Eduardo Fernandez Silva *
A globalização é um processo fortemente afetado pela política. Fatores econômicos, culturais, tecnológicos e até geográficos estabelecem seus limites e possibilidades, mas é a Política – com P maiúsculo – que define seus caminhos e ritmo.
Para ilustrar esse fato, descreve-se a seguir a recente reunião do G-8, porém utilizando o recurso de inverter os papéis desempenhados pelos atores, de forma a destacar a possibilidade e a necessidade de uma globalização diferente. Assim, mantida a verdade dos fatos, mas com a mencionada inversão de papéis dos atores, a reunião do G-8 de maio de 2007 poderia ser descrita como segue.
Os países mais ricos do planeta – China, Índia, Brasil e outros – se reuniram para tratar de assuntos globais. Convidaram alguns países emergentes – Inglaterra, França e outros – para trocar idéias após a reunião, que ocorreu num clima de tensão dentro e fora da sala de decisões. Fora, manifestantes clamavam por políticas que diminuam a agressão ao ambiente e a pobreza da maioria dos habitantes de parte do globo, relativamente à riqueza e ao consumo insustentável de recursos naturais pelos habitantes da outra parte. Dentro da sala, a tensão decorria da proposta, apresentada por um dos países ricos, de realizar grandes investimentos em instalações militares, como se a Terra ainda vivesse a guerra fria. Se aprovada, tal proposta virá propiciar o crescimento do poder e riqueza de certos grupos. Virá, também, acentuar certas características do atual processo de globalização, ilustrando o peso das decisões políticas sobre os seus rumos.
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Mercados se desenvolvem: nascem, crescem e eventualmente morrem, levando junto populações, num processo que não é independente da política. A recriação da guerra fria é exemplo de ação de Estado que, com benefícios direcionados a certos grupos, faz crescer alguns mercados e inibir outros. Com a estagnação, o crescimento ou a involução de certos mercados, empresas, populações e países ficam paralisados, tornam-se emergentes ou submergem.
A China era a maior potência mundial até o início do século XIX, quando Napoleão disse: “Não acordem a China”. Posteriormente, o Estado chinês foi subjugado, seus mercados minguaram e o país empobreceu a ponto de, já no século XX, ser chamado de “a prostituta da Ásia” por André Malraux.
Hoje, a China acordou. Enquanto os brasileiros cantam seu país por estar “deitado eternamente”, a China busca recuperar o posto de líder mundial, como um dos instrumentos para melhorar as condições de vida da sua população. Outra ferramenta é a progressiva e cuidadosa construção de regras para o funcionamento de mercados cada vez mais amplos e dinâmicos. O caminho trilhado não é isento de contradições. Dentre elas, a questão ambiental, a concentração da renda e a corrupção.
A China, assim como o Brasil, encontra-se entre os maiores poluidores do planeta, mas não em termos per capita. Quanto à distribuição da renda, seu índice de concentração é de 0,4, ao passo que o do Brasil é quase 0,6, numa escala em que zero é igualdade perfeita e 1, concentração total. Não obstante, nas últimas décadas 300 milhões de chineses elevaram-se acima da linha da pobreza. No Brasil, a menos intensa e mais recente redução da pobreza tem sido devida mais a transferências que à geração de renda, o que não é um caminho promissor. Em ambos os países, há muita corrupção, tanto que eles estão juntos, na 70ª posição, no índice da Transparency International, em que países tidos como menos corruptos ocupam os primeiros lugares.
Embora com papéis e pesos diferentes, a China e o Brasil são frutos e agentes da globalização, na qual alguns países são atores principais e outros, figurantes. Há também os sparings, que apanham dos campeões para que estes melhorem seu desempenho.
Os papéis que a China tem desempenhado no “grande jogo” atual refletem independência, forte consciência e ativa perseguição do seu “interesse nacional”, conceito este sempre ideologicamente construído, politicamente definido e, portanto, com fronteiras imprecisas. O fato de a China crescer a mais de 9% ao ano há 30 anos não é produto do acaso. Revela, antes, que as estratégias dos governantes em busca do “interesse nacional” têm sido eficazes. Os custos – por vezes evitáveis – têm sido grandes, e os bônus também são expressivos.
