O governo Lula terá de superar grandes desafios nos próximos quatro anos para conseguir recuperar o sistema público de saúde. Apesar de os recursos destinados ao setor terem aumentado no primeiro mandato, o resultado dos investimentos ficou aquém do modelo que se anunciava na campanha eleitoral de 2002. Além de hospitais sucateados e sem equipamentos, há problemas graves no financiamento e na fiscalização e conflitos de competência entre a União, os estados e os municípios.
Não bastassem as dificuldades técnicas, os recursos da saúde ainda são alvos de verdadeiros saques de quadrilhas especializadas. Só a máfia dos vampiros sugou, ao longo de 12 anos, cerca de R$ 2 bilhões que deveriam ter sido usados na compra de produtos hemoderivados. Já a máfia das ambulâncias, que teve o apoio até de parlamentares, desviou ao menos R$ 110 milhões dos recursos do orçamento da saúde desde 2001.
Para profissionais da área ouvidos pelo Congresso em Foco, ainda falta um projeto nacional que estabeleça normas claras de fiscalização e destinação dos recursos públicos (leia mais). O modelo de atenção adotado pelo Sistema Único de Saúde (SUS), mais voltado para a cura de doenças já estabelecidas do que para a prevenção, é um dos principais alvos das críticas.
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“O modelo de atenção que temos é absolutamente distorcido. Privilegia o aspecto coletivo e a cultura do hospital, da doença, dos tratamentos de alta complexidade”, considera o presidente do Conselho Nacional de Saúde, o farmacêutico Francisco Batista Júnior. Procurada pela reportagem, a assessoria do Ministério da Saúde encaminhou dados sobre a gestão no primeiro governo Lula (veja aqui). Ninguém da pasta, porém, prontificou-se a falar sobre o assunto.
“Devemos priorizar a saúde, não a doença. Manter esse modelo atual só interessa aos grandes grupos econômicos, pois são eles os responsáveis pelos tratamentos de alto custo, os transplantes, e os exames de média e alta complexidade”, defende Francisco. O Conselho Nacional de Saúde é formado por representantes de usuários, do governo e especialistas da área, que se reúnem para avaliar e sugerir políticas públicas de saúde.
Apesar de os investimentos do programa Saúde da Família, que cuida da prevenção e da atenção básica, terem aumentado 160% nos últimos quatro anos, de acordo com dados do Ministério da Saúde, não diminuiu o registro dos casos de doenças crônicas, maiores responsáveis por mortes precoces no país.
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“O governo Lula continuou na mesma linha do governo anterior. Mudou a ênfase das prioridades, mas manteve a estratégia de eleger pontos de forte apelo político dentre as necessidades da população”, analisa o professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) Paulo Eduardo Elias, especialista em Políticas e Organização de Serviços de Saúde.
Entre os programas priorizados pelo governo, o professor destaca o Brasil Sorridente, o Farmácia Popular, o Samu e o QualiSUS (leia mais sobre os programas). “Ao se comparar com o que já foi feito, tivemos grandes avanços, mas se olharmos para o futuro, para o que ainda precisa ser feito, ainda há muitos desafios”, diz ele.
Segundo o presidente do Conselho Nacional de Saúde, um dos empecilhos para se tirar a saúde da UTI é a “relação clientelista” que persiste há décadas no sistema. “As políticas de saúde têm que ser vistas como gestão técnica, não podem servir como moeda de troca dos partidos”, argumenta Francisco Batista Júnior. “É preciso haver uma responsabilização dos gestores e um empenho das três esferas de governo – federal, estadual e municipal – para resolver os problemas tanto de financiamento quanto de carência de profissionais”, argumenta.
Modelo curativista
Outro grave problema, segundo ele, é o enfoque. Enquanto as chances das doenças infecciosas causarem mortes precoces são de 15 em cada 100, a possibilidade de uma doença crônica matar o paciente é de 66%. Apesar disso, as políticas de saúde continuam sendo mais voltadas para o tratamento de doenças, em especial as infecciosas, do que para a prevenção e a promoção da saúde.
“Hoje é tudo fragmentado e focado na condição aguda. O paciente é atendido no pronto-socorro, mas depois não tem continuidade. É preciso ter redes de atenção à saúde que comece antes do desenvolvimento da doença, com a prevenção, e continue até o tratamento no hospital e o acompanhamento por especialistas”, diz o consultor em saúde pública Eugênio Vilaça.
A sugestão de Vilaça é que seja criada uma rede integrada de assistência que comece com a prevenção e se estenda até os tratamentos de média e alta complexidade. Segundo ele, o Brasil já passou do estágio de priorizar as doenças infecciosas e precisa, agora, voltar-se para o tratamento de doenças que exigem cuidados prolongados e constantes, como as cardíacas, o câncer e a hipertensão.
“Nossa taxa de mortalidade é duas vezes maior que a do Canadá e, apesar do investimento, o governo não está tendo sucesso na diminuição desse índice. Isso significa que as medidas adotadas não estão sendo eficientes”, argumenta Vilaça.
O modelo curativista adotado nos hospitais é não apenas uma questão de opção governamental, mas também um aspecto cultural do brasileiro, diz o presidente do Conselho Nacional de Saúde. A maior parte das pessoas só procura os hospitais em emergências ou quando percebe sintomas de doenças. Para mudar isso, a solução apontada por Francisco Batista Júnior é priorizar a atenção básica e oferecer equipes multiprofissionais que façam a orientação, o acompanhamento e a prevenção para impedir que as doenças apareçam ou se agravem.
“Em vez de ter um país campeão em transplantes, devemos ter saúde, ser campeões no combate &a