soma 22 dias úteis, durante outro somando 19 dias corridos e um terceiro período de 18 dias corridos. Em julho do ano passado, ela pediu licença-prêmio à Procuradoria-Geral da República, que não autorizou o descanso. Mesmo assim, Gisele Bleggi entrou de licença. “Ainda que pudesse justificar alguns casos, ainda assim seriam muitas as ausências sem justificativa”, criticou Janot.
Gisele também “vendeu” parte de suas férias, mas mesmo assim não trabalhou durante os dez dias “vendidos”. A procuradora disse à então corregedora do Ministério Público, Ela Wiecko, que não sabe o que “passou pela cabeça” por ter feito isso. “Eu só fui ter ciência da gravidade de que eu faltei no período de indenização quando a dra. falou. Ela fez a consulta pra mim e tava pedindo dias específicos”, afirmou a procuradora em seu depoimento. “Daí que caiu a ficha (…) Foi uma falha, uma falta de percepção”.
Em sua defesa, Gisele também disse que se ausentava várias vezes de Tabatinga, cidade distante de grandes centros urbanos, porque seu filho estava doente. Janot observa, porém, que o estado de saúde dos filhos não autoriza o “abandono” do local de trabalho “por tantas vezes”.
Em Tabatinga, a procuradora deixou com servidores do Ministério Público cartela com etiquetas autocolantes com sua assinatura e também vários despachos-padrão para converter investigações preliminares em inquéritos civis públicos. Os despachos só tinham um campo para preencher, com caneta, a data e o número do procedimento. Eles eram feitos pelos servidores quando estava prestes a vencer o prazo para a procuradora se manifestar sobre denúncias recebidas no MPF ou investigações abertas por ela mesma.
“Trata-se de mais uma irregularidade reconhecida pela indiciada”, disse Janot, ao endossar as palavras da comissão de inquérito administrativo que apurou o caso. Para ele, só a procuradora poderia tomar essas decisões sobre a conversão em inquérito civil, e nunca as servidoras do órgão.
Da mesma forma, as etiquetas com a assinatura de Gisele Bleggi eram colocadas em outras manifestações por funcionários do MPF de Tabatinga. O servidor só comunicava a procuradora se tivesse dúvidas. Houve um dia que essa postura causou problemas. “Foi aposta uma etiqueta de ciência num caso de réu preso que desafiava a impugnação do MPF”, escreveu o relator. Outros colegas de Gisele corrigiram o problema e contestaram a prisão, segundo Janot.
Ele afirmou ainda que servidoras do órgão simulavam rubricas da procuradora para apressar a saída de processos do Ministério Público.
Gastos com telefone
A procuradora gastou R$ 8.129,26 com seu telefone celular funcional entre outubro e dezembro de 2010. As ligações particulares são permitidas, mas o excedente a certo limite deve ser pago pelos membros do MPF. Gisele só fez isso depois de cobrada pela instituição, relata Janot.
Outro fato intrigou Janot. Júlio, o marido de Gisele, foi contratado para uma obra na Procuradoria da República em Tabatinga. “Embora não tenha sido responsável pela contratação do seu marido, falta sensibilidade em não antever qualquer problema na questão, e problema grave, de modo a misturar interesses institucionais com aqueles familiares.”
Ao se defender das acusações, Gisele alegou desconhecer regras internas do Ministério Público e algumas leis. Janot disse que essa argumentação é “insustentável” e, mesmo se fosse verdadeira, pioraria a situação. Por quê? “Por indicar fortemente (…) incompetência técnica, falta de aptidão para o cargo, falta de senso de responsabilidade, ausência de equilíbrio, despreparo ético”, responde o relator.
Ninguém quer falar
Cabe recurso da decisão do Conselho Superior do Ministério Público Federal (CSMPF). Gisele Bleggi pode ainda recorrer ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), órgão máximo de controle do Ministério Público, ou ao Judiciário.
A reportagem não conseguiu falar com Janot em seu gabinete na segunda-feira (21). Gisele não foi localizada na Procuradoria em Tabatinga, porque pediu remoção para Rondônia. A reportagem não encontrou a procuradora nas unidades do MPF em Porto Velho (RO), Ji-Paraná (RO) e mesmo Manaus (AM).
Gisele também não respondeu ao e-mail enviado pelo Congresso em Foco.
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