A promoção do ‘interesse nacional’ na China norteia-se pela ampliação do que lá é chamado de Poder Nacional Abrangente, PNA. A noção envolve o reconhecimento de que a força militar não define, por si, o poder de um país, e que há “guerras” também noutros campos.
Diz o coronel sênior Huang Shuofeng, da Academia Militar de Ciências da China: “A moderna luta internacional pela sobrevivência em última análise é a competição pelo PNA. O foco da competição é a luta por recursos estratégicos: científicos e tecnológicos, econômicos, naturais, de pessoal, de informação etc., os elementos-chave do PNA”. As condições sociais e a capacidade governamental de liderar e de produzir resultados também integram o PNA. Afirma o autor citado: “Se são baixas as capacidades de um país de tomar decisões, de organização ou se sua estratégia é fraca, desfocada ou defeituosa, esses fatores sobrepujarão o poder real na determinação do resultado de uma guerra”.
Não é por acaso, pois, que para progredir na escala hierárquica da política chinesa, os políticos tenham que mostrar resultados, além, é claro, de se aliarem às redes de relacionamentos vencedoras (“não importa a cor do gato, desde que cace o rato”). Dentre outros bônus, o foco no PNA eleva a coerência da ação governamental, apesar de todas as disputas políticas. Do outro lado do mundo, o Brasil já foi descrito como sendo “um país sem leme”.
Além dos propalados resultados da economia, na China há aspectos pouco mencionados: seu crescimento econômico iniciou-se pelo interior; 25 das 31 províncias chinesas encontram-se entre as mais dinâmicas economias do mundo há mais de 20 anos; a participação de estatais no PIB é inferior a 40%. Há resultados também noutros campos: a Universidade de Pequim está entre as melhores do mundo; os avanços em ciência e tecnologia incluem o domínio da tecnologia espacial e saltos na biotecnologia; na agricultura, sua produção de grãos é quase três vezes maior que a brasileira; é um dos maiores fornecedores de produtos de alta tecnologia para a Europa e os EUA. São resultados da busca do PNA.
Para resumir, encontram-se entre os segredos do desempenho da China:
– experimentar em pequena escala e avaliar os resultados de suas políticas antes de torná-las nacionais – no dizer local, “cruzar o rio tateando as pedras” e constituir “um país e dois sistemas”;
– adaptar e fazer, em termos de políticas para o desenvolvimento, aquilo que historicamente fizeram os países hoje desenvolvidos, e não aquilo que eles dizem que deve ser feito;
– desenvolver, segundo especialista da famosa escola francesa Insead, as próprias políticas, ao invés de seguir os conselhos dos “economistas liberais leninistas”;
– manter responsabilidade fiscal, câmbio que dá competitividade à indústria local, inflação sob controle e taxa de juros muito baixa.
Donde se vê que algumas verdades propaladas no Brasil não são tão universais assim…
Do exposto pode-se concluir que, se é para vermos o “espetáculo do crescimento” em Pindorama, a “reforma política” – e da política econômica – terá que ir muito além dos aspectos que estão sendo discutidos na mídia. Terá, entre inúmeras outras iniciativas, que superar o retalhamento incoerente do Estado e de seu orçamento entre diferentes grupos políticos, com a conseqüente perda do sentido de direção e, pois, do “leme”. Será que a reforma política abordará essa questão, ou teremos que aguardar, quem sabe, até mesmo a alteração da letra do Hino Nacional?
*Eduardo Fernandez Silva, economista, professor da Fundação Getúlio Vargas em Brasília e presidente da Associação dos Consultores Legislativos e de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados (Aslegis), estuda há dez anos o caso da China, país ao qual já fez duas viagens de estudos. Também já foi secretário adjunto do Trabalho e de Assuntos Metropolitanos de Minas Gerais.