Em 12 de abril, o Brasil tornou-se o quarto país da América Latina que descriminalizou o aborto no caso de feto anencéfalo.
O primeiro país a adotar o aborto foi Cuba, em 1965, quando a ilha tentava adotar os princípios marxistas de igualdade da mulher e o direito de escolha. Entretanto, essa proposta deixou de ser libertadora e foi deturpada quando o governo começou a difundir o aborto como se fosse um método normal de contracepção (vide).
O segundo foi a Colômbia, que aumentou o número de situações em que o aborto era permitido, incluindo, em 2006, o caso de fetos com deformações. O motivo dessa medida numa sociedade ultraconservadora foi um fato de grande repercussão: Marta Solay González (1971–2007) descobriu que tinha um câncer de útero no 2º mês de gravidez, mas a justiça lhe negou o direito a terapia, argumentando que o tratamento mataria o feto. No momento de dar a luz, já o tumor era incurável. A crueldade dessa condenação emocionou a opinião pública e obrigou à Corte Suprema a estender as condições de legalidade do aborto. (vide)
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O 3º caso de despenalização se aprovou parcialmente em 2010 no Uruguai, quando o Senado legalizou a interrupção da gravidez (vide). O Uruguai tem certa tradição de secularidade e, apesar de ter sofrido uma ditadura (1973-1984), foi durante décadas uma sociedade democrática.
No resto da América Latina, incluindo países desmilitarizados como a Costa Rica, a influência da Igreja Católica fez proibir o aborto em quase todos os casos. Em países desenvolvidos (em geral, os que têm um maior grau de civilidade, mas também nos EUA), o aborto no primeiro trimestre de gestação é permitido com a simples demanda da mãe. Na Europa, as exceções para o caso de defeito fetal são Irlanda, San Marino, Andorra e o Vaticano, que proíbe o aborto em todos os casos, incluindo o risco de morte da mãe.
No Brasil, o acórdão que permite a descriminalização do aborto de fetos anencéfalos aprovado no dia 12 de abril por 8 votos contra 2, já tinha um antecedente importante numa intensa disputa que aconteceu em 2004. Algo antes, o ministro Marco Aurélio de Mello, do STF, tinha concedido liminar para uma mulher grávida de um feto anencéfalo executar aborto legal. Mas o voto de Mello foi acompanhado só por Ayres Brito, Celso de Mello e Sepúlveda Pertence. Todos os outros (sete ministros) votaram contra a liminar. A mulher, porém, foi salva por um “antimilagre”: ela não faleceu nem deu a luz. Teve um aborto natural, contra o qual os sete juízes não podiam aplicar nenhuma punição.
PublicidadeCom base nesse fato, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), representada por Luís Roberto Barroso (vide), jurista célebre por sua militância em causas humanitárias e progressistas, promoveu uma ação que só foi julgada no dia 12 de abril de 2012, e aprovada por 8 votos a 2. Entre os apoiadores, estavam dois juízes que em 2004 tinham votado contra a liminar, mas que perceberam a nova composição do STF e a pressão social, e “mudaram” suas idéias.
Dos argumentos a favor da despenalização do aborto, o mais importante foi o de Marco Aurélio de Mello. Ele demonstrou com raciocínios impecáveis que a alusão à religião no Preâmbulo da Constituição Brasileira não pode considerar-se normativo, e que o contrário implicaria violar o princípio de liberdade de consciência, uma vez que estaria amparando apenas às pessoas crentes e, ainda, as monoteístas. (vide, especialmente a página 12). Essa observação vai muito além do problema em pauta e entra na legitimidade do aborto em geral: a decisão de uma mulher sobre seu corpo não pode estar sob o jugo de ninguém, nem mesmo dos teólogos.
O ministro Lewandowski, que votou contra, parece ter percebido que a legalização no caso de anencéfalos conduziria naturalmente a autorizar o aborto de qualquer feto que padecesse de deformações.
Em seu voto (vide, p. 5), coloca uma citação grifada em que se menciona a ilegitimidade do aborto eugenésico (sic). É impossível conhecer as idéias que envolvem a complexa retórica jurídica, mas essa citação parece aproveitar a má fama da palavra “eugenésico”, que foi muito utilizada pelo nazismo. Mas deve-se ter em conta que os mais brutais programas de eugenia nazista (como o Aktion T4, de 1/9/1939) eliminavam crianças que tinham vida autônoma e não fetos que se poderiam tornar autônomos no futuro (vide). Admitir a “humanidade potencial” do feto não viável, seguindo as especulações de Santo Tomás de Aquino, permite concluir que qualquer medida contraceptiva é criminosa, pois evita que o óvulo (que sempre é uma entidade viva) possa ser fecundado.
É verdade que o que se chama anencefalia é geralmente uma atrofia do cérebro e nem sempre a total ausência dos hemisférios, mas esse defeito é suficiente para tornar sua vida impossível após o parto. Os meninos que vivem com anomalias cerebrais até idades mais avançadas não são anencefálicos, mas portadores de defeitos cerebrais graves. Aliás, o critério clínico (aceito até pelos mais fechados fundamentalistas) de morte de um ser humano é o fim das funções cerebrais e não, como antigamente se acreditava, a parada respiratória ou cardiológica. Portanto, uma pessoa sem cérebro é uma pessoa morta, e carece de sentido dizer que abortar um morto é um crime.
É claro que o aborto produz certo constrangimento, que se acentuou nos últimos anos quando as pessoas conseguiram ver os movimentos dos fetos nos diagnósticos de imagem. Mas isso não implica que qualquer grupo supostamente iluminado possa substituir a decisão da portadora, a quem cabe a propriedade de seu próprio corpo.
Outra lição mais forte dessa decisão do STF é que muitos magistrados estão entendendo que não podem deduzir todas as verdades da vida e da sociedade dos códigos e “doutrinas”. A crença de que tudo está contido na teologia e no direito acabou com Galileu, ou talvez antes.
